Ela irá sofrer o seu
holocausto. Traída pelo próprio Portugal, por alguns dos seus próprios filhos,
será entregue de uma maneira traiçoeira, miserável e cruel.
Minha querida Moçambique!
Eis que chega mesmo o seu
Apocalipse. Passavam-se já dez anos de guerra e o terrorismo já pouco aparecia.
Ele em nada afectava o seu andamento. O Comando Supremo anunciava que o
terrorismo estava acabado.
De Lisboa começaram a chegar
notícias de que Moçambique ia ser entregue a um dos movimentos empenhados na
sua independência, a Frelimo. Mas a que propósito? Se havia outros movimentos
empenhados no mesmo e que para isso também lutavam, porque só à Frelimo iam ser
entregues os destinos de Moçambique? As maquinações para esse desfecho
repentino tinham sido feitas na sombra e até já vinham de longe.
Um pequeno grupo que se
apercebera da traição procura tomar medidas para alertar o povo moçambicano da
tragédia eminente e fazer ver isso ao Governo em Portugal. Em Lourenço Marques,
toma de assalto o Rádio Clube e emana para toda a Província um alerta que a
electriza.
Como nos últimos anos
os salários foram sempre aumentando, uma percentagem enorme de negros já
possuía os seus rádios. Facilmente contrabandeados da Rodésia e do Malawi,
era-lhes facílimo adquirirem-nos.
Calculava-se em perto de meio
milhão o número de rádios lá dentro. Ávidos de notícias e propagandas,
juntavam-se aos magotes para as ouvir.
A não ser uns poucos traidores, míseros
tartufos e oportunistas internos, ninguém, pode dizer-se, ninguém, concordava
que os seus destinos fossem entregues a esse partido, que já se mostrava
absolutamente comandado pela Rússia. O acordo de Lusaca não estava ainda
totalmente assinado. Estava, sim, por alguns que atraiçoaram Moçambique e que a
seguir atraiçoariam quase todo o Ultramar Português. Quando se diz quase é
porque faltou Macau que, de momento, não interessava à China, e os Arquipélagos
da Madeira e dos Açores. Este último, como estava hipotecado aos Estados Unidos
da América não seria entregue com tanta facilidade, pois na verdade qualquer destes dois arquipélagos foram na mesma
"colonizados”.
Apela-se então angustiosamente
para um General que, como chefe supremo da nossa Pátria, esteve nesse posto o
tempo suficiente para que a traição se consumasse e, como é óbvio, foi pouco.
Ele subscreveu o miserável Acordo de Lusaca. Acordo, rendição, tratado, venda,
chamem-lhe o que quiserem: rigorosamente, o documento mais traiçoeiro e covarde
de que os portugueses foram vítimas em toda a sua história. Há quem diga que
esse movimento foi idiota, que, para ter efeito, devia ter sido feito mais
cedo. É muito fácil ser-se estratega de café. Ele falhou. Tinha que falhar. A
traição, bem planeada, já vinha de muito atrás, teve uma virtude: alertou o
Mundo, sobretudo este Mundo Ocidental cego sobre o futuro a que a África
Austral se condenava.
Dava a impressão de que
o nosso exército tinha sido miseravelmente derrotado, quando isso não
acontecera. Pelo que diz o Dr. Marcelo Caetano no seu livro, "O 25 de
Abril e o Ultramar", vê-se que já havia artistas para esta grande farsa.
Logo a seguir, o chefe da
Frelimo, Samora Machel, badalava aos quatro ventos, que tinha derrotado o
exército português. Meu Deus! Ao que chegaste, querido Portugal! Os teus
próprios filhos a apunhalarem-te por todos os lados. Em Lourenço Marques aquele
grito de angústia é calado.
Segue-se uma
carnificina horrorosa. Milhares e milhares de portugueses, que o foram até esse
dia, são selvaticamente chacinados - portugueses de
todas as raças. Mas o exército, esse exército ido da Metrópole, já virava
costas. Deve-se a uns poucos militares dos comandos, pára-quedistas, grupos
especiais, fuzileiros navais que agiram, por conta própria e a muitos civis, a
carnificina não ter sido maior. Começava a informação a ser controlada com
todos os requintes para introduzir novas ideologias e, sobretudo, o ódio
contra o português, o branco, que tinha de ser acusado como opressor,
escravizador, colonialista e imperialista, para a seguir sofrer toda a casta de
humilhações a que o ser humano pode ser sujeito. De que resultou essa
carnificina? Hábeis agitadores tinham levado a ideia de que o Rádio Clube
estava nas mãos dos "opressores" brancos. Era necessário toma-lo. A
Frelimo era agora quem mandava. Abaixo os brancos! Morte aos brancos! Viva a
Frelimo!
Mais de duzentos mil negros,
habitavam à volta de Lourenço Marques. Então um número incalculável, armado de
catanas, facas, ferros e armas começam a convergir de todos os lados e com um
objectivo: chegar ao centro da cidade, ao Rádio Clube, matar todo o branco que
lhe apareça à frente. E foi a chacina. Eles não chegariam ao centro da cidade,
mas o saque, os incêndios, os crimes atingiram proporções terríveis. Foram três
dias de horror naquela bela cidade.
No fim, em valas abertas por
“bulldozers” seriam enterrados milhares de corpos horrivelmente mutilados,
marcando a primeira consequência do Acordo de Lusaca. Nesse confronto, a
maioria dos mortos seriam negros. Na caminhada para a cidade matavam os brancos
que iam encontrando, incendiavam-lhes as casas, saqueando lojas e armazéns.
Completamente embriagados, desvairados e desorganizados ainda chegaram bem
dentro, mas foram violentamente sustidos.
Mas os agitadores,
porém, continuavam o seu trabalho. Tinham morrido muitos negros: à volta de
dois mil. Agora tinha de ser dada uma lição aos brancos, foi o 21 de Outubro!
Na baixa da cidade um grupo de comandos responde a tiros aos insultos e vexames
que elementos da Frelimo proferiram atingindo mesmo a Tropa. Estava lançado o
rastilho! Milhares de negros bloqueiam todas as saídas da cidade; dá-se
novamente o assalto a lojas e casas. Começam a chegar carros que levam e trazem
quem trabalha na cidade: Começara a matança. Desprevenidos, carros e camionetas
de passageiros vêm cair numa ratoeira que jamais previam. Obrigados a parar,
não deixam que os passageiros saiam. São virados e
incendiados.
Quando, num carro, ao longe,
os ocupantes pressentiam a armadilha em que cairiam, paravam e saíam numa tentativa vã de salvação. Eram imediatamente
perseguidos por uma multidão em fúria, e massacrados impiedosamente.
Um amigo meu, o velho
Tomás, a quem chamavam o Vovô Tomás, dos Serviços Meteorológicos, onde
trabalhava, muito bom homem e muito querido por todo o pessoal, foi agarrado
quando regressava do aeroporto, do serviço, e depois de bem seguro por meia
dúzia de facínoras, outros meteram-lhe um ferro de construção, muito afiado, do
ânus à garganta, tendo morrido aos gritos lancinantes, perguntando porque lhe
faziam aquilo. "Porquê? Porquê?" No fim,
meteram-no no próprio carro onde ficou carbonizado.
Mulheres de qualquer
idade e raparigas, mesmo miúdas, eram levadas para o meio do capim e
violentadas, algumas até à morte, por feras humanas, que nelas despejavam o
ódio selvagem e lúbrico de que estavam possuídas. As poucas que sobreviveram, ficaram patetas para toda a vida.
Morreram assim com uma
barbaridade diabólica, portugueses, brancos, cujo número é difícil de calcular.
Há famílias que jamais saberão dos seus entes queridos. Ainda àqueles que
conseguiram desmantelar a primeira grande investida contra a cidade, outra vez
se deve a não ter ido mais longe esta nova carnificina. Quando milhares de
negros se preparavam de novo para invadir a cidade, um punhado de portugueses,
daqueles que não se fez história, mas provando a raça, reunidos e um tanto
organizados à última hora, fez-lhes frente e dispersou-os. Mas os habitantes da
cidade são tomados de terror. Os que podem, começam a
dirigir-se para o cais, onde, navios, alguns portugueses, mas a maioria
estrangeiros, são ocupados por indivíduos desvairados. Estes, largam,
superlotados e, muita daquela gente é evacuada para Durban, havendo quem
tivesse seguido para a
Índia. Ainda eram as consequências imediatas de Lusaca!
Mas antes, bastante antes deste sinistro acordo,
uma companhia de infantaria, lá para o Norte, rende-se vergonhosamente a meia
dúzia de Frelimos e é obrigada por essa meia dúzia a atravessar o Rio Rovuma,
prisioneira, sendo logo a seguir visitada pelo chefe da Frelimo que lhe chama
restos miseráveis de um exército imperialista, que ele tinha derrotado.
Operadores habilmente manipulados, filmam esta vergonha que a seguir é
projectada em todos os cinemas de Moçambique e do Mundo. Pelo Chire, na
Zambézia, onde os terroristas nunca tinham conseguido pôr os pés, entrava um
grupo chefiado por Bonifácio Gruveta, um dos bons guerrilheiros da Frelimo, uns
vinte homens, dão meia dúzia de tiros e instalam-se. Pronto! A Zambézia estava
ocupada!
Do nosso exército, havia uma companhia em Milange e outra no Chire.
E quem escreve estas linhas,
porque voava nessas regiões, é uma testemunha desgraçada e infeliz do que havia
de acontecer.
Por detrás de tudo já havia traição.
Os altos comandos
desviam para o Chire uma companhia de Fuzileiros navais que, à primeira vista,
irá dar ânimo à que lá estava e reforçá-la. Qual!
Os componentes da companhia que já lá estava,
andavam pelo mato, com bandeiras brancas à procura de terroristas para pedirem,
não sabia eu bem o quê! Os da companhia de Milange faziam o mesmo. Eu
contactava diariamente com todos. Levo, no meu avião, de Quelimane para o
Chire, dois Capitães que, a mando dos altos comandos, iam ver o que lá se
passava, fazer um inquérito. Lá aterrámos e, chegados ao quartel, mesmo ao lado
da pista, fomos recebidos por dois oficiais dos Fuzileiros Navais. Essa
companhia, dada a desmoralização, aparecia-me também como um espectro miserável
do nosso Exército. Quase duzentos homens, a maioria desfardados, deambulavam
por aquele grande quadrado, apáticos a tudo. Para reunir a companhia de
infantaria, que era o objectivo, passaram-se horas. Então, simples observador
que também já tinha sido soldado, começo a suspeitar que algo de muito grave
haveria por detrás de tudo. No meu tempo um traidor era sumariamente fuzilado.
Por fim, lá formou a companhia na parada do Quartel. Aquilo, de tropa não tinha
nada. A maioria apresentava-se em calções e sem camisa. Era tempo quente.
Calçados de sapatilhas desportivas, eram um escárnio ao exército. Mas lá formaram.
Um dos tais Capitães que eu levara, falou, mas de que maneira! Que tinha vindo
ali para se inteirar do comportamento da companhia, pois havia notícias de que
ela se recusava a combater. Que estava ali a companhia de Fuzileiros Navais,
chegada três dias antes para a reforçar, e que não havia qualquer justificação
para a atitude que eles estavam a tomar, o que podia ter gravíssimas
consequências. O homem, que me parecia algarvio, falou, falou e eu, colocado meia dúzia de passos atrás, só notava na cara da
rapaziada sorrisos irónicos, que ainda mais me baralhavam. Até que ponto
chegaria a sinceridade daquele Capitão? O que estava a acontecer ali não
passava de uma farsa. O Alferes mais antigo, como aquilo já durava há muito,
percebendo que a rapaziada se preparava para destroçar, virar as costas ao
Capitão, falou também alto e em bom som: "Olhe, meu Capitão! Aqui a guerra acabou! Não
há mais guerra, façam o que quiserem. Acabou!"
Julgava eu que dali
resultaria uma reacção enérgica de quem tanto falara, mas fui logo surpreendido
pela maneira suave como ele deu ordem para destroçar. Já eram mais que horas
para se comer qualquer coisa. E lá fomos, eu, os dois Capitães e os Oficiais da
companhia de Infantaria, todos Alferes. Eu notava que naquela fase final não
havia Capitães de carreira à frente das companhias. Só milicianos.
Depressa se comeu uma boa
caldeirada daquele peixe "pende" do Rio Chire. No fim, sentados, o
Capitão puxa da sua pasta de inquérito e, um por um, foi questionando todos os
oficiais. Fosse pelo caminho que fosse, no fim ele obtinha sempre uma resposta
firme e concreta: “Acabou a guerra! Não fazemos mais guerra!"
Único civil no meio
daquela tropa, comecei a sentir-me francamente mal disposto. Resolvi
levantar-me e ir lá para o fundo da sala, onde havia um mapa, e disfarçar,
fingindo calcular rumos e distâncias, mas a minha cabeça era um turbilhão. Lá
para cima, em Milange, andava o Capitão miliciano, claro, e os Oficiais, atrás
do Bonifácio Gruveta, a pedir paz. Ali, era o que estava a ver. O que se
passaria por detrás de tudo isto? O Capitão levanta-se e diz para os Oficiais:
"Vocês fizeram afirmações muito graves, mas uma vez que as fizeram, eu
aconselho-vos a que as mantenham sempre, senão será muito pior. Têm de manter o
que disseram!" Ainda mais baralhado fiquei. Virou-se então para o outro
Capitão, o que nos tinha acompanhado e disse: "O que diz o camarada a isto?" Este levanta-se e eu jamais poderei esquecer a
resposta. Porque éramos amigos, esperava que algo de concreto saísse dali e saiu:
"Merda! Merda! Merda!" Foi esta a sua resposta!
Foi assim que para mim acabou o exército na minha
querida Zambézia, foi assim que acabou o nosso exército ! Era o fim.
Regressamos a Quelimane e, dali, os dois Capitães seguiriam para a Beira, a dar
contas, e eu, para o Gurué. No dia seguinte passaria por Milange. Vergonha das
vergonhas! O Bonifácio Gruveta tinha mandado colocar duas minas anti-carro na
estrada Milange-Quelimane, que tem trezentos e oitenta quilómetros e avisaram:
"Não passa carro nenhum por essa estrada, nem pela de Milange/Gurué,
duzentos quilómetros, nem Milange/Mopeia, outros duzentos quilómetros. Assim
ficou toda aquela área isolada durante um mês. Só eu, de avião, nunca deixaria
de fazer as ligações, sobretudo com Quelimane, onde estava a sede do Governo do
Distrito da Zambézia, A resposta do nosso exército era deambular agora
por toda a parte, com bandeiras brancas, pedinchando paz! Começam então a
aparecer descaradamente Frelimos. Frelimos? Sim. Grupos de vadios que se diziam
Frelimos, que assaltavam as lojas e exigiam roupas,
botas, tudo o que fosse de vestir e de comer. A maioria das
roupas, nas lojas, eram de caqui. Então, com umas calças ou calções,
qualquer daqueles vadios, a maioria criminosos, se dizia Frelimo. Começa a
desgraça de todos os comerciantes. Deitavam mão a qualquer carro, fosse de quem
fosse. Saqueiam tudo. Em vez de fugirem de uma situação desgraçada que lhes foi
criada, sem o saberem, há portugueses que fazem frente, procurando defender o
que era seu, seguido de anos e anos de maiores sacrifícios por aquele mato.
Esses eram barbaramente abatidos - homens, mulheres e
crianças!
Outros fogem, levando o
que têm no corpo. Por toda a parte acontece o mesmo. Dada a propaganda incutida
através de anos, chegava a altura em que eles impunemente podiam actuar com o
seu ódio selvagem. Os brancos, contra quem tinha sido assanhada toda a
propaganda, estavam desgraçados. O Exército, único sustentáculo que ainda podia
evitar aquela situação, desaparecera. Nos próprios carros do exército, os
vândalos iriam depois continuar toda a série de tropelias. "Sai português
de merda! Sai branco de merda! Vai para a tua terra!" E foi assim que a
Zambézia praticamente se despovoou daqueles tantos portugueses que há
muitíssimos anos para lá tinham ido trabalhar e não oprimir, nem escravizar,
como a propaganda fazia crer.
Uns morreram, outros
conseguiram sair, mas sempre ficariam alguns que terão de se sujeitar a viver
miseravelmente em tais condições. Por toda a Moçambique acontecia o mesmo.
Mas é fácil avaliar-se a razão
da situação tão repentina e trágica criada àquelas centenas de milhar de
portugueses. Note-se sempre que, bem antes da assinatura do tal acordo, o
exército se portava daquela maneira infame. Era tudo segredo!
O negro apercebeu-se e
toma força, sabendo-se senhor absoluto de toda aquela Moçambique, onde, para
oito milhões que é o seu número, somente trezentos mil brancos estão a mais - os tais opressores com que é preciso acabar. “Atirem-nos
aos tubarões”! Este
incitamento até vinha da Metrópole. De frisar que muitos daqueles negros não
concordavam com esta situação, mas não tinham outra alternativa, senão eram
também eliminados.
A seguir, o Reverendo
Uria Simango, chefe de outro partido pró-independência, era traiçoeiramente preso
no Malawi, levado para Milange e dali, infelizmente num avião nosso, da minha
Companhia, pelo colega Marques, para Metwara, do lado de lá do Rio Rovuma, na
Tanzânia, onde algozes da Frelimo o esperavam e lhe deitaram a mão! As últimas
notícias que tive da Joana Simeão, outra chefe de movimento pró-independência,
que usava óculos com lentes fortíssimas foi que, meia louca, sem óculos, porque
lhos arrancaram, só com uma tanga, porque a querem assim meia nua, por ali anda
- ou andava - até que a morte a liberte de mais
sofrimentos, no campo de concentração da Gorongoza.
Mas foi sobretudo um triste e
desgraçado fim para esta geração de portugueses que, por infortúnio, o teve que
sofrer.
Juntou-se tudo: a traição, a morte, a humilhação, famílias desfeitas e
misérias.
Quando acabará isto?
Entretanto, da Metrópole, os
responsáveis por tudo bradavam para o Mundo que se estava a realizar uma
descolonização exemplar!
Será que esses homens esperam
chegar até ao fim da vida impunes? Será que só o peso que sentem na consciência,
se é que a têm, constituirá a pena a pagar?
Este Portugal, de história
tão maravilhosa que, por elevados ideais, se expandiu pelo mundo, marcando uma
posição ímpar em toda a História Universal, viu-se de repente reduzido às
dimensões da sua fundação, mas com uma população imensamente superior. Para
onde irão amanhã os portugueses com mais aptidões para o trabalho? Para onde?
Estava eu entre os milhões de
portugueses que acreditavam que aquela Moçambique, em espantosa evolução em
todos os domínios, se transformaria nas décadas seguintes num dos países mais
felizes do Continente Africano. Dispunha de todas as condições para isso, todas
as raças que a ocupavam se entendiam e cada vez
melhor. Fora, de todos os territórios de África, da África Austral, aquele onde
houvera menos racismo e esse pouco, com o tempo, acabaria. O Acordo de Lusaca
incendiou o racismo! Logo a seguir a propaganda redobrou: "Acabar com os
opressores portugueses, colonialistas, imperialistas!” Para o negro esse
opressor era o branco, português. Existiu então um governo de triste memória,
que mediou entre a data da assinatura e a entrega.
Roma caíu entre orgias e bacanais!
Moçambique cairia,
seria entregue, por um governo que parecia querer mostrar ao Mundo que todos os
portugueses, mesmo os que lá estavam radicados, não passavam de uns covardes.
Esse Governo desarmou todos os portugueses, que foram brutalmente obrigados a
entregar qualquer arma que possuíssem e ai do que fosse apanhado com alguma!
Ficaram assim indefesos e sujeitos a tudo.
Depois desceriam os Chefões da Frelimo,
desde o Rovuma até ao Maputo, entre festas, discursos e banquetes sempre bem
servidos e melhores regados. Eles traziam a Taça de vencedores, oferecida de
qualquer maneira, já explicada. Constatei, que de todos, o mais aberto, com
quem conversei à vontade, ao contrário de outros, foi o Joaquim Chissano, mas
nessa marcha por Moçambique abaixo, todos voariam comigo. Falei com todos. Tal
como falava tempos atrás com oficiais do nosso exército -
alguns responsáveis pela traição - dentro do meu avião, falava agora com estes.
Auscultei-os a todos. O último com quem voei, foi com o Samora Machel, que a
seguir seria o 1°. Presidente da República Popular de Moçambique. Mostrei-lhe
tão bem quanto pude, as belas terras, as belas plantações de coco, sisal e chá
que sobrevoamos e faziam parte das riquezas da Zambézia. Mostrei-lhe, lembro-me
bem e ele devia lembrar-se também, se vivesse, as terras do Ile e de Namarrói
que produziam a mandioca de mais fina qualidade de Moçambique e em quantidades
fabulosas. O homem mostrava-se interessadíssimo e ávido de saber. Contudo,
esquivava-se à conversa.
Mas, desde Marrupa, lá bem ao norte, por onde
entrara, que as suas frases predilectas, nos seus longos discursos, eram:
Abaixo o opressor colonialista! Abaixo o Imperialismo! E aquela massa do povo
delirava.
Num banquete, na Morrumbala,
onde não faltava nada, daqueles banquetes à velha Zambézia, notei que, comendo
galinha, peru e um ou outro doce, ele só bebia água. Só no fim e porque uma
senhora insistiu, bebeu um pequeno copo de vinho Clarete. O grande discurso
seria a seguir no Campo de Futebol, com um enorme auditório e lá terminou, como
todos os outros: "Abaixo! Abaixo! Abaixo!"
A uma conclusão eu ia
chegando: a minha posição passava agora para a de opressor colonialista ou
imperialista e a dele para a de "O Novo Imperador de Moçambique".
Depressa, como muitos outros, veríamos e sentiríamos os efeitos de tais
discursos, em que se baseava toda a propaganda da rádio levada a todos os cantos.
O povo, na maioria inculto, bebia daquilo e vomitava ódio contra os
portugueses. Eles eram os opressores colonialistas. Completamente desarmados, a
tropa a cavar, absolutamente desamparados, como seria a vida a seguir?
O Luís, esse belo companheiro
de toda aquela aviação, desistia de voar mais sobre Moçambique. Qualquer
cretino se achava com sabedoria e poder para desfeitear profissionalmente fosse
quem fosse, e também a ele, que tanto trabalhara. Mais de trinta mil horas ele
tinha voado sobre Moçambique que tanto amava. Cansado e desiludido, voltou à
Metrópole onde, a princípio teve de cavar batatas, para sobreviver, numa
pequena quinta que o pai lhe deixara. Só mais tarde lhe seria atribuída uma
reforma. As caminhadas que teve de fazer por esse labirinto burocrático, onde
os que vieram de lá só encontravam resistência, ia
dando com ele em doido. Em tempos tinha mandado de Portugal para Moçambique
umas centenas de contos, herança do pai, e construíra na Matola, bem perto de
Lourenço Marques, uma belíssima residência onde pensava acabar os seus dias.
Essa casa foi-lhe roubada e nacionalizada pelo novo Governo.
O nosso último encontro, numa fugida que
eu dei da Rodésia a Portugal, teve muito de alegria e muito de tristeza, ao
recordar tudo aquilo. E ele, sempre e sempre ligado aos aviões e às
possibilidades que eles proporcionam, chamou-me a atenção para esta juventude
actual e para o muito que ela poderia fazer a favor deste povo infeliz, metendo
aviões, claro, e então divagava: "Esta mocidade que estuda, sobretudo a que
tem por finalidade a medicina ou o professorado tem uma oportunidade única de
alcançar o objectivo de voar. A massa estudantil é hoje respeitada por qualquer
destes governos, que queira subsistir. Que exijam desses Governos que o seu
serviço militar seja prestado na arma da aviação. Em seis meses, faz-se um
piloto. Não se compreende que até hoje os serviços médicos não cheguem ao
cantinho mais escondido deste Portugal pequeníssimo, acontecendo o mesmo com os
serviços de alfabetização. A gente só ouve falar em milhões e mais milhões a
gastar para suprir esse mal! Pois com umas dezenas de pequenos e seguríssimos
aviões, como há hoje, e são baratos e, não falemos já em helicópteros, amanhã
os jovens médicos poderiam chegar a todos esses cantinhos, juntando à alegria,
que por força das circunstâncias, lhes dá a profissão que abraçaram, a alegria
também de voar. Depois, com uma dúzia de pequenos aeródromos, umas faixas com
umas centenas de metros, abertas ao longo de uma linha longitudinal deste pequeno
rectângulo que se chama Portugal, puxando um pouco para o interior, pois o
litoral sempre está mais bem servido, resolver-se-ia o problema de uma maneira
alegre, simples e barata, que os grandes políticos querem resolver com os tais
muitos milhões, sempre em tristes imitações de países que têm tentado
resolvê-lo também, acabando tudo em fracasso.
Juntem o agradável ao útil! Voar e trabalhar!"
Será isto uma quimera?...
Eu continuei a voar. A minha
mulher ficava lá para trás, em casa e, embora não mo dissesse, notava, ao fim
da tarde, quando voltava, que ela vivia cheia de temor. Possuíamos no campo da
aviação uma Pousada com restaurante que, de repente, começou a ser frequentada
por toda a casta de malandros, que queriam comer e beber de borla. O encarregado
avisou-nos logo que era impossível aquilo continuar. Fechei-a imediatamente,
alegando que era um encerramento provisório, para obras.
Aparecia-me à tarde o próprio
comandante da Frelimo a exigir que abrisse, acompanhado pelo seu grupo, armado
de pistolas metralhadoras e baionetas, para me intimidar. Até ali eu tinha
sido, dada a minha vida e até porque era amigo de todos, das pessoas mais
respeitadas da região.
Mas aquilo era gente que
tinha vindo de toda a parte, inclusive da Tanzânia, e que não respeitava
ninguém. Valeu-me ter conhecido o guerrilheiro que entrara pelo Chire,
Bonifácio Gruveta, que já então governava a Zambézia e que deu ordens para não
me aborrecerem, pois ele reconhecia-me como elemento útil, que não interessava
sacudir. Continuei a sair todas as madrugadas para os meus voos. Puseram um
grupo de dez frelimos de guarda ao campo da aviação, que grosseiramente
revistavam as bagagens dos passageiros que partiam ou chegavam, à procura de
armas.
Transformaram em
quartel uma casa minha, que ocuparam sem qualquer cerimónia. Colegas meus, da
minha Companhia Aérea, eram presos e vexados por toda a parte, onde aterravam.
Mas eu já arranjara outro conhecido da Frelimo, lá em Quelimane, que era o
braço direito do Bonifácio Gruveta e chefe militar da Zambézia,
"comandante" Maquival. Procurava defender-me com mais esse
conhecimento. Este seria mais tarde irradiado da Frelimo e metido num campo de
reeducação. Quando planeei a minha fuga, ele, sem o saber, abriria as portas.
Contactávamos muito e ele ganhou confiança absoluta em mim.
Numa tarde, quando
cheguei, depois de todas as revistas, dirigia-me para casa quando fui abordado
pelo chefe daquela guarda, naturalmente analfabeto, que me disse: "Não
entras em casa, não. Está aqui uma bala que foi encontrada à tua porta. Tens lá
armas com certeza. Vamos passar revista à tua casa". Eles distribuíam
assim balas para comprometerem qualquer um. Não concordei. Vinha cansado e
adoentado, queria descansar. Que passassem revista no outro dia, pois até iria
trazer o Comandante Maquival e então todos podiam revistar tudo. O que eu fui
dizer! Falar no Comandante Maquival! "Aqui não há comandantes. Comandantes
somos todos nós. Quem manda agora é o povo. Vais abrir
já a porta. Tens lá armas. Também és um colonialista". Esta conversa
passava-se comigo cercado por dez homens irresponsáveis, com nove baionetas
apontadas ao corpo, por todos os lados , já todos a berrar, apodando-me de
reaccionário.
Era o primeiro passo, se não
me acontecesse pior, para me levarem para o Quartel, onde estavam já vários
amigos e porem-me com eles a cavar de manhã à noite, nos campos em volta. A
minha mulher que, de perto, assistia a tudo sem nada poder fazer, aconselhou-me
a que deixasse mesmo revistar a casa. "Quando acabar a revista a gente
quer também falar contigo" - dizia-lhe o comandante.
Mais de uma hora a revistar minuciosamente tudo e, como nada encontraram,
largaram a casa e viraram as atenções para ela.
À volta da casa havia limpeza
mas, lá para trás, como o terreno era grande, apareciam naturalmente ervas,
capim, até um riozito que passava abaixo. Este chefezito era o protótipo de
todos os que eu via ao passar em Milange, Tacuane, Chire, Mopeia, Morrumbala,
Mocuba, Luabo, Chinde e por tantas outras terras que visitava constantemente - ele, com uma pistola, e os nove companheiros com pistolas
metralhadoras russas, com baionetas. Todos, de uma maneira geral, analfabetos,
mas com "slogans" metidos na cabeça, que tinham como finalidade,
sempre, amedrontar e afugentar os poucos portugueses que teimavam em ficar na
terra a que do coração se agarravam e não queriam deixar. Nós fomos desses.
Tivemos depois que abandonar tudo, após trinta e dois anos passados só naquele
maravilhoso Gurué!
"Mamã! (era dessa
maneira que ele a tratava). Tens que pegar na enxada e capinar ali atrás, onde
tem capim. Mamã também é povo e todo o povo faz a mesma coisa. Também tem que
fazer latrina". Isto foi na altura em que houve uma ordem para se fazerem
latrinas por toda a parte, um simples buraco bastante fundo no chão, com uma
tábua em cima para se fazerem as necessidades e onde muitas crianças viriam a
morrer afogadas no tempo das chuvas, pois aquilo não passava de autênticas
ratoeiras onde elas caíam. Mas a arenga continuou e ele foi mesmo buscar uma
enxada nossa que estava sempre à mão, e entregou-lha. "Compreendeu mamã?
De amanhã em diante toca a capinar!” "Está bem, oh! Comandante !-
dizia-lhe ela. "Está bem!" Daí para a frente, ou me acompanhava no
avião ou se metia no carro mesmo antes de eu sair e ia para casa de amigos, lá
na Vila, regressando a casa só quando eu chegava. Mas ele ficou furioso com
essa atitude. As revistas aos aviões passaram a ser muito mais morosas e
contundentes.
Tínhamos dois cães de grande estimação e, uma
tarde quando chegámos, vimos que tinham vazado um olho a cada um, com as
baionetas. Tornava-se impossível continuar assim. E então, decidi e planeei
ir-me embora. Deixaria Moçambique, a Minha Zambézia, o meu Gurué, os meus
amigos e iria. Bem! Para onde, eu não sabia ainda.
Eu tinha de salvar a própria
pele, a da família e a de colegas que me quisessem acompanhar. Sabia que
muitos, por circunstâncias diversas, não o poderiam fazer. Mas aos muitos que
acreditavam naquilo, nos que batiam palmas por aquilo, que no íntimo pensavam
vir a ser "gente grande", como por lá se dizia, para o que bastava
colaborar, mesmo que tivessem de ser esbofeteados, ninguém se podia aventurar a
dar um conselho.
Infelizmente, logo a seguir,
alguns colegas, voando, seriam traiçoeira e miseravelmente abatidos nas regiões
de Cabora Bassa e do Chimoio (Vila Pery), sofrendo mortes horrorosas, o que
nada me surpreendeu, pois a esses eu tinha pessoalmente avisado que, pela força
das circunstâncias, chegara a hora de abandonar a terra que todos nós amávamos.
Retirando três de uma frota
que possuía mais de uma dúzia de aviões, que eram quantos voavam por aquele
Norte de Moçambique, sob a bandeira da T.A.Z., que possuía também vários
hangares e Oficinas de manutenção, cujo valor era altíssimo, a minha
consciência estava tranquila, pois não roubava nada a Moçambique nem aos meus
sócios.
Retirava o que era meu e para
benefício, se isso viesse a ser possível, para quem a vida se tornara
dificílima.
Por um então, o Mário Ramos,
que fugira para a África do Sul, onde conseguira um emprego e viria a morrer
logo a seguir num trágico desastre no avião que pilotava, a uns escassos quinze
quilómetros do aeroporto de Durban, tendo lá deixado a viúva e dois filhos de
dois e quatro anos numa situação desesperada, era necessário que alguém olhasse.
Tinha um filho, piloto
como eu, que não podia ficar para trás. Por vontade dele, já tínhamos
saído há mais tempo. Havia também um outro motivo forte: constava que no
discurso de 7 de Abril de 1976, Samora Machel iria comunicar a nacionalização
das crianças, e ele tinha já um filhito. A criação e educação foi também uma das grandes causas de muitas fugas que se
verificariam em Moçambique.
Acertámos a largada para 6 de Abril, véspera do tal discurso.
Teríamos de resolver
problemas de última hora, que foram resolvidos. Sairiam dois aviões “Islander”,
de dez lugares cada um, na madrugada desse dia, rumo a Salisbury, na Rodésia,
em beleza, sem que ninguém se tivesse apercebido disso. Tínhamos de afastar ou
destruir aquele maldito grupo que não largava. Eles mesmo iriam dar o flanco.
Mas eu, que já expliquei vários desastres
que tive na minha vida de piloto, omitindo mesmo outros de menor importância,
não posso terminar, sem mostrar também como se ia dando o último que, não sendo
eu um crente absoluto, quase sou levado a acreditar num milagre, pois
tecnicamente ainda não consegui saber como me safei. Era um "dia da Frelimo”, e o
Administrador fez uma convocação obrigatória para uma capinação
"histórica" no Gurué. Tinha de ir toda a gente! Resolvi não ir. Nunca
tinha ido a nenhum comício, nem a uma capinação: a que propósito havia de ir
naquele dia? Se ficasse em casa iam-nos buscar. Disse para a minha mulher:
"Amanhã vamos para Quelimane. Não ficamos aqui". Pela manhã levantei
voo num bimotor “Piper Aztec”. Fomos sobrevoar o local de capinação - e até era interessante. Estavam lá uns largos milhares de
habitantes, tudo a capinar. Tinham começado às cinco horas da manhã. Segui
normalmente para Quelimane, onde deparei com uma nevoeirada
tremenda.
O controlador avisou-me que o nevoeiro era muito
denso mas, eu, batido como estava com aquele aeroporto, pedi para tentar aterrar
pelo sul, e fui autorizado, àminha responsabilidade. Fazia tantas vezes assim!
Era mais uma. Fiz a primeira tentativa, que abortou. Fui fazer a segunda e
então aconteceu-me o pior. Não muito longe da cabeceira da pista, passava o Rio
dos Bons Sinais. A uma velocidade de cento e quarenta milhas, bato com o avião
na água. Foi como que uma pedra que a gente atira a rasar a água e, ela bate,
levanta, só indo mergulhar bem lá à frente. O altímetro e. nessa
altura, não tínhamos mecânicos para verificar instrumentos, já quase todos
tinham abandonado Moçambique - em vez de zero, marcava quinhentos pés. Eu ia
com toda a atenção no rumo do rádio farol e à altitude, quando a minha mulher
grita de repente e apavorada: "Água!" Instantaneamente puxei o
manche, remeti motores e instantaneamente também, um grande estrondo e um
grande estremeção. Ouvi os sinos de S. Bento a tocarem alegremente. Felizmente
que eu ainda não tinha arreado o trem de aterragem. O avião batera na água!
Fora para o ar, porque eu o puxara no tal ponto milagroso, e lá vamos nós
através do nevoeiro, experimentando os comandos, que obedeciam, até ver o sol
radioso lá por cima. Rumei para a direita, onde estava o mar, e dirigi-me para
a praia do Farol da Olinda, onde através de tantos e tantos anos, tantas vezes
aterrara, e lá fui, pela última vez, dizer adeus a areias onde penso nunca mais
poder voltar. Com preocupação fiz descer o trem, que actuou bem. Deslizei
cautelosamente por aquela praia fora. Saí do avião
para ver o que lhe tinha acontecido. Apetecia-me afagá-lo, como fazia noutros
tempos ao querido “Tiger”. O que tinha ele sofrido? Ao puxá-lo, devo ter-lhe
dado uma pequena inclinação para o lado direito e, assim, desse lado, o hélice
tinha entrado na água e estava levemente torto. Parte da blindagem, onde está
uma boca que dá para a entrada de ar para o sistema de carburação, tinha desaparecido,
e daí para trás, o material, feito de uma espécie de fibra comprimida que
parecia metal, estava todo esgaçado. A patilha, onde se põe o pé para subir à
asa, desaparecera. Por baixo, o “aileron” e uma parte da barriga do avião, tudo
esgaçado. A pancada tinha sido ali. De bicicleta, aparece-me um negro com um
bocado de blindagem que se soltara no momento da aterragem. Ainda hoje me
arrepio quando penso neste caso, pois não encontro explicação para ele. Dada a
posição em que o avião bateu na água, apesar de eu o puxar, o embate, por
pequeno que tenha sido, devia obrigá-lo a mergulhar, o que não aconteceu. Teria
ele batido somente numa onda? Mas mesmo assim!...
No íntimo acredito que teria
sido um fim digno para uma vida alegre dedicada aos aviões, que em breve teria
de deixar para sempre.
Em análise, para mim era mais uma consequência do acordo de Lusaca.
Não concordei com tal traição
e nunca me submeteria, mesmo que tivesse de pagar com a vida. Dali para a
frente a solução era fugir.
Um belo dia à tarde, chego do
meu voo, e a guarda do campo forma para me entregar uma carta. Era uma carta
solene e reparei nos sorrisos de toda aquela malandragem. Era simples, muito
mal escrita, mas compreendia-se o que eles queriam: "Patrão comandante
Faria. Ouve bem isto. Nós precisamos de camas e colchões e tu tens muitos ali
naquela casa. Dá a chave da casa, porque ela é nossa, é do povo. Não chateia,
ouviste?" Depois vinha uma assinatura ilegível do tal chefe do Grupo.
Disse-lhes que no dia seguinte daria resposta. Queriam a resposta
imediatamente. Convenci-os que tinha de tirar de lá umas pequenas coisas e,
depois, sim. Usei um processo que me foi sempre odioso. Mandei-lhes fornecer
cerveja à vontade para eles adormecerem as ideias. O que eu queria era ganhar
tempo.
No dia seguinte, cedo, segui
para Quelimane, mas desta vez com o propósito firme de me encontrar com o
Maquival, a quem dei a carta a ler e fui esclarecendo: "A continuar assim
tenho que abandonar o Gurué. Pelo menos o avião passa para Quelimane e assim já
não servirá tão bem aquela gente. Parece que é isso que eles querem!”...
O Maquival seguiu nessa mesma
tarde comigo e a esse, eles tinham mesmo medo. É que ele, com a sua pistola,
abatia logo quem o desrespeitasse. Não seria o primeiro a quem já o tinha
feito, e eles sabiam-no. Mais: o Maquival deu ordens para que abandonassem
imediatamente o campo de aviação, pois não havia necessidade de tal vigilância.
Tinha confiança em mim e nessa
noite mesmo, eles recolheram ao Quartel! Estavam abertas as minhas portas!
Desconfiando de fugas de aviões, o governo
obrigava o piloto que se deslocasse de um distrito para o outro, em voos fora
das carreiras autorizadas, a munir-se de uma autorização emanada somente pelo
Ministério que abarcava a aviação, em Lourenço Marques. O meu filho, mandou, de Quelimane, um pedido para fazer um voo na 2a.
feira, dia 5, para o Gurué, onde ia buscar uns passageiros convidados para um
casamento a realizar no Namialo, Distrito de Moçambique, perto do Lumbo, lá
para o Norte, donde só regressaria na 4a. feira. E veio a
autorização absolutamente legal, por mensagem aeronáutica. O resto foi simples
e fácil. O objectivo seguinte era a Rodésia. Como seríamos lá recebidos, não
sabíamos! Mas iríamos alegremente entregar-nos ao Destino.
Pior do que aquele Inferno que
transformaram Moçambique, não podia haver.