(...) Peking ou Moscovo
Quando
iniciei a minha actividade no Malawi, eu dispunha do melhor ambiente no
Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal, instalado no Palácio
das Necessidades e por isso conhecido com tal designação.
O Dr.
Alberto Franco Nogueira (que tão injustamente veio a ser tratado por
Marcello Caetano e tão dramaticamente perseguido depois do "25 de
Abril") foi uma das grandes conquistas pessoais do Presidente Salazar. A
sua formação liberal, bem vincada nos tempos académicos, tinha sido
seguida por uma actividade cultural que nitidamente a evidenciava.
Quando vejo classificá-lo de "fascista" não posso deixar de medir a
pobreza mental de quem o faça.
O que aconteceu é que começando
por exemplar, com probidade profissional, a política externa do governo,
acabou por a conduzir convictamente na defesa intransigente e mesmo
dura da integridade do Ultramar considerada no conjunto da Pátria
Portuguesa.
Trabalhámos juntos e sabia que não poderia contar com
a sua adesão para a política de realismo que eu viria a advogar. Por
isso nunca lhe apresentei essa opção. Respeitava-o na sua sinceridade
honesta e não desejava afectar a nossa amizade.
Poderia
discordar-se de Franco Nogueira (e eu discordei) nalguns aspectos da sua
actuação, mas parece-me indigno que portugueses viessem a encarcerá-lo
pela convicta defesa da sua patriótica posição.
Na imagem: Franco Nogueira
Diplomata
de alto nível bateu-se com intransigência pelos quadros da carreira
profissional, cometendo talvez o erro de avaliar os outros por si
próprio. Introduziu reformas no Ministério que na sua objectividade
estrutural conduziram, no dizer de colegas seus, a instaurar o
predomínio da mediocridade. Por outro lado, opunha-se ao ingresso na
diplomacia pela via política e com tal orientação, terá travado uma
valorização competitiva estimulante. A carreira, efectivamente, fora
anteriormente enriquecida pela aquisição de homens como Pedro Theotónio
Pereira, José Nosolini, Carneiro Pacheco, Duque de Palmela, Gen.
Venâncio Deslandes e Luiz Pinto Coelho, para só citar os que melhor
recordo.
Nas Necessidades coincidia, efectivamente, a
mediocridade arranjista de muitos (que vieram a revelar depois da
revolução a mais despudorada falta de carácter) com a valia técnica e
intelectual de outros. Homens como Marcelo Matias, Rocheta, Martins de
Carvalho, Calvet de Magalhães, Rui Guerra, Hall Themido, Garin Freitas
Cruz, Siqueira Freire e, mesmo, Menezes Rosas (para só citar aqueles com
quem directamente trabalhei) constituíam um escol digno de todo o
apreço. E na camada mais jovem, os nomes de Soares de Oliveira, Pereira
Bastos, Cabrita Matias, Lopes da Costa e Fernando Reino (para continuar a
mencionar os que melhor conheci) evidenciavam-se com qualidades nem
sempre aproveitadas pela melhor forma. Uma referência é, ainda, devida a
Pedro Pinto que a revolução veio encontrar como Secretário de Estado da
Informação e que compensava a sua total desorganização no trabalho com a
imaginação fecunda e dinâmica que dele transbordava.
Em 1964 era
director geral dos negócios políticos do Ministério o inesquecível José
Manuel Fragoso, de formação liberal mais radicalizada e profissional
dos mais distintos que a carreira contava. Actuava como o braço direito
de Franco Nogueira, exercendo acção moderadora que a intimidade das
relações lhe consentia. Deu-me todo o apoio e estímulo nos meus
primeiros passos no Malawi, cujo prosseguimento antevia com clareza.
Chamada urgente a Lisboa
Foi
neste ambiente de estreita colaboração, que só mais tarde os medíocres
viriam a perturbar, que recebi um telegrama de Franco Nogueira (em
Janeiro de 1964) logo seguido por uma comunicação telefónica do
governador-geral, Almirante Sarmento Rodrigues, pedindo a minha urgente
presença em Lisboa.
Estranhei os termos prementes da convocação
quando se sabia que eu estava, nessa altura, tentando embrenhar-me
apaixonadamente na missão do Malawi. Não fazia sentido o meu afastamento
e receei que nas Necessidades não estivessem ao corrente da importância
que o Presidente do Conselho atribuía à tarefa que me confiara.
Refilei
com Lisboa, pela via do governo-geral, e a resposta surgiu sem demora
pelo mesmo canal em 30 de Janeiro dizendo textualmente: "Favor explicar
engenheiro Jardim ser urgente sua vinda Lisboa por desejarmos
confiar-lhe missão especial". Pedi para me esclarecerem sobre o tempo
que essa missão me reteria e não resisto a reproduzir a bem humorada
réplica que me fizeram chegar: "Cinco dias, cinco semanas ou cinco
meses".
Claro que, com as coisas postas nestes termos, eu estava em Lisboa na tarde de 4 de Fevereiro.
Franco
Nogueira atendeu-me logo no dia imediato e disse-me tratar-se de uma
tentativa de estabelecimento de relações com a China Popular. Tinham-me
escolhido pela delicadeza da missão que não poderia fracassar, dado tudo
quanto nela se jogava. O Presidente do Conselho tinha estado reticente
mas dera a sua concordância, tal como aprovara o meu nome.
As
sondagens haviam revelado receptividade por parte de Chu-en-Lai que em
Conakri concedera uma entrevista a um jornalista americano de total
confiança chinesa (Edgard Snow que acompanhara Mao-Tse-Tung na sua
"longa marcha") afirmando que a posição anticolonialista não era
incompatível com o restabelecimento de relações com Portugal, embora
houvesse sublinhado que não tinha conhecimento de qualquer propósito de
Lisboa em tal sentido. Essas declarações tinham sido publicadas no dia 3
de Fevereiro e respondiam a artigos aparecidos na imprensa portuguesa
("Voz" e "Diário de Notícias") advogando a aproximação com a China
Popular no seguimento de ideias que Franco Nogueria confidenciara, em
Madrid, a um correspondente estrangeiro que se apressara em fazê-las
circular.
Na imagem: Escudo de Armas (Macau Portuguesa)
Através
de Macau dispunhamos de um bom contacto, Ho Yin, que estaria disposto a
acompanhar a Cantão (onde mantínhamos um consulado) uma missão
comercial portuguesa a que eu presidiria. Em Cantão tudo se organizaria
para prosseguirmos até Peking.
Franco Nogueira esclareceu-me de
que esta aproximação deveria ser genuína e, desde que iniciada, levada
às últimas consequências ou seja o estabelecimento de relações oficiosas
que desembocariam, a curto prazo, em relações diplomáticas.
A
China Popular teria interesse político nisso, pelo que representava a
ostensiva libertação da tutela americana por parte de um país, como
Portugal, membro da Aliança Atlântica e tradicionalmente anticomunista.
Depois do reconhecimento francês (que havia sido duramente atacado na
NATO com a única posição favorável da Alemanha e de Portugal) isso
traduziria notável vitória para Peking cujas compensações contávamos
recolher. Mas era preciso andar-se depressa para não tardarmos entre os
países ocidentais que viriam, certamente, a seguir o mesmo caminho.
Em conclusão: a manobra depois de iniciada era irreversível e tinha de ser feita convictamente, com sinceridade.
Para
além do meu invocado jeito para lidar com os mais estranhos países,
sabia-se da minha simpatia pela China Popular e mesmo de certas posições
que tomara em favor da sua ideologia.
Não neguei. Disse que
aceitava a missão. e conclui que estavam bem informados. Todo o meu
sonho, de há muito, era conhecer directamente a China Popular e tentar
compreender o milagre da sua revolução doutrinária num país de milénia
cultura e tão vastas proporções humanas.
Preparei-me,
afincadamente, para aumentar a minha modesta cultura sobre esse
insondável mundo e mandei vir, pelo telefone, todos os livros
disponíveis em Paris. Foi daí que me resultou conhecer com apreço
crescente, os oito volumes da obra genial de Mao-Tse-Tung.