Escrito por Jorge Pereira Jardim
Juízo Final
Escrito
aquilo que vivi e testemunhei, apoiado em documentos e citações
irrefutáveis, poderia talvez dispensar-me de o condensar num juízo
final.
Só o faço por entender que possa estar em melhor posição
de relacionar factos e interpretar atitudes do que o observador
eventualmente menos atento ou, por causas diversas, menos sensível à
informação prestada.
Procurarei ser sucinto e claro.
Não ignoro que agravo, ainda mais, os riscos da minha posição pessoal.
Espero-o serenamente. Nada me pode deter quando tenho imperioso dever de consciência a cumprir.
Estratégia soviética
A
estratégia soviética visava, prioritariamente os dois grandes
territórios portugueses de África (Angola e Moçambique), cuja
resistência se opunha ao controle das rotas do Índico e do Atlântico e
ao assalto aos recursos da África Austral.
Pouco preocupava o envolvimento americano nessa zona. Sabiam que o neutralizariam na altura própria.
Alarmava-os
a crescente influência chinesa que se consolidaria, a partir de 1975
como também não o ignoravam os serviços de informações ocidentais. Os
soviéticos, actuando sobre minorias destinadas a dominar os movimentos
nacionalistas, não podiam deixar que se alcançasse o limite de
confrontação directa com os chineses. Conheciam a sua capacidade de
retaliação se a esse extremo se chegasse. Tinham de antecipar-se.
O
encaminhamento das guerras nos territórios portugueses não lhes
permitia obter uma solução urgente. Por isso se impunha actuar em
Portugal em termos de conduzir à queda desses bastiões africanos.
Essa
estratégia foi entendida pelos defensores que, no entanto, se deixaram
iludir por excessivas preocupações quanto à infiltração chinesa e nela
concentraram atenções. Isso serviu os propósitos soviéticos.
Por
outro lado, muitos dos responsáveis não entenderam que só a efectiva
independência dos territórios ultramarinos, enquanto era tempo de o
fazer em condições de preservar o equilíbrio da sua vida, poderia
abortar a manobra comunista.
Portugal, liberto das guerras que
enfrentava, fortalecer-se-ia em termos de não ser vulnerável à
subversão. Engrandecia-se como condutor de uma vasta "Comunidade
Lusíada" em que se associavam países de equilibrada tendência ideológica
e beneficiários de uma explosão de progresso apoiada pelas forças
ocidentais.
A agilidade de uns e as hesitações de outros conduziram ao êxito soviético.
Emboscada em Abril
Na imagem: Otelo Saraiva de Carvalho e Vasco Gonçalves
O
assalto político em Portugal só era viável através de um golpe militar.
A avaliação da capacidade dos partidos, feita em sucessivas campanhas
eleitorais, havia-o demonstrado.
Para isso, era indispensável
motivar os quadros, cuja agitação se iniciara explorando razões de ordem
profissional. A carência de politização dos militares, mesmo que
infiltrados pelos oficiais milicianos doutrinados, não consentia
desencadear qualquer golpe sob a bandeira de uma ideologia
revolucionária. Isso ficara demonstrado nas reuniões de oficiais
integrados no "Movimento dos Capitães".
Com o fito de a todos
mobilizar, arrastando os mais influentes e que eram os menos sensíveis à
doutrinação subversiva, havia que provocar uma afronta à sua honra
militar e fazê-los crer que se transformavam, perante a nação, em
culpados de faltas que não lhes pertenciam.
Por isso se provocaram os incidentes da cidade da Beira, em Janeiro de 1973.
Importa
recordar que o crime atribuído à "Frelimo" para agitar a população,
ainda hoje é duvidoso que tenha sido por esse movimento cometido. Lembro
que o Dr. Kaunda me assegurou que tal procedimento não se enquadrava na
actuação da "Frelimo", mas que admitiu poder ter sido realizado por
algum grupo actuando à margem das ordens superiores.
O que não
oferece dúvidas é que o frio assassinato duma mulher europeia foi
executado em termos revoltantes e em zona onde pudesse causar a reacção
civil, afrontosa para os militares, que os "democratas" comunistas
fizeram desencadear.
O Gen. Costa Gomes surge em Moçambique, e
concretamente na Beira, e exactamente na altura dos incidentes. Numa
viagem programada antecipadamente.
A
viva emoção causada nos oficiais levou-os às atitudes drásticas que
relatei, com a complacência dos comandos superiores em cujo vértice o
Gen. Costa Gomes se encontrava. A partir daí o "Movimento dos Capitães"
amplia-se e motiva-se para derrubar o regime que responsabilizava pelos
insultos recebidos. Nascera o "Movimento das Forças Armadas".
A
minha intervenção tinha evitado que a agitação popular alcançasse as
dimensões planeadas, mas não impediu que fosse suficiente para se
realizarem esses objectivos.
O Gen. Costa Gomes regressou de
Moçambique dispondo de todos os elementos necessários: a revoltada
motivação dos militares, a excitada disposição das populações e os
contactos locais a utilizar no futuro.
Sabia, porque o levara
consigo, o que representaria como estandarte aglutinador, o livro do
Gen. Spínola. Servido por um nome prestigioso enquadrava-se,
perfeitamente, na exploração das condições criadas. Não podia ter
dúvidas sobre os resultados que o seu lançamento causaria.
Apressa-se,
então, o Gen. Costa Gomes a dar ao governo um parecer tranquilizador e
procura, mesmo, convencer o Doutor Marcello Caetano de ser indispensável
a sua permanência no poder.
Como fruto desta hábil manobra surgiu uma revolução a que ninguém se opôs e em que os militares apresentavam uma frente unida.
O
"Programa do MFA", cuja elaboração se confia ao Maj. Melo Antunes, é
redigido em termos de congregar as vontades que ainda se encontrassem
dispersas, de obter a adesão de todas as correntes políticas e, mesmo, a
contemporização das camadas conservadoras da sociedade portuguesa.
O
"Programa" fora, porém, habilmente redigido em termos de vir a
consentir leituras e interpretações diversas daquelas que inicialmente
aparentava.
Uma "descolonização original"
Na
imagem: Junta de Salvação Nacional (da esq. para a dir.: Rosa Coutinho,
Pinheiro de Azevedo, Costa Gomes, António de Spínola, Jaime Silvério
Marques, Carlos Galvão de Melo
Com a vitória da revolução,
mantêm-se o Gen. Spínola como figura adormecedora das preocupações
internas ou externas que pudessem esboçar-se. No elenco da "Junta de
Salvação Nacional" participam outros nomes que a todos justificam
confiança.
Havia, porém, que iniciar a tarefa descolonizadora. Para isso se fizera a revolução.
Não
era fácil conduzi-la para os propósitos da estratégiaa soviética sobre a
presidência do Gen. Spínola apesar do domínio influente que sobre ele
exercia o Gen. Costa Gomes.
Tudo teve de ser feito com método e de acordo com os planos delineados.
O
Gen. Costa Gomes volta a deslocar-se a Moçambique. Dali traz o Dr.
Almeida Santos para Ministro da Coordenação Interterritorial, dali envia
emissários a Samora Machel e ali reforça a posição dos "democratas".
Servindo-se do Dr. Almeida Santos impede que o Gen. Silvino Silvério
Marques assuma as funções de governador-geral e comandante-chefe em
Moçambique. Em seu lugar, instaura o governo provisório do Dr. Soares de
Melo, escolhido pelas sua docilidade obediente e incapacidade
governativa.
Tendo confirmado a minha influência e as minhas
ligações moçambicanas, consegue reter-me em Lisboa. Com isso, também o
Gen. Costa Gomes impede os meus contactos com o Dr. Banda e o Dr. kaunda
(evitando a possibilidade de negociações imediatas com a "Frelimo"),
denunciando-se ao documentar por escrito o seu propósito de arredar a
Zâmbia e o Malawi da acção mediadora que tinham oferecido. Quando se
inteira da firmeza daqueles paaíses africanos em meu favor, recorre à
cilada para tentar prender-me.
Para minar resistências deixa
Moçambique resvalar para o caos, a anarquia e a bancarrota. Agrava-se a
instabilidade interna fomentando a incerteza das soluções e promovendo a
confrontação tribal.
Envolve o Dr. Mário Soares em negociações
destinadas ao insucesso, mas que fariam recair sobre os socialistas,
ávidos de alcançarem prestígio político, as maiores responsabilidades
aparentes da descolonização.
Na imagem: da esq. para a dir.: Agostinho Neto, o Almirante Vermelho (Rosa Coutinho) e Jonas Savimbi
Quando
me escapo às suas malhas, o Gen. Costa Gomes lança campanha de
descrédito calunioso que iria até à invenção de acções subversivas,
ataques de mercenários e propósitos de racismo colonialista. Impede
Otelo Saraiva de Carvalho de se encontrar comigo para se esclarecer
sobre os problemas moçambicanos e, mais tarde, haveria de repetir a
manobra com Rosa Coutinho.
Sucedem-se os mandatos de captura, o
congelamento das contas bancárias e o anúncio de rigoroso inquérito aos
meus actos. Multiplicam-se as pressões diplomáticas e chega-se ao corte
de relações com o Malawi.
Neste processo intimidador, o Gen.
Costa Gomes transmitiu a ordem para as tropas me abaterem se cruzasse a
fronteira de Moçambique.
Perante nada recuava quando era necessário retardar a solução do caso descolonizador moçambicano.
Consegue-o, levando as unidades militares ali presentes ao desespero e frustração.
Só
nessa altura surge o Maj. Melo Antunes como o negociador que tudo
salvaria. Ultrapassa o Dr. Mário Soares e o Dr. Almeida Santos
(parceiros já de secundária ordem) depois destes terem desempenhado o
papel que neste complexo jogo lhes estava atribuído.
O Maj. Melo Antunes não negoceia. Confraterniza.
Entende-se
com os extremistas da "Frelimo" e com eles concerta as fórmulas que
correspondiam aos comuns propósitos. Também os nacionalistas daquele
movimento haviam sido ultrapassados.
Perante a resistência do Gen.
Spínola utiliza-se o argumento de que as tropas em Moçambique não estão
dispostas a sustentar posições que ainda ali mantinham. O Gen. Costa
Gomes, como chefe do Estado Maior General, confirma-lhe que assim é.
Admite-se o perigo da capitulação militar.
O velho soldado,
traído, acaba por transigir e o acordo "Samora Machel-Melo Antunes" é
assinado em Lusaka, em 7 de Setembro de 1974.
As Forças Armadas
ficariam, para sempre, como "bode expiatório" desse compromisso
vergonhoso. Ninguém explica a verdade da situação e a forma como os
militares haviam sido minados por longos meses de propositado
retardamento das soluções e premeditada deterioração das condições de
Moçambique.
Com o "Movimento Moçambique Livre", para que foi
arrastada uma população que planeadamente se conduziu a extremos de
desespero, estão encontradas todas as justificações para se acelerar a
saída das camadas humanas mais válidas de que Moçambique dispunha. Dessa
tarefa se encarrega o Com. Vítor Crespo, nomeado Alto Comissário. Sem
preparação para cargo tão responsabilizante, tinha determinação política
para levar a cabo essa missão.
A resignação do Gen. Spínola, que
tarde descobriu a traição enleadora do Gen. Costa Gomes, deixa o
caminho facilitado à "descolonização original" que se aceleraria com o
seu afastamento (Setembro de 1974) e com o exílio, agravado pela prisão
de muitos oficiais desiludidos (Março de 1975).
Na imagem: os comunistas Vasco Gonçalves e Costa Gomes
Com
Vasco Gonçalves no governo (onde Costa Gomes o manteria até a reacção
popular forçar, meses depois, o seu afastamento) aniquilam-se as
estruturas portuguesas em termos de nenhum reflexo poderem ter nos
territórios ultramarinos em vias de descolonização. O vazio estava
criado para que a estratégia soviética pudesse alcançar os objectivos
fixados.
Foi Vasco Gonçalves o instrumento da entrega de Moçambique à falsa "Frelimo" que os extremistas controlavam.
Agravava-se,
em termos incomportáveis, a situação dos portugueses e dos moçambicanos
que ali viviam e conviviam. Por isso foram saindo às dezenas de milhar,
como se pretendia que acontecesse. Ali ficaram milhões escravizados a
uma democracia popular.
O Gen. Costa Gomes havia realizado a sua missão.
Como veio a realizar em Angola, onde tudo se preparou para ser possível a esmagadora intervenção soviética.
Para
a culminar haveria de tomar a iniciativa e a responsabilidade de
reconhecer o regime do "MPLA" (Fevereiro de 1976) aproveitando a
ausência do Primeiro-Ministro, do chefe do Estado Maior da Armada, do
chefe do Estado Maior da Força Aérea, do ministro da Administração
Interna e do ministro da Cultura.
Nessa capitulação desnecessária
(a que a ameaçada Zâmbia resistiu) o Gen. Costa Gomes teve o apoio
aberto e previsível do Maj. Melo Antunes. O binómio descolonizador
ficou, só por isso, claramente identificado.
Melo Antunes atreveu-se a declarar que essa decisão merecera a inteira solidariedade do Conselho da Revolução e do MFA.
Valeu-lhe
isso o desmentido público e corajoso do Gen. Morais e Silva em termos
que não deixam dúvidas sobre a manobra do Maj. Melo Antunes que se
atrevera a acrescentar: "estamos longe de considerar que tenhamos
reconhecido um governo pró-soviético"!
Só um comunista poderia afirmar essa convicção.
Com as tropas cubanas e os tanques russos a ocuparem Angola!