Guerra de conveniência
Com
a premeditada criação do ambiente para a fuga de todos os valores
humanos e a instauração do terror que se alarga a todos os sectores da
população, acontece que a economia moçambicana se encontra nas
vizinhanças do colapso.
Estima-se que mais de duzentas mil
pessoas abandonaram o país e cerca de quarenta mil se encontram nas
prisões ou campos de trabalho. Se o governo moçambicano desmentir estas
afirmações, desafi-o a consentir a livre entrada e circulação no país de
uma comissão internacional à qual estarei pronto a fornecer os dados
orientadores necessários para a verdade poder ser apurada.
Acresce que os atingidos, pela fuga ou pelo internamento, representavam o extracto mais válido nos diversos sectores produtivos.
Assim,
não causa espanto que o rendimento industrial tenha caído em cerca de
70%, com total estagnação dos novos investimentos. Estas indicações
podem pecar por optimismo quando se referem a um sector que era
imperioso dinamizar.
Na actividade agrícola, afectada em muitas
regiões por condições climáticas desfavoráveis, prevê-se que haja zonas
onde no corrente ano a quebra de produtividade alcance os 75%.
Estes
índices alarmantes parecem todavia mais favoráveis que a realidade
quando se comparam com outros números já publicados. Assim, só na região
de Manica e Sofala (distritos da Beira e do Chimoio) a produção de
batata caiu de 15 000 toneladas em 1974 para 3 000 toneladas em 1975.
Nos citrinos desceu-se de 270 000 caixas de laranjas para 11 000 no
mesmo período. No milho, sempre na mesma base de comparação, tombou-se
de 20 000 toneladas para 8 000 toneladas.
Já não se trata de ter
produtos para exportar mas, apenas, de ter alimentação para as
populações. A partir de Junho a fome apresenta-se como ameaça para
todos. Há cidades onde o pão desapareceu há muito e onde a carne é luxo
só acessível aos dignatários do partido.
O desemprego alcança
nível nunca anteriormente conhecido. As aldeias começam a conhecer o
afluxo dos que regressam desiludidos e esfomeados dos centros urbanos
onde não conseguem encontrar ocupação.
Com a carência de pessoal
qualificado, os portos e os caminhos de ferro estão reduzidos a
movimentar apenas uma quarta parte da sua capacidade anterior.
As
rebeliões começam a surgir em vários pontos do território, como as que
em Dezembro se registaram em Lourenço Marques e forçaram Samora Machel a
ocultar-se, durante dias, em parte incerta.
Como invariavelmente acontece nestas circunstâncias, a minoria dominadora tinha de inventar uma "guerra de conveniência".
Samora
Machel deu o primeiro passo enviando algumas unidades para Angola, para
combaterem ao lado dos "camaradas" do MPLA. Sabia quanto isso seria
desagradável ao Dr. Kaunda (a quem tantos favores ficou a dever), mas
tinha de cumprir as ordens soviéticas. Sobretudo, porém, procurava
ver-se livre de soldados cuja atitude receava.
Mandou
moçambicanos morrerem em Angola por motivos que nada tinham que ver com a
causa de Moçambique, embora pudessem ser importantes para a sua
segurança e interesses pessoais.
O segundo passo tinha de seguir-se com a "guerra de conveniência" contra a Rodésia.
O
bloqueio que determinou não representava a punhalada mortal que quis
fazer acreditar haver desferido. Como os portos e caminhos de ferro
estavam já limitados à reduzida capacidade que referi (e nem tudo se
dirigia à Rodésia) aconteceu que o regime de Salisbúria sofreu muito
menos do que se poderia pensar. Até já tinha activado outras vias
alternativas para compensar a ineficiência moçambicana.
Assim,
esta outra "guerra de conveniência" converteu-se num enorme "bluff" que
permitia a Samora Machel aliviar o tráfego externo, para atender às mais
prementes necessidades de transporte no país e buscar ajuda
internacional para cobrir os invocados prejuízos que, da aplicação das
ineficazes sanções, afirmava resultarem.
Será muito duvidoso que
alcance o auxílio internacional pretendido (em termos de compensar o
colapso económico em que, por outras causas, se encontra) apesar da
inteligente argumentação que Chissano utilizou em New York.
Uma
coisa é obter votações favoráveis no Conselho de Segurança, afirmando
intenções e receber mensagens de simpatia de certos governos. Outra
coisa é recolher o dinheiro quando chegar a hora de fazer contas e
justificar o pedido. Os governos ocidentais não têm motivo para
subsidiar um satélite soviético. Os árabes não se devem inclinar em
auxílios generosos a quem persegue milhões de maometanos. Do oriente
veremos o que lhe enviam. Talvez que mais armas e menos pão...
(...) Reacende-se o tribalismo
Com
o desaparecimento do cimento agregador que os sectores mais cultos
representavam e com a destruição das estruturas administrativas voltaram
as populações à condição de terem de se refugiar na vida tribal. A
perseguição religiosa agrava essa tendência.
Com isso se reacende o tribalismo e dilui-se o frágil sentimento de unidade nacional que se ia erguendo.
Tendo
de viver cada vez mais sobre si mesmos e recebendo cada vez menos da
comunidade nacional, os povos reforçam instintivamente as suas
estruturas tradicionais.
Não é compensável esse fenómeno
desagregador pela eventual assistência de técnicos importados (e que por
isso não dispõem de comunicabilidade) ou pela pressão dos grupos
dinamizadores que parecem apostados a copiar os maus métodos da acção
psico-social do regime anterior. Esses grupos, na generalidade, têm
falhado rotundamente e os comícios que organizam, tiveram de passar a
ser feitos em recintos fechados ou, de dia, em espaços abertos
fiscalizados. Tais procedimentos resultaram, de, sem essas precauções, a
assistência arrebanhada nas aldeias se escapar na sombra da noite, ou
pelas portas entreabertas, ficando os doutrinadores limitados, ao cabo
de algum tempo, à presença das autoridades ou dos sentados nas filas
mais em evidência.
O incentivo dado ao tribalismo é, assim,
consequência da acção exercida pela minoria marxista da "Frelimo",
completamente desenraízada das realidades da vida rural. Essa engloba
mais de sete milhões de moçambicanos que esses elitistas (como Marcelino
dos Santos) são incapazes de compreender porque nunca com eles
conviveram e nem sequer a alguma tribo pertencem. Já recordei que a
maior parte dos intelectuais do partido nem negros são.
Enquanto
que, por exemplo, o Dr. Banda e o Dr. Kaunda souberam vencer a barreira
da cultura para se apoiarem no povo, por sobre as divisões tribais,
acontece que Samora Machel, querendo exibir cultura assimilada
bruscamente, perdeu a função agregadora nacional que poderia ter
realizado. Ter-lhe-ia bastado seguir a corrente nacionalista da
"Frelimo" em vez de se deixar arrastar pela minoria intelectual marxista
que o deslumbra e domina.
Porque fez a opção errada já teve de
afirmar publicamente que "os moçambicanos são um povo de reaccionários".
Apenas com isto quer dizer que são um povo que não o segue.
É impossível governar, duravelmente, contra a vontade dos povos.
Se
o tribalismo é um fenómeno contrário à construção da unidade nacional,
não pode deixar de reconhecer-se que constitui arma terrível contra a
opressão que se queira impor às gentes.
Já foi defesa quase indomável no período das guerras de pacificação. Volta a sê-lo quando novo colonialismo lhes bate à porta.
Na imagem: Gungunhana (o Leão de Gaza)
Os
mais irredentistas (os macondes) fizeram-no sentir ao assaltarem um
campo de trabalho, libertando os presos e massacrando a guarnição que
não conseguiu fugir a tempo. Os pacíficos macuas (que são terríveis
quando chegam ao limite da sua tradicional resignação) ocuparam
povoações em que, como suprema afronta, queimaram a bandeira da
"Frelimo" e hastearam a portuguesa. No território dos ajauas, não creio
que Samora Machel se atrevesse a presidir a uma banja da população; são
teimosos, falam pouco e não aceitam inovações que não entendam. Nas
regiões nyanjas, o grau de cultura é muito elevado e por isso não podem
digerir a luta de classes que Karl Marx prognosticou quando já
suplantaram, tribalmente, esse problema há muito tempo. Os orgulhosos
zulus mantêm a tradição aristocrática de Gungunhana que volta a
reaparecer no norte, entre os seus descendentes angonis que não toleram
ordens de estranhos na sua terra.
Se continuasse a citar reacções
tribais, teria de escrever um outro livro, falando apenas daqueles com
quem convivi intimamente durante mais de vinte anos em que gastei no
mato, a aprender, tempo apaixonante da minha vida.
Apenas
procurei citar exemplos para que se possa entender a gravidade e a
importância do caso tribalista em Moçambique. Não cabe no esquema
doutrinário de Karl Marx. É mais assimilável à dignidade da
diferenciação nos árabes que Lawrence nos deixou descrita.
Samora Machel (e o elitista Marcelino dos Santos) ganhariam mais em estudar Lawrence do que em tentarem assimilar Marx.
Com
os árabes há muito que aprender. Até na capacidade de luta que
evidenciaram para alcançarem a vitória que se avizinha, depois de
enganados e traídos pelas grandes potências que julgavam poder fazer
geometria sobre terras que são a sua pátria.
Depois, têm aquele
aforismo terrível que recomenda sentar-se à porta da tenda o tempo
necessário para ver passar o enterro do inimigo.
Com o sangue árabe que me honro de ter nas veias não me esqueci desse conselho ditado pela sabedoria. (...)