terça-feira, 4 de setembro de 2012

Moçambique, terra queimada (iii)

Missão Cancelada
Franco Nogueira, entretanto, preveniu-me de que a agitação americana já se havia desencadeado e que o embaixador (Almirante G. Anderson) o tinha procurado, manifestando as preocupações do seu governo perante uma tal eventualidade e argumentando em termos quase duros a que o ministro português havia respondido com firmeza.

O ministro não estava preocupado com isso pois os EUA acabavam de pedir reforço de facilidades nos Açores e mesmo a concessão de apoios na Madeira e no Continente para orientação de foguetões, para se acrescer a eficácia contra alvos vitais soviéticos. O Governo Português não desejava envolver-se em mais compromissos que viriam agravar o risco no caso de uma eventual confrontação nuclear, mas manteria as conversas, em base amigável, para explorar o interesse americano. Não era assim crível que a reacção dos EUA pudesse ser violenta perante a nossa aproximação com Peking pois não desejariam um rompimento que pudesse pôr em causa aqueles ambicionados apoios estratégicos.

José Manuel Fragoso estava tão entusiasmado como Franco Nogueira na concretização do plano que tinham decidido confiar-me, mas mantinha dúvidas quanto à realização por recear o impacto das já desencadeadas pressões americanas. Acrescia que, internamente, a extrema-direita se movimentaria contra tal abertura acusando-se, mesmo, o ministro de ser influenciado por "razões conjugais". Efectivamente a mulher de Franco Nogueira (a Verinha) era chinesa e filha de um diplomata que depois da revolução havia sido condenado à morte e tivera pena reduzida para 12 anos de prisão, sendo indultado depois de haver cumprido 5. Vivia em Xangai como professor de línguas. Só por calúnia ou manobra política, se podiam envolver os problemas familiares neste grave assunto.

Na imagem: D. Afonso de Albuquerque, 2.º Governador da Índia Portuguesa

Ao corrente do planeado estava o prof. Adriano Moreira, que já defendera atitude semelhante (em 1961) quando da invasão de Goa pela União Indiana. Entendia não se dever abandonar esta última oportunidade mas duvidava que houvesse decisão para o fazer.

Enquanto passavam os dias e Franco Nogueira não me transmitia instruções concretas, as minhas apreensões iam-se agravando. Tinha conversado com o Ministro da Defesa Nacional (Gen. Gomes de Araújo) e com o Ministro das Finanças (Prof. Pinto Barbosa) que eram muito da minha intimidade. Havia-os encontrado apreensivos sobre a possibilidade de se manter o esforço de guerra no Ultramar sem a decidida ajuda, indirecta, americana.

Chegámos, assim, ao dia 20 de Fevereiro (levava eu duas semanas em Lisboa) sem que o Ministro dos Estrangeiros obtivesse uma decisão do Doutor Salazar apesar de com ele haver trabalhado em duas oportunidades.

Para mim isso não era bom sinal, com certeza. O José Manuel Fragoso pensava da mesma forma e estava desalentado.

Com a concordância de Franco Nogueira decidi-me a telefonar directamente ao Presidente do Conselho que, sem demora, me marcou uma entrevista. Tratados outros assuntos (com dominância para o caso do Malawi) apresentei-lhe frontalmente o problema que me tinha feito vir até Lisboa.

Foi evasivo, não argumentou com clareza habitual e ficámos em que eu regressaria a Moçambique para onde me comunicaria, logo que possível, as decisões que viesse a tomar. Recomendou-me que, quando tivesse tempo, continuasse a estudar os problemas chineses pelos quais tanta predilecção evidenciava.

Assegurou-me, de bom humor, que eu seria o primeiro embaixador em Peking se um dia houvesse relações diplomáticas.

Franco Nogueira e José Manuel Fragoso ficaram desolados. Muito congeminámos sobre as razões que teriam levado o Presidente Salazar, contra os seus hábitos, a recuar sobre uma decisão tomada. Repetidas vezes o voltámos a fazer depois e nunca topámos com uma explicação completa.

Para mim, fora de dúvida, a pressão americana deveria ter sido tremenda. Só nunca saberei a que argumentos e meios recorreram (ob. cit., pp. 69-53 e 61-66).

Continua