Cubanos e russos
Na imagem: helicóptero russo pilotado por cubanos, na Base 3 do Negage (Angola)
Para
muitas pessoas a grande incógnita está na possível intervenção de
cubanos e russos em Moçambique. Têm naturalmente presente o que se
passou em Angola.
Mas os dois casos não são assimiláveis, pelo menos para este efeito.
Não creio que haja risco de assistirmos a agressão semelhante.
Explico porquê.
Em
Angola travava-se uma guerra quase do tipo clássico, comparável à que
se registou no Vietnam. Para a semelhança ser mais completa, nem faltou o
recuo dos americanos, abandonando aqueles que haviam encorajado. Com a
experiência, meditada, do passado recente, nunca esperei outra coisa. Ao
menos não tive as desilusões que outros, mais ingénuos, sofreram.
Em
Moçambique nunca haverá uma "vietnamização". O que pode haver, a partir
do tribalismo exarcebado, é uma "congolização" com mais tribos e com
maior dispersão no terreno onde as vias de comunicação, em consequência
da própria geografia, se tornam extremamente difíceis.
Contra
este tipo de revolta, que cabe nas previsões mais realistas, nem os
pesados tanques, nem os "orgãos de Staline", nem os mísseis teleguiados e
nem a infantaria cubana podem ter remota esperança de êxito.
Só
podem ser úteis para prevenir uma revolta por parte da única força
militar organizada que existe: a própria "Frelimo". Se os chefes dos
combatentes moçambicanos consentissem tal intromissão, estariam a
condenar-se a si próprios. Nem a pretexto de se lhes consentir a
passagem para agredirem a Rodésia, creio que embarquem em tal aventura.
Seriam dominados totalmente e passariam a subalternos soviéticos.
Os
comandantes da "Frelimo" (que foram os que se bateram no mato durante
dez anos) não podem esquecer o mandato nacionalista dos seus mortos. Não
podem desprezar Magaya e os seus homens, não podem ver-se humilhados
perante os aguerridos macondes que conduziram e que, além de terem
lutado no seu planalto, vieram a ser a flecha audaciosa que se infiltrou
em Tete.
A presença militar de cubanos e russos seria o
cativeiro sem esperança dos soldados da "Frelimo". Não creio que o
permitam e ainda têm força para impedir tal decisão.
A guerra
tribal seria, então, inevitável. A unidade de Moçambique estaria
irremediavelmente perdida. Nem o próprio Samora Machel se atreveria a
dar tal passo.
Olhando os factores externos não se pode ignorar as possibilidades da reacção chinesa.
Os
chineses nunca tentaram, ao contrário dos soviéticos, realizar uma
penetração política. Quanto muito fizeram divulgação cultural. Não
buscaram conquistar adeptos de novo imperialismo. Cuidaram mais de fazer
amigos. Por esta via exercem a sua influência. Foram eles que, com a
sua persistente capacidade de organização, permitiram à "Frelimo"
ultrapassar as fases mais críticas e resistir até lhes ser proporcionada
a vitória. Os militares da "Frelimo" sabem que foi assim.
Será,
no entanto, compreensível que os chineses, depois dessa participação
activa no que era a luta de libertação de Moçambique, não estejam
dispostos a assistir impassíveis ao novo colonialismo soviético já por
demais evidente e que se tornaria gritante com o hipotético desembarque
de forças cubanas ou russas.
Além de um acto de desprestígio para
a China Popular, isso seria uma provocação contra a sua influência
cultural e contra a libertação autêntica dos territórios em que se
envolveu tão profundamente. Há que não esquecer que o "TANZAM", ligando a
Zâmbia à Tanzânia foi produto do esforço e do financiamento chinês. Na
altura pareceu que visava apenas libertar a Zâmbia do risco da asfixia
por parte dos portugueses mas, vistas bem as coisas, pode acontecer que
os chineses tenham projectado a sua visão a mais longe. Hoje pode
converter-se em antídoto contra eventual manobra imperialista soviética.
Na imagem: cogumelo atómico (clique para ampliar)
Acontece,
por outro lado, que Moscovo teme Peking por conhecer a sua capacidade
de reacção ao longo de uma extensa fronteira comum em que nenhuma
vantagem está do lado russo. Os chineses são os únicos que não carecem
de recorrer à ameaça da bomba atómica para dissuadir os soviéticos. São
também aqueles contra quem os soviéticos nunca se atreveriam a usá-la.
Não
deixam de ter presente o realista aviso de Mao-Tse-Tung: "se houvesse
uma guerra atómica, o último sobrevivente sobre a terra seria certamente
chinês". Mao-Tse-Tung, até hoje, não cometeu um único erro de previsão
nos seus dizeres.
A China Popular não toleraria um desembarque
cubano-russo em Moçambique. As advertências de Peking têm mais peso do
que as de Washington. Os chineses, para reagirem, não têm de se envolver
nos meandros democráticos do Capitólio. Os russos sabem-no e o primeiro
aviso parece já haver sido dado num oportuno incidente de fronteira
noticiado pelos jornais.
Por todos os factores anunciados, em que
o último não é certamente o menos importante, não creio na intervenção
militar soviética em Moçambique.
Atrevo-me a fazer este vaticínio.
É
certo que armamento ligeiro abundante tem estado a ser desembarcado em
Nacala e a ser dali transportado pelas "Linhas Aéreas de Moçambique"
para diferentes portos do território. Destina-se a armar as guerrilhas
rodesianas e a reforçar o equipamento militar da "Frelimo".
Até aí podem chegar os soviéticos.
Samora Machel e os seus conselheiros fariam bem em pensar contra quem podem ser disparadas essas armas.
Comentário
Enquanto
tudo isto se passa e Moçambique sofre a escravidão imposta por uma
ditadura odiosa, o mundo parece não se dar conta da importância e da
gravidade de quanto ali acontece.
Já o mencionei anteriormente, mas julgo oportuno voltar a referi-lo neste comentário final.
O
caso de Angola, pela espectacularidade dramática que o rodeou, fez com
que mais gente pensasse nele. Não o conheço com a profundidade de
informação de que disponho sobre a tragédia que Moçambique atravessa.
Não quero fazer comparações porque para a dor não existe padrão de medida.
O
que acontece é que sobre Moçambique quase se abateu uma muralha de
silêncio enquanto ali se passa um dos dramas da descolonização
portuguesa.
Não deixo de ser sensível ao sofrimento das gentes da
Guiné, ao terrível e irresponsável abandono de Timor, aos horrores que
tombaram sobre Angola.
Na imagem: Agostinho Neto e Fidel Castro
No
julgamento do processo da descolonização não pode ficar de fora a
destruição da Pátria Portuguesa, abalada criminosamente da sua
possibilidade de sobrevivência e afastada talvez para sempre da posição
que lhe pertencia no mundo.
Creio, com profundidade de fé, que
todos os autênticos nacionalistas dos vários quadrantes onde chegara a
presença lusitana, preservávamos como ponto de honrosa convergência a
grandeza de Portugal a que nos sentíamos ligados pelo sangue ali
amorosamente misturado, pela fusão de culturas promovida com desvelo e
pelos rasgados horizontes que nos prometia o sabermos que seríamos, em
breve, mais de duzentos milhões a venerar o vínculo abençoado que nos
reunia.
Queríamos ter casa própria.
Mas também queríamos
que nela coubessem os irmãos que houvessem construído a sua, como esse
portentoso Brasil que era para nós exemplo e farol de guia.
A
possível arrogância apaixonada com que nos sentíamos moçambicanos, e
pretendíamos poder sê-lo, nada continha de ofensivo para Portugal.
Talvez que mesmo, nesse nacionalismo africano, afervorasse o nosso amor pela Pátria-Mãe de todos nós.
Os meus filhos e os meus netos de qualquer cor nunca esqueceriam os pais ou os avós.
Ambicionávamos
que os que não tivessem os mesmos laços se sangue sentissem como eles
sentiriam, uma vez que eles sentiriam como eles.
Esse esteve para ser o milagre português.
Só pretendi, nestte livro, provar porque assim não foi.
A
descolonização de Moçambique, país promissor convertido em terra
queimada, não foi o único caso e nem terá porventura, sido o mais
trágico.
Mas foi o problema que eu vivi. Aquele que intimamente
conheci. E que mais procurei, por isso mesmo, salvar da queimada que
pressentia avizinhar-se.
Assim me devotei a escrever tantas e tão dolorosas páginas sobre o drama que testemunhei.
Bem desejaria que outros o fizessem sobre o que experiências diferentes possam oferecer.
Assim ergueríamos o processo de descolonização.
E os homens responsáveis por ela haveriam de enfrentar o tribunal que um dia os julgará, sem apelo diante da História.
Enquanto o tribunal de Deus, em que creio, não lhes toma contas dos actos cometidos (ob. cit., pp. 383-399). (...)
Continua