Os Condenados da Terra de Frantz Fanon (1961) |
PREFÁCIO - JEAN PAUL SARTRE
Não faz muito tempo a terra tinha dois bilhões
de habitantes, isto é, quinhentos milhões de homens e um bilhão e quinhentos
milhões de indígenas. Os primeiros dispunham do Verbo, os outros pediam-no
emprestado. Entre aqueles e estes, régulos vendidos, feudatários e uma falsa
burguesia pré-fabricada serviam de intermediários. Às colônias a verdade se
mostrava nua; as “metrópoles” queriam-na vestida: era preciso que o indígena as
amasse. Como às mães, por assim dizer. A elite européia tentou engendrar um
indigenato de elite; selecionava adolescentes, gravava-lhes na testa, com fero
em brasa, os princípios da cultura ocidental, metia-lhes na boca mordaças
sonoras, expressões bombásticas e pastosas que grudavam nos dentes; depois de
breve estada na metrópole, recambiava-os, adulterados. Essas contrafacções vivas
não tinham mais nada a dizer a seus irmãos; faziam eco; de Paris, de Londres, de
Amsterdã lançávamos palavras: “Partenon! Fraternidade!”, e, num ponto qualquer
da África, da Ásia, lábios se abriam: “… tenon!…nidade!” Era a idade de
outro.
Isto acabou. As bocas passaram a abrir-se
sozinhas; as vozes amarelas e negras falavam ainda do nosso humanismo, mas para
censurar a nossa desumanidade. Escutávamos sem desagrado essas corteses
manifestações de amargura. De início houve um espanto orgulhoso: Quê! Eles falam
por eles mesmos! Vejam só que fizemos deles! Não duvidávamos que aceitassem o
nosso ideal porquanto nos acusavam de não sermos fiéis a ele; por esta vez a
Europa acreditou em sua missão: havia helenizado os asiáticos e criado esta
espécie nova: os negros greco-latinos. Ajuntávamos, só para nós, astutos:
deixemos que se esgoelem, isso os alivia; cão que ladra não morde.
Surgiu uma outra geração que alterou o
problema. Seus escritores, seus poetas, com incrível paciência trataram de nos
explicar que nossos valores não se ajustavam bem à verdade de sua vida, que não
lhes era possível rejeita-los ou assimila-los inteiramente. Em suma, isso queria
dizer: de nós fizestes monstros, vosso humanismo nos supõe universais e vossas
práticas racistas nos particularizam. E nós os escutávamos despreocupados; os
administradores coloniais não são pagos para ler Hegel, aliás lêem-no pouco, mas
não precisam desse filósofo para saber que as consciências infelizes se
emaranham nas próprias contradições. Nenhuma eficácia. Por conseguinte,
perpetuemos-lhes a infelicidade, que dela não resultará coisa alguma. Se
houvesse, diziam-nos os peritos, uma sombra de reivindicação em seus gemidos,
outra não seria que a de integração. Não se trata de outorga-la, é claro, isso
arruinaria o sistema, que repousa, como se sabe, na super exploração. Mas
bastaria acenar-lhes com essa patranha: viriam correndo. Quanto à possibilidade
de revolta, estávamos tranqüilos. Que indígena consciente iriam massacrar os
filhos da Europa com o fim único de se tornar europeu como eles? Numa palavra,
estimulávamos essas melancolia e não achamos mau, uma vez, conceder o prêmio
Goncourt a um negro. Isso ocorreu antes de 39.
1961. Escutai: “Não percamos tempo com litanias
estéreis ou mimetismos nauseabundos. Deixemos essa Europa que não cessa de falar
do homem enquanto o massacra por toda a parte onde o encontra, em todos as
esquinas de suas próprias ruas, em todas as esquinas do mundo. Há séculos… que
em nome de uma suposta ´aventura espiritual´ vem asfixiando a quase totalidade
da humanidade”. Este tom é novo. Quem ousa adotá-lo? Um africano, homem do
Terceiro Mundo, antigo colonizado. Acrescenta ele: “A Europa adquiriu uma
velocidade tão louca, tão desordenada… que a arrasta para o abismo, do qual é
melhor que nos afastemos.” Em outras palavras: ela está atolada. Uma verdade que
não é boa de dizer mas da qual – não é mesmo, meus caros co-continentais? –
estamos todos intimamente convencidos.
Cumpre fazer uma ressalva, porém. Quando um
francês, por exemplo, diz a outros franceses: “Estamos atolados!” – o que, pelo
que sei, se verifica quase todos os dias desde 1930 – trata-se de um discurso
passional, ardente de cólera e amor, em que o orador se compromete com todos os
seus compatriotas. E depois geralmente acrescenta: “A menos que…” Sabe-se o que
isto significa: é impossível enganar-se a este respeito: se suas recomendações
não forem seguidas à risca, então e somente então o país se desintegrará. Enfim,
é uma ameaça seguida de um conselho, e essas conversas chocam tanto menos quanto
jorram da intersubjetividade nacional. Quando Fanon, ao contrário, diz que a
Europa cava a sua própria ruína, longe de soltar um grito de alarma, apresenta
um diagnóstico. Este médico não pretende nem condena-la sem apelação – há tais
milagres – nem lhe fornecer os meios de cura; constata que ela agoniza. De foram
baseando-se nos sintomas que pôde recolher. Quanto a trata-la, não. Ele tem
outras preocupações na cabeça; pouco se lhe dá que ela arrebente ou sobreviva.
Por este motivo, seu livro é escandalosos. E se murmurais, entre divertidos e
embaraçados: “Que é que ele nos propõe?”, deixais de perceber a verdadeira
natureza do escândalo, uma vez que Fanon não vos “propõe” absolutamente nada;
sua obra – tão abrasadora para outros – para vós permanece gelada; amiúde fala
de vós, mas nunca a vós. Acabaram-se os Goncourt negros e os Nobel amarelos; não
voltará mais o tempo dos laureados colonizados. Um ex-indígena “de língua
francesa” sujeita esta língua a exigências novas, serve-se dela para dirigir-se
apenas aos colonizados: “Indígenas de todos os países subdesenvolvidos,
uni-vos!”. Que rebaixamento; para os pais, éramos os únicos interlocutores; os
filhos nem nos consideram ais como interlocutores admissíveis: somos os objetos
do discurso. Evidentemente Fanon menciona de passagem nossos crimes famosos,
Sétif, Hanói, Madagascar, mas não perde o seu temo a condená-los; utiliza-os. Se
desmonta as táticas do colonialismo , o complexo jogo das relações que unem e
opõem os colonos aos “metropolitanos”, faz isso para seus irmãos; seu objetivo é
ensiná-los a desmantelar-nos.
Jean Paul Sartre |
Numa palavra, o Terceiro Mundo se descobre e se
exprime por meio desta voz. Sabemos que ele não é homogêneo e que nele se
encontram ainda povos subjugados, outros que adquiriram uma falsa independência,
outros que se batem para conquistar a soberania, outros enfim que obtiveram a
liberdade plena mas vivem sob a constante ameaça de uma agressão imperialista.
Essas diferenças nasceram da história colonial, isto é, da opressão. Aqui a
Metrópole contentou-se em pagar alguns feudatários; ali, dividindo para reinar,
fabricou em bloco uma burguesia de colonizados. Mais além matou dois coelhos de
uma só cajadada: a colônia é ao mesmo tempo de exploração e de povoamento. Assim
a Europa multiplicou as divisões, as oposições, forjou classes e por vezes
racismos, tentou por todos os meios provocar e incrementar a estratificação das
sociedades colonizadas. Fanon não dissimula nada: para lutar contra nós, a
antiga colônia deve lutar contra ela mesma. Ou melhor, as duas formas de luta
são uma só. No fogo do combate, todas as barreiras interiores devem derreter-se.
A impotente burguesia de negocistas e compradores, o proletariado urbano, sempre
privilegiado, o lumpenproletariat das favelas, todos têm de se alinhar nas
posições das massas rurais, verdadeiro reservatório do exército nacional e
revolucionário; nas regiões cujo desenvolvimento foi deliberadamente sustado
pelo colonialismo, o campesinato, quando se revolta, aparece logo como a classe
radical: conhece a opressão nua, suporta-a muito mais que os trabalhadores da s
cidades e, para que não morra de fome, precisa nada mesmos que de um estouro de
todas as estruturas. Triunfando, a Revolução nacional será socialista; detido
seu ímpeto, a burguesia colonizada toma o poder, e o novo Estado, a despeito de
uma soberania formal, continua nas mãos dos imperialistas. O exemplo de Katanga
é bastante ilustrativo. Assim, a unidade do Terceiro Mundo não está concluída: é
um empreendimento em curso, que passa pela união, em cada país, antes de também
depois da independência, de todos os colonizados, sob o comando da classe
camponesa. Eis o que Fanon explica a seus irmãos da África, da Ásia, da América
latina: realizaremos todos em conjunto e por toda a parte o socialismo
revolucionário ou seremos derrotados um a um por nossos antigos tiranos. Não
dissimula nada, nem as fraquezas, nem as discórdias, nem as mistificações. Aqui
o movimento começa mal; ali, após êxitos, fulminantes, perde velocidade; noutra
parte está parado: para que se reinicie, é necessário que os camponeses lancem
sua burguesia ao mar. O leitor é severamente acautelado contra as alienações
mais perigosas: o líder, o culto da personalidade, a cultura ocidental e, também
o retorno do longínquo passado da cultura africana; a verdadeira cultura é a
Revolução; isso que fizer que ela se forja a quente. Fanon fala em voz alta;
nós, os europeus, podemos ouvi-lo: a prova é que temos nas mãos este livro. Não
teme ele que as potências coloniais tirem proveito de sua sinceridade?
Não. Não teme nada. Nossos processos estão
peremptos; podem talvez retardar a emancipação, mas não a impedirão. E não
imaginemos que poderemos reajustar os nossos métodos: o neocolonialismo, sonho
preguiçoso das Metrópoles, é vão; as “Terceiras Forças” não existem ou são
falsas burguesias que o colonialismo já colocou no poder. Nosso maquiavelismo
tem poucos poderes sobre este mundo extremamente vigilante que desmascarou uma
após outra as nossas mentiras. O colono só tem um recurso: a força, quando esta
ainda lhe sobra: o indígena só tem uma alternativa: a servidão ou a soberania.
Que importa a Fanon que leiamos ou não a sua obra? É a seus irmãos que ele
denuncia nossas velhas artimanhas, para as quais não dispomos de sobressalentes.
É a eles que Fanon diz: a Europa pôs as patas em nossos continentes, urge
golpeá-las até que ela as retire; o momento nos favorece; nada acontece em
Bizerta, em Elizabethville, no deserto argelino, que não chegue ao conhecimento
de toda a Terra: os blocos tomam partidos contrários, encaram-se como respeito;
aproveitemos essa paralisia, entremos na história e que nossa irrupção a torne
universal pela primeira vez; na falta de outras armas, a perseverança da faca
será suficiente.
Europeus, abri este livro, entrai nele. Depois
de alguns passos na noite, vereis estrangeiros reunidos ao pé do fogo,
aproximai-vos, escutai; eles discutem a sorte que reservam às vossas feitorias,
aos mercenários que as defendem. Eles vos verão talvez, mas continuarão a falar
entre si, sem mesmo baixar a voz. Essa indiferença fustiga o coração: os pais,
criaturas da sombra, vossas criaturas, eram almas mortas, vós lhes dispensáveis
a luz, eles só se dirigiam a vós, e vós não perdíeis tempo em responder a esses
zumbis. Os filhos não fazem caso de vós; um fogo os ilumina e aquece, e vós vos
sentireis furtivos, noturnos, transidos; a cada um a sua vez; nessas trevas de
onde vai surgir uma outra aurora, os zumbis sóis vós.
Nesse caso, direis, joguemos este livro pela
janela. Por que temos de o ler se não foi escrito para nós? Por dois motivos. O
primeiro é que Fanon vos explica a seus irmãos e desmonta para eles o mecanismo
de nossas alienações; aproveitai para vos descobrir a vós mesmos em vossa
verdade de objetos. Nossas vítimas nos conhecem por suas feridas e seus
grilhões; é isto que torna seus testemunho irrefutável. Basta que nos mostrem o
que fizemos delas para que conheçamos o que fizemos de nós, Isso é útil? Sim,
visto que a Europa está na iminência de rebentar. Mas, direi vós ainda, vivemos
na Metrópole e reprovamos os excessos. É verdade: não sois colonos, mas não sois
melhores do que eles. São vossos pioneiros, vós os enviastes para o ultramar,
eles vos enriqueceram; vós os tínheis prevenido: se fizessem correr muito
sangue, vós os reprovaríeis com desdém; da mesma forma, um Estado – qualquer que
seja – mantém no estrangeiro uma turba de agitadores, de provocadores e espiões,
aos quais reprova quando são apanhados. Vós, tão liberais, tão humanos, que
levai os amor da cultura até ao preciosismo, fingis esquecer que tendes colônias
e que nelas se praticam massacres em vosso nome. Fanon revela a seus camaradas –
a alguns dentre eles, sobretudo, que continuam um pouco ocidentalizados demais
–a solidariedade dos “metropolitanos” e seus agentes coloniais. Tende a coragem
de o lar, por esta primeira razão de que ele fará com que vos sintais
envergonhados, e a vergonha, como disse Marx, é um sentimento revolucionário.
Vede: eu também não posso desprender-me da ilusão subjetiva. Eu também vos digo:
“Tudo está perdido, a menos que…” Europeu, furto o livro de um inimigo e faço
dele um meio de curar a Europa. Aproveitai.
Eis o segundo motivo: se rejeitarmos a
lenga-lenga fascista de Sorel, veremos que Fanon é o primeiro desde Engels a
repor em cena a parteira da história. E não se creia que um sangue demasiado
ardente ou desventuras da infância lhe tenham dado para a violência não sei que
gosto singular: ele se faz intérprete da situação, nada mais. Mas isso basta
para que ele constitua, etapa por etapa, a dialética que a hipocrisia liberal
oculta de nós e que nos produziu tanto quanto a ele.
No século passado a burguesia considerava os
operários invejosos, corrompidos por apetites grosseiros, mas teve o cuidado de
incluir esses selvagens em nossa espécie: se não fossem homens e livres, como
poderiam vender livremente sua força de trabalho? Na França, na Inglaterra, os
humanismo pretender ser universal.
Com o trabalho forçado, dá-se o contrário; nada
de contrato; além disso, é preciso intimidar; patenteia-se portanto a opressão.
Nossos soldados no ultramar rechaçam o universalismo metropolitano, aplicam ao
gênero humano o numerus clausus; uma vez que ninguém pode sem crime espoliar
seus semelhante, escraviza-lo ou mata-lo, eles dão por assente que o colonizado
não é o semelhante do homem. Nossa tropa de choque recebeu a missão de
transformar essa certeza abstrata em realidade: a ordem é rebaixar os habitantes
do território anexado ao nível do macaco superior para justificar que o colono
os trate como bestas de carga. A violência colonial não tem somente o objetivo
de garantir o respeito desses homens subjugados; procura desumaniza-los. Nada
deve ser poupado para liquidar as suas tradições, para substituir a língua deles
pela nossa, para destruir a sua cultura sem lhes dar a nossa; é preciso
embrutecê-los pela fadiga. Desnutridos, enfermos, se ainda resistem, o medo
concluirá o trabalho: assestam-se os fuzis sobre o camponês; vêm civis que se
instalam na terra e o obrigam a cultivá-la para eles. Se resiste, os soldados
atiram, é um homem morto; se cede, degrada-se, não é mais um homem; a vergonha e
o temor vão fender-lhe o caráter, desintegra-lhe a personalidade. A coisa é
conduzida a toque de caixa, por peritos: não é de hoje que datam os “serviços
psicológicos”. Nem a lavagem cerebral. E, no entanto, malgrado tantos esforços,
o objetivo não é atingido em parte nenhuma: no Congo, onde se cortavam as mãos
dos negros, nem em Angola onde, bem recentemente, furavam-se os lábios dos
descontentes para os fechar com cadeados. E não afirmo que seja impossível
converter um homem num animal: digo que não se chaga a tanto sem o enfraquecer
consideravelmente; as bordoadas não bastam, é necessário recorrer à desnutrição.
É o tédio, com a servidão. Quando domesticamos um membro de nossa espécie,
diminuímos o seu rendimento e, por pouco que lhe demos, um homem reduzido à
condição de animal doméstico acaba por custar mais do que produz. Por esse
motivo os colonos vêem-se obrigados a parar a domesticação no meio do caminho: o
resultado, nem homem nem animal, é o indígena. Derrotado, subalimentado, doente,
amedrontado, mas só até certo ponto, tem ele, seja amarelo, negro ou branco,
sempre os mesmos traços de caráter: é um preguiçoso, sonso e ladrão, que vive de
nada e só reconhece a força.
Pobre colono: eis sua contradição posta a nu.
Deveria, dizem, como faz o gênio, matar as vítimas de suas pilhagens. Mas isso
não é possível. Não é preciso também que as explore? Não podendo levar o
massacre até ao genocídio e a servidão até ao embrutecimento, perde a cabeça, a
operação de desarranjo e uma lógica implacável há de conduzi-la até à
descolonização.
Não de imediato. A princípio o europeu reina:
já perdeu mas não se dá conta disso; ainda não sabe que os indígenas são falsos
indígenas; atormenta-os, conforme alega, para destruir ou reprimir o mal que há
neles. Ao cabo de três gerações, seus instintos perniciosos não renascerão mais.
Que instinto? Os que compelem os escravos a massacrar o senhor? Como não
reconhece nisto a sua própria crueza voltada contra ele? A selvageria dos
camponeses oprimidos, como não reencontra nela sua selvageria de colono, que
eles absorveram por todos os poros e de que não estão curados? A razão é
simples. Esse personagem arrogante, enlouquecido por todo o seu poder e pelo
medo de o perder, já não se lembrar realmente que foi um homem: julga-se uma
chibata ou um fuzil; chegou a acreditar que a domesticação das “raças
inferiores” se obtém através do condicionamento dos seus reflexos. Negligencia a
memória humana, as recordações indeléveis; e depois, sobretudo, há isto que
talvez ele jamais tenha sabido: nós não nos tornamos o que somos senão pela
negação íntima e radical do que fizeram de nós. Três gerações? Desde a segunda,
mal abriram os olhos, os filhos viram os pais serem espancados. Em termos de
psiquiatria, ei-los “traumatizados”. Para a vida inteira. Mas essas agressões
incessantemente renovadas, longe de os induzir à submissão, atiram-nos numa
contradição insuportável pela qual cedo ou tarde o europeu pagará. Depois disso,
o aprendizado a que por sua vez serão submetidos, aprendizado de humilhação, dor
e fome, suscitará em seus corpos uma ira vulcânica cujo poder é igual ao da
pressão que se exerce sobre eles. Será, dizei vós, que só conhecem a força? Por
certo; de início será apenas a do colono e, pouco depois, a deles, isto é, a
mesma que recai sobre nós da mesma maneira que o nosso reflexo vem do fundo de
um espelho ao nosso encontro. Não nos iludamos; por essa cólera louca, por essa
bile e esse fel, por seu desejo permanente de nos matar, pela contração
constante de músculos poderosos que têm medo de se esticar, eles são homens:
pelo colono, que os quer servos, e contra ele. Cego ainda, abstrato, o ódio é o
seu único tesouro. O Patrão provoca-o porque procura bestializá-lo, falha em
destruí-lo porque seus interesses o detêm a meio caminho. Assim, os falsos
indígenas ainda são humanos, pela força e a impotência do opressor que se
transformam neles numa obstinada recusa à condição animal. Quanto ao mais, já se
sabe: são preguiçosos, é claro, e isso é sabotagem. Dissimulados, ladrões, sem
dúvida; seus pequenos furtos assinalam o começo de uma resistência ainda
desorganizada. Isso não basta; para que se afirmem têm de investir desarmados
contra os fuzis. Estão os seus heróis, e outros se fazem homens assassinando
europeus. São mortos. Bandidos e mártires, seu suplício exalta as massas
aterrorizadas.
Aterrorizadas, sim. Neste novo momento a
agressão colonial se interioriza em Terror entre os colonizados. Não me refiro
somente ao temor que experimental diante de nossos inesgotáveis meios de
repressão como também ao que lhes inspira seu próprio furor. Estão entalados
entre as armas que apontamos contra eles e as tremendas pulsões, os desejos de
carnificina que sobem do fundo do coração e que eles sempre reconhecem, porque
não é de início a violência deles, mas a nossa, voltada para trás, que se
avoluma e os dilacera; e o primeiro movimento desses oprimidos é ocultar
profundamente essa cólera inconfessável que a sua moral e a nossa reprovam e
que, todavia, é o último reduto de sua humildade. Leiamos Fanon: descobriremos
que, no tempo de sua impotência, a loucura sanguinária é o inconsciente coletivo
dos colonizados.
Essa fúria contida, que não se extravasa, ainda
à roda e destroça os próprios oprimidos. Para se livrarem dela, entrematam-se:
as tribos batem-se umas contra as outras por não poderem atacar de frente o
verdadeiro inimigo – e podemos contar com a política colonial para alimentar
essas rivalidades; o irmão, empunhando a faca contra o irmão, acredita destruir,
de uma vez por todas, a imagem detestada de seu aviltamento comum. Mas essas
vítimas expiatórias não lhes aplacam a sede de sangue. Abstendo-se de marchar
contras as metralhadoras, eles se tornarão nosso cúmplices: vão por sua própria
autoridade acelerar os progressos dessa desumanização que lhes repugna. Sob o
olhar divertido do colono, premunir-se-ão contra eles mesmos com barreiras
sobrenaturais, oura reavivando velhos mitos terríveis, ora atando-se fortemente
com ritos meticulosos; assim o obsesso livra-se de sua exigência profunda
abandonando-se a manias que o solicitam a todo instante. Dançam, e isto os
ocupa, aliviando-lhes os músculos dolorosamente contraídos. De resto, a dança
exprime por mímica, secretamente, muitas vezes sem que o saibam, o Não que não
podem dizer, os homicídios que não se atrevem a cometer. Em certas regiões
valem-se deste último recurso: a possessão. O que era outrora o fato religioso
em sua simplicidade, uma certa comunicação do fiel com o sagrado, se transforma
numa arma contra o desespero e a humilhação; os zars, as loas, os Santos descem
neles, governam-lhes a violência e a dissipam em transes até ao esgotamento. Ao
mesmo tempo esses altos personagens os protegem; isso quer dizer que os
colonizados se defendem da alienação colonial voltando-se para a alienação
religiosa. No fim de contas, o único resultado é a acumulação de duas
alienações, cada qual reforçada pela outra. Assim, em certas psicoses, cansados
de serem insultados todos os dias, os alucinados imaginam de repente ouvir uma
voz de anjo que nos cumprimenta; por outro lado, não cessam as graçolas, que dia
em diante alternam com a saudação. É uma defesa e é o fim de sua aventura: a
pessoa está dissociada, o doente se encaminha para a demência. Acrescentemos,
para alguns infelizes rigorosamente selecionados, essa outra possessão de que já
falei anteriormente: a cultura ocidental. No lugar deles, direis vós, eu
preferia meus zars à Acrópole. Bom, compreendestes. Não completamente, porém,
porque não estais no lugar deles. Ainda não. De outro modo, saberíeis que não
podem escolher e acumulam. Dois mundos, isso faz duas possessões: dançam a noite
inteira e de manhã apinham-se na igreja para ouvir missa; a fenda aumenta sem
parar. Nosso inimigo trai seus irmãos e se faz nosso cúmplice; seus irmãos fazem
outro tanto. O indigenato é uma neurose introduzida e mantida pelo colono entre
os colonizadores com o consentimento deles.
Reclamar e renegar, a um só tempo, a condição
humana: a contradição é explosiva. Efetivamente explode, vem o sabemos. E
vivemos no tempo da deflagração: quer o aumento da natalidade amplie a miséria,
quer os recém-chegados devam recear viver um pouco mais que morrer, a torrente
da violência derruba todas as barreiras. Na Argélia e em Angola os europeus são
massacrados onde aparecem. É o momento do bumerangue, o terceiro tempo da
violência: ela se volta contra nós, atinge-nos e, como das outras vezes, não
compreendemos que é a nossa. Os “liberais” ficam aparvalhados; reconhecem que
não fomos bastante polidos com os indígenas, que teria sido mais justo e mais
prudente conceder-lhes certos direitos na medida do possível; eles pretendiam
apenas ser admitidos em massa e sem padrinhos nesse clube fechadíssimo que é a
nossa espécie; e eis que esse desencadeamento bárbaro e louco não os poupa assim
como não poupa os maus colonos. A Esquerda Metropolitana inquieta-se: conhece a
verdadeira sorte dos indígenas, a opressão impiedosa de que são objeto, não lhes
condena a revolta, sabendo que tudo fizemos para provoca-la. Mas, ainda assim
pensa ela, há limites: esses guerrilheiros deveriam empenhar-se em mostrar certo
cavalheirismo; seria o melhor meio de provar que são homens. Às vezes ela os
censura: “Vocês estão se excedendo, não os apoiaremos mais”. Eles não dão bola:
ela bem que pode pegar esse apoio e pendurar no pescoço. Desde que sua guerra
começou, eles perceberam esta verdade rigorosa: nós todos valemos pelo que
somos, todos nos aproveitamos deles, e eles não têm que provar nada, não
dispensarão tratamento de favor a ninguém. Um dever único, um único objetivo:
combater o colonialismo por todos os meio.s E os mais avisados dentre nós
estariam, a rigor, prontos a admiti-lo, mas não podem deixar de ver nessa prova
de força o recurso inteiramente desumano de que se serviram os sub-homens para
se fazer outorgar uma carta de humanidade: vamos concedê-la o mais depressa
possível e que eles tratem então, por métodos pacíficos, de a merecer. Nossa
bela alma é racista.
Ela só terá a lucrar com a leitura de Fanon.
Essa violência irreprimível, ele o demonstra cabalmente, não é uma tempestade
absurda nem a ressurreição de instintos selvagens e nem mesmo um efeito do
ressentimento; é o próprio homem que se recompõe. Sabíamos, creio eu, e
esquecemos esta verdade: nenhuma suavidade apagará as marcas da violência: só a
violência é que pode destruí-las. E o colonizado se cura da neurose colonial,
passando o colono pelas armas. Quando sua raiva explode, ele reencontra sua
transparência perdida e se conhece na medida mesma em que se faz; de longe
consideramos a guerra como o triunfo da barbárie; mas ela procede por si mesma à
emancipação progressiva do combatente, liquidando nele e fora dele,
gradualmente, as trevas coloniais. Uma vez iniciada, é impiedosa. É necessário
permanecer aterrorizado ou tornar-se terrível, quer dizer: abandonar-se às
dissociações de uma vida falsificada ou conquistar a unidade natal. Quando os
camponeses tocam nos fuzis, os velhos mitos empalidecem, e caem por terra, uma a
uma, as interdições. A arma do combatente é a sua humanidade. Porque, no
primeiro tempo da revolta, é preciso matar; abater um europeu é matar dois
coelhos de uma só cajadada, é suprimir ao mesmo tempo um opressor e um oprimido:
restam um homem morto e um homem livre; o sobrevivente, pela primeira vez, sente
um solo nacional sob a planta dos pés. Nesse instante a Nação não se fasta dele;
ele a encontra aonde for, onde estiver – nunca mais longe, ela se confunde com
sua liberdade. Mas, após a primeira surpresa, o exército colonial reage: então é
necessário unir-se ou deixar-se massacrar. As discórdias tribais atenuam-se,
tendem a desaparecer em primeiro lugar porque põem em perigo a Revolução e, mais
profundamente, porque não tinham outra função que desviar a violência para
falsos inimigos. Quando continuam – como no Congo – é porque são alimentadas
pelos agentes do colonialismo. A Nação põe-se em marcha; para cada irmão ela
está em toda a parte onde outros irmãos combatem. Seu amor fraternal é o inverso
de ódio que eles nos votam: irmãos pelo fato de que cada um deles matou ou
poderia de um instante para outro ter matado. Fanom mostra a seis leitores os
limites da “espontaneidade”, a necessidade e os perigos da “organização”. Mas,
seja qual for a imensidade da tarefa, a cada desdobramento da empreitada a
consciência revolucionária se aprofunda. Desvanecem-se os derradeiros complexos;
não nos venham falar no “complexo de dependência” do soldado do Exército de
Libertação Nacional. Livre dos seus antolhos, o camponês toma conhecimento das
suas necessidades: matavam-no mas ele tentava ignorá-las; descobre-as agora como
exigências infinitas. Nessa violência popular – que dura cinco anos, oito anos
como no caso dos argelinos – não se podem distinguir as necessidades militares,
sociais e políticas. A guerra, suscitando o problema do comando e das
responsabilidades, estabelece novas estruturas que serão as primeiras
instituições da paz. Eis então o homem instaurado até as tradições novas, filhas
futuras de um horrível presente, ei-lo legitimado por um direito que vai nascer,
que nasce cada dia no fogo da batalha. Com o último colono morto, reembarcado ou
assimilado, a espécie minoritária desaparece, cedendo lugar à fraternidade
socialista. E isso ainda não é suficiente: esse combatente queima as etapas;
cuidais que ele não arriscará a pele para se reencontrar ao nível do velho homem
“metropolitano”. Vede sua paciência: é possível que ele sonhe algumas vezes com
um novo Dien-Bien-Phu; mas ficai certos de que não conta realmente com isto; é
um mendigo lutando, em sua miséria, contra ricos poderosamente armados.
Esperando as vitórias decisivas e muitas vezes sem nada esperar, atormenta seus
adversários até ao enfado. Isso é inseparável de perdas tremendas; o exército
colonial torna-se feroz: patrulhas, operações de limpeza, reagrupamentos,
expedições punitivas; mulheres e crianças são massacradas. Sabe disto esse homem
novo; ele começa sua vida pelo fim; considera-se um morto virtual. Será morto, e
não somente aceita o risco mas tem a certeza de que será eliminado. Esse morto
virtual perdeu a mulher e os filhos e viu tantas agonias que antes quer vencer
que sobreviver; outros aproveitarão a vitória, não ele, que está cansado demais.
Contudo, essa fadiga do coração está no princípio de uma coragem inacreditável.
Encontramos nossa humanidade do lado de cá da morte e do desespero, ele a
encontra do lado de lá dos suplícios e da morte. Fomos os semeadores de ventos;
ele é a tempestade. Filho da violência, extrai dela a cada instante a sua
humanidade; fomos homens à custa dele; ele se faz homem à nossa custa. Um outro
homem, de melhor qualidade.
Aqui Fanon faz alto. Mostrou o caminho;
porta-voz dos combatentes, reclamou a união, a unidade do continente africano
contra todas as discórdias e todos os particularismos. Atingiu seu objetivo. Se
quisesse descrever integralmente o fato histórico da descolonização, teria de
falar e mós, o que certamente não é seu propósito. Mas o livro, depois que o
fechamos, continua a acossar-nos, apesar de seu autor, porque sentimos o vigor
dos povos em revolução e respondemos com a força. Há, portanto, um novo momento
da violência e é para nós ,desta vez, que temos de nos voltar, porque ela nos
está transformando na medida em que o falso indígena se transforma através dela.
Cada qual poderá conduzir suas reflexões como quiser. Contanto, porém, que tenha
isto em mente: na Europa de hoje, completamente aturdida com os golpes que lhe
são desferidos na França, na Bélgica, na Inglaterra, a menor distração do
pensamento é uma cumplicidade criminosa com o colonialismo. Este livro não
precisava de prefácio, tanto menos porque não se dirige a nós. Contudo, eu lhe
fiz um para levar a dialética até ao fim. É necessário que nós, europeus, nos
descolonizemos, isto é, extirpemos, por meio de uma operação sangrenta, o colono
que há em cada um de nós. Examinemo-nos, se tivermos coragem, e vejamos o que se
passa conosco.
Encaremos primeiramente este inesperado: o
strip-tease de nosso humanismo. Ei-lo inteiramente nu e não é nada belo: não era
senão uma ideologia mentirosa, a requintada justificação da pilhagem; sua
ternura e seu preciosismo caucionavam nossas agressões. Têm boa aparência os
não-violentos: nem vítimas nem verdugos! Vamos! Se não sois vitima,s quando o
governo que referendastes num plebiscito e quando o exército em que serviram
vossos jovens irmãos levaram a cabo, sem hesitação nem remorso, um “genocídio”,
sois indubitavelmente verdugos. E se escolheis ser vítimas, arriscar um ou dois
dias de cadeia, escolheis simplesmente livrar-vos de uma embrulhada. Mas não vos
livrareis; é mister permanecer nela até ao fim. De resto é necessário
compreender isto: se a violência tivesse começado esta note, se nunca a
exploração nem a opressão tivessem existido na face da terra, talvez a
não-violência alardeada pudesse apaziguar a contenda. Mas se o próprio regime e
até os vossos não-violentos pensamentos estão condicionados por uma opressão
milenar, vossa passividade só serve para vos colocar do lado dos
opressores.
Sabeis muito vem que somos exploradores. Sabeis
que nos apoderamos do ouro e dos metais e, posteriormente, do petróleo dos
“continentes novos” e que os trouxemos para as velhas metrópoles. Com excelentes
resultados: palácios, catedrais, capitais industriais; e quando a crise
ameaçava, estavam ali os mercados coloniais para a amortecer ou desviar. A
Europa, empanturrada de riquezas, concedeu de jure a humanidade a todos os seus
habitantes; entre nós, um homem significa um cúmplice, visto que todos nós
lucramos com a exploração colonial. Este continente gordo e lívido acabou por
dar no que Fanon chama com justeza o “narcisismo”. Cocteau irritava-se com
Paris, “esta cidade que fala o tempo todo de si mesma”. E a Europa, que faz ela?
E esse monstro supereuropeu, a América do Norte? Que tagarelice: liberdade,
igualdade, fraternidade, amor, honra, pátria, que seu eu? Isso não nos impedia
de fazermos discursos racistas, negro sujo, judeu sujo, etc. Bons espíritos,
liberais e ternos – neocolonialistas, em suam – mostravam-se chocados com essa
inconseqüência; erro ou má-fé: nada mais conseqüente, em nosso meio, que um
humanismo racista, uma vez que o europeu só pode fazer-se homem fabricando
escravos e monstros. Enquanto houve um indígena, essa impostura não foi
desmascarada; encontrávamos no gênero humano uma abstrata postulação de
universalidade que servia para encobrir práticas mais realistas: havia, do outro
lado dos mares, uma raça de sub-homens que, graças a nós, em mil anos talvez,
teria acesso à nossa condição. Em resumo, confundíamos o gênero com a elite.
Hoje o indígena revela sua verdade; de repente, nosso clube tão fechado revela
sua fraqueza: não passava de uma minoria. Há coisa pior: uma vez que somos os
inimigos do gênero humano; a elite exibe sua verdadeira natureza: uma quadrilha
de bandidos. Quereis um exemplo? Lembrai-vos destas palavras grandiloquentes:
como é generosa a França! Generosos, nós? E Sétif? E esses oito anos de guerra
feroz que custaram a vida da mais de um milhão de argelinos? Mas compreendamos
que não nos censuram por termos traído não sei que missão, pela boa razão de que
não tínhamos nenhuma. É a própria generosidade que está em causa; essa bela
palavra sonora só tem um sentido: estatuto outorgado. Para os novos homens
emancipados que nos enfrentam, ninguém tem o poder nem o privilégio de dar nada
a ninguém. Cada qual tem todos os direitos. Sobre todos. E nossa espécie, quando
um dia se fizer a si mesma, não se definirá como a soma dos habitantes do globo
mas como a unidade infinita de suas reciprocidades. Paro aqui. Concluiríeis o
trabalho sem dificuldade. Basta que olheis de frente, pela primeira e última
vez, as nossas aristocráticas virtudes; elas rebentam, e como sobreviveriam à
aristocracia de sub-homens que as engendrou? Há alguns anos, um comentarista
burguês – e colonialista – só achou isto para defende o Ocidente: “Nós não somos
anjos, mas pelo menos temos remorsos”. Que confissão! Outrora nosso continente
tinha outros sustentáculos: o Partenon, Chartres, os Direitos do Homem, a
suástica. Sabemos agora o que valem e não pretendemos mais salvar-nos do
naufrágio senão pelo sentimento muito cristão de nossa culpabilidade. É o fim,
como vedes: a Europa faz água por todos os lados. Que aconteceu então?
Simplesmente isto: éramos os sujeitos da história e atualmente somos os objetos.
Inverteu-se a correlação de forças, a descolonização está em curso; tudo o que
nossos mercenários podem tentar é retardar-lhe a conclusão.
É preciso ainda que as velhas “Metrópoles”
metam o bedelho, empenhando todas as suas forças numa batalha, de antemão,
perdida. Essa velha brutalidade colonial, que fez a glória duvidosa dos
Bugeaud,vamos reencontra-la, no fim da aventura, decuplicada, insuficiente.
Envia-se o contingente para a Argélia, e ele lá se mantém há sete anos sem
resultado. A violência mudou de sentido; vitoriosos, nós a exercíamos sem que
ela parecesse alterar-nos: decompunha os outros e a nós, os homens, mas nosso
humanismo continuava intacto; unidos pelo lucro, os metropolitanos batizavam com
os nomes de fraternidade e amor a comunidade de seus crimes. Agora, a violência,
por toda parte bloqueada, volta-se contra nós através de nosso soldados,
interioriza-se e nos possui. Começa a involução: o colonizado se recompõe e nós,
fanáticos e liberais, colonos e “metropolitanos”, nós nos decompomos. Já o furor
e o medo estão nus; mostram-se a descoberto nas “pexotadas” de Argel. Onde estão
agora os selvagens? Onde está a barbárie? Não falta nada, nem mesmo o tantã. As
buzinas ritmam “Argélia Francesa” enquanto os europeus queimam vivos os
muçulmanos. Não faz muito tempo, lembra Fanon, psiquiatras em Congresso
afligiam-se com a criminalidade indígena. Esses homens se entrematam, diziam
eles, isso não é normal; o córtex do argelino deve ser subdesenvolvido. Na
África central outros estabeleceram que “o africano utiliza muito pouco seus
lobos frontais”. Esses sábios achariam interessante prosseguir hoje sua
investigação na Europa e particularmente entre os franceses. Porque nós também,
de alguns anos para cá, devemos estar sofrendo de preguiça frontal: Os Patriotas
assassinam um pouco os seus compatriotas; em caso de ausência, fazem ir pelos
ares o porteiro e a casa. É apenas um início: a guerra civil está prevista para
o outono ou a próxima primavera. Nossos lóbulos, porém, parecem em perfeito
estado. Não será que, por não poder esmagar o indígena, a violência se
concentra, se acumula dentro de nós e procura uma saída? A união do povo
argelino produz a desunião do povo francês: em todo o território da ex-metrópole
as tribos dançam e preparam-se para o combate. O terror deixou a África para
instalar-se aqui, porque há os furiosos que com toda a simplicidade querem
obrigar-nos a pagar com nosso sangue a vergonha de termos sido batidos pelo
indígena e há também os outros, todos os outros, igualmente culpado – após
Bizerta, após os linchamentos de setembro, quem foi à rua para dizer: chega? –
mas bem mais sossegados: os liberais, os duros dos duros da Esquerda mole. Neles
também a febre sobe. E o mau humor. Mas que cagaço! Mascaram a raiva sob mitos,
sob ritos complicados; para retardar o ajuste de contas final e a hora da
verdade, puseram à nossa frente um Grande Feiticeiro cuja unção é manter-nos a
todo custo na escuridão. Inutilmente; proclamada por uns, recalcada pelos
outros, a violência volteia: um dia explode em Metz, no outro em Bordéus; passou
por aqui, passará por ali; é o jogo do anel. Por nossa vez, passo a passo,
percorremos o caminho que leva ao indigenato. Mas para que nos tornássemos
inteiramente indígenas seria necessário que nosso solo fosse ocupado pelos
antigos colonizados e que morrêssemos de fome. Isto não acontecerá; não, é o
colonialismo decaído que nos possui, é ele que nos cavalgará dentro em breve,
decrépito e soberbo; aí estão nosso zar, nossa loa. E vós vos persuadireis,
lendo o último capítulo de Fanon, que é preferível ser um indígena no pior
momento da miséria que um ex-colono. Não é bom que um funcionário da polícia
seja obrigado a torturar dez horas por dia; nessa marcha, seus nervos ficam
abalados a menos que se proíba aos algozes, em seu próprio interesse, de faze
horas suplementares. Quando se quer proteger, com o rigor das leis, o moral da
Nação e do Exército, não é bom que esta desmoralize sistematicamente aquela. Nem
que um país de tradição republicana confie centenas de milhares de seus jovens a
oficiais golpistas. Não é bom, compatriotas, vós que conheceis todos os crimes
cometidos em nosso nome, não é realmente bom que não digamos nada a ninguém, nem
sequer a nossa alma, por temor de termos que nos julgar. A princípio ignoráveis,
concedo, depois tivestes dúvidas, presentemente sabeis, mas continuais calados.
Oito anos de silêncio, isto degrada. E em vão: hoje o sol ofuscante da tortura
está no zênite, alumia o país inteiro; sob essa luz não há mais um riso que soe
justo, um rosto que não tria nossos desgostos e cumplicidades. Basta hoje que
dois franceses se encontrem para que haja um cadáver entre eles. E quando eu
digo: um… A França, outrora, era o nome de um país; tomemos cuidado para que não
seja em 1961 o nome de uma neurose.
Nós nos curaremos? Sim. A violência como a
lança de Aquiles, pode cicatrizar as feridas que ela mesma fez. Hoje estamos
agrilhoados, humilhados, doentes de medo, arruinados. Felizmente isso ainda não
é suficiente para a aristocracia colonialista; ela não pode concluir sua missão
retardadora na Argélia enquanto não tiver primeiro acabado de colonizar os
franceses. Recuamos cada dia diante da luta, mas ficai certos de que não a
evitaremos: os matadores precisam dela e vão precipitar-se sobre nós e moer-nos
de pau. Assim terminará o tempo dos feiticeiros e dos fetiches: ou nos bateremos
ou apodreceremos nas prisões. É o momento final da dialética: condenais esta
guerra mas ainda não ousais declarar-vos solidários com os combatentes
argelinos; eles vos obrigarão a lutar. Talvez então, levados à parede,
desenfreareis enfim essa violência nova que velhos crimes requentados suscitam
em vós. Mas isto, como dizem, é outra história. A do homem. Aproxima-se o tempo,
estou certo disso, em que nós nos juntaremos àqueles que a fazem.
(Setembro de 1961)
SARTRE, Jean-Paul. Prefácio. In FANON, Frantz. Os
condenados da terra. 1a Edição. Tradução José Laurenio de Melo. Rio de Janeiro:
Civilização brasileira, 1968, Página 3-21.
1 comentário:
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