Correspondência secreta
Só
em 1965 consegui, influenciando um e outro, estabelecer contacto
directo, por escrito, entre Banda e Salazar. Servi-me do desejo comum de
se construir a ligação ferroviária de Nacal com o Malawi. Tudo se
processava à margem dos canais diplomáticos.
Na imagem: Oliveira Salazar
O
Doutor Salazar, em 7 de Maio, assegurava o seu interesse pelo projecto e
que iria determinar um estudo para poder ser tomada uma decisão final. E
acrescentava:
"Concordo inteiramente com V. Ex.ª de
que, entretanto, é do nosso comum interesse que seja mantido o
conveniente segredo. Posso assegurar de que pela nossa parte o faremos."
O
Dr. Banda respondia, sempre por meu intermédio, em 29 de Agosto, numa
longa carta em que apreciava o problema criado pelos refugiados
moçambicanos que afluíam ao Malawi, por milhares, nas zonas de Likoma e
de Milange ocupando-se as autoridades portuguesas de proverem à
subsistência dessas populações deslocadas.
Comentando o assunto, o Dr. Banda referia:
"A
este propósito gostaria de informar a V. Exª quanto têm sido
extraordinariamente auxiliadores e cooperantes o Sr. Jardim e o Dr. De
Sousa. Têm sido extremamente úteis para o Governo do Malawi não apenas
na resolução dos problemas dos refugiados moçambicanos na Ilha de Likoma
como também, ao tratarem outros problemas melindrosos que afectam as
relações entre Moçambique e o Malawi ou entre Portugal e o Malawi. Estes
senhores são verdadeiros patriotas portugueses com excelente
conhecimento e prático senso comum da diplomacia, que se opõe à
diplomacia teórica e profissional que, em muitos casos, é um desastre".
Ao
entregar esta carta, em Lisboa, o Doutor Salazar nem esboçou um
sorriso, mas aceitou a minha recomendação para receber Pombeiro de Sousa
com quem conversou longamente.
Quando ficámos a sós disparou-me a pergunta inesperada "Mas, afinal, como é esse seu amigo Banda que parece tê-lo conquistado?"
Foi, então, que lhe dei a resposta que correu Lisboa, em indiscrição que não me pertenceu: "Tal e qual V.Ex.ª, mas em preto".
Poucas vezes vi o Doutor Salazar rir-se com tanto gosto.
Mas era inteiramente verdade.
A
mesma tendência para o recolhimento, a mesma devoção ao interesse
nacional, o mesmo gosto pelas janelas fechadas, a mesma ausência de
contactos íntimos influenciadores e até a mesma austera vida pessoal
servida por devoções semelhantes. Só que o Dr. Banda exteriorizava a sua
autoridade e realizava sem constrangimento as aparições públicas com
notável poder de arrastar as massas.
O Doutor Salazar nunca se esqueceu daquela minha comparação. E por ela terá medido a minha estima pelo Dr. Banda.
Por isso, em 24 de Setembro, lhe respondia:
"Foi-me
grato ler as palavras que V. Ex.ª escreve a propósito da acção do Eng.º
Jardim e do Senhor Pombeiro de Sousa. Também pude receber este, na sua
passagem por Lisboa, recentemente, e só podia ser-me agradável ouvir o
que me disse a respeito dos contactos com o Governo de V. Ex.ª e dos
problemas comuns em que ambos, porém, sem esquecer o seu país, revelam a
maior fidelidade e dedicação a V. Ex.ª e ao Malawi."
Para concluir, referindo-se à visita do Dr. Banda a Madagáscar:
"Espero
confiadamente que à volta de V. Ex.ª, do Presidente de Madagascar e de
outros chefes que vêem pelo mesmo prisma os problemas de África, se erga
uma barreira contra a demagogia e os extremismos que ameaçam lançar no
caos tantos países, com prejuízo para o seu desenvolvimento económico e
estabilidade política. Não posso senão fazer votos para que triunfe a
política traçada por V. Ex.ª e felicitá-lo pela coragem com que a tem
defendido."
A troca de cartas foi-se tornando cada
vez mais frequente e não é este o momento próprio (porque disso me
ocuparei em próximo livro) para publicar toda essa volumosa
correspondência secreta de alto nível).
Nas minhas andanças,
entre Banda e Salazar, diligenciava fazer entender os respectivos pontos
de vista na evolução que se impunha e ia sendo progressivamente
realizada.
Em vésperas do Natal de 1965 era Salazar quem escrevia:
"Creio
que vai soar a hora dos moderados, dos homens ponderados e realistas
que não estão dispostos a sacrificar a paixões desrazoáveis o bem estar
dos povos que lhes estão confiados. Pressinto que haverá ainda alguns
apelos à violência de que será preciso os responsáveis defenderem-se com
prudência, para disporem de possibilidades de acção quando se quebrarem
as últimas ondas das agitações estéreis."
Na imagem: Lago Malawi
Passando
sobre os problemas emergentes da declaração de independência unilateral
da Rodésia com a consequente necessidade de apoio da Zâmbia, que o Dr.
Banda sempre defendeu e adiante referirei, as minhas maiores
dificuldades resultaram, nessa altura, da acção das tropas portuguesas e
da falta de senso da representação diplomática no Malawi.
A este propósito escrevia o Presidente Banda a Salazar em 9 de Junho de 1966:
"Nem
eu pessoalmente, nem o meu governo temos objecções a que a Embaixada de
Portugal celebre privadamente o Dia Nacional português como até agora
tem sido feito. Mas ponho em causa, seriamente, o bom senso de celebrar o
Dia Nacional português publicamente como a Embaixada de Portugal está a
fazer este ano. Nas presentes circunstâncias em África, isto é uma
desnecessária provocação, para já não me referir aos embaraços que causa
ao meu governo. Não é certamente no interesse das boas e amistosas
relações entre o Malawi e Portugal. Por isso peço a Mr. Jardim para
informar V. Ex.ª imediatamente."
Esta foi, aliás,
apenas uma das complicações que me resultou da acção da embaixada que
parecia arder em ânsias nacionalistas que vieram a acentuar-se, depois,
com Futcher Pereira.