terça-feira, 4 de setembro de 2012

PLANO DE LUSAKA



34.     PLANO   DE   LUSAKA:
CAMINHO   PARA   A   PAZ
No dia 13 de Setembro de 1973, o dr. Keneth Kaunda, auxiliado por Marx Chona, passava para o papel o seu Plano de Lusaka para ser apreciado pelo Governo de Portugal. Seria seu portador o cônsul do Malawi, eng.° Jorge Pereira Jardim, então nas boas graças do governo de Marcello Caetano.
Alguns dirigentes da Frelimo haviam tido prévio conhecimento do Plano e se não o aplaudiam, aceitavam-no pelo menos.
A Frelimo era assolada pela crise que já descrevi e a solução encontrada pelo Presidente da Zâmbia punha termo aos fantasmas da derrota que acompa­nhavam muitos dos seus chefes.
O Presidente maoista da Tanzânia, também tinha conhecimento do Plano e sobre ele havia discutido com Kaunda em diversas reuniões. Para Nyerere, a não concretização do avanço russo no sub-continente era meio caminho para agradar aos proprietários da sua simpatia — a República Popular da China — e Moçambique seguiria depois, na paz, a inclinação política que lhe aprouvesse, ou que mais se enquadrasse na forma de sentir do povo moçambicano. Aliás, uma nação de influência lusitana implantada no meio do continente elevaria as possibilidades de equilíbrio político, favorecendo todos os territórios vizinhos.
Dividia-se o Plano em dois documentos distintos. No primeiro, o Presidente Keneth Kaunda descrevia o ponto de vista da Zâmbia na evolução dos territórios africanos portugueses, com vista à procura do caminho da paz, com honra, sem ressentimentos que viessem mais tarde a motivar o renascimento de atritos entre os dois povos — o português e o autóctone.
Desconheciam os autores da descolonizacão exemplar o Plano de Lusaka do dr. Kaunda? ...
Creio estar fora de hipóteses o seu desconhecimento pois ele chegara a alguns dirigentes portugueses. O que aconteceu foi que os planos de descolonizacão, disse­cados pelo grupo nomeado pelo general Costa Gomes, eram outros e bem diversos, como se depreende do teor do Acordo de Lusaka, assinado um ano depois em 7 de Setembro de 1974, onde não são ressalvadas quaisquer cláusulas que exprimam a intenção de salvaguardar os interesses dos portugueses residentes na colónia, onde não é protegida a cultura portuguesa, nem a memória dos seus mais altos valores.
Foi sob a «protecção» do almirante Vítor Crespo — um dos membros da Comissão de Descolonizacão do general Costa Gomes — que todos os monumentos portugueses foram apeados com raiva, e alguns destruídos ou danificados. Não escaparam à sanha destruidora os monumentos de Camões, de Vasco da Gama, de Gago Coutinho, de Sacadura Cabral, etc. Era necessário atirar ao lixo toda a recordação de Portugal e colocar, no seu lugar, as figuras de Lenine, de Karl Marx, de Mão Tse Tung.
O inculto comissário político da cidade de Moçambique, justificaria ao povo o motivo da destruição do monumento de Vasco da Gama com as seguintes palavras:
— O colonizador Salazar, para escravizar os africanos, mandou Vasco da Gama a Moçambique descobrir o caminho marítimo para a Índia.
E só assim, filosofando desta maneira, a acção destruidora dos alicerces de uma civilização — que mesmo assim não fenece — consentida pelo almirante Vitor Crespo pode sei entendida. Por mais socialista que fosse a atitude do alto comis­sário de Portugal em Moçambique, a farda que envergava e o cargo que exercia davam-lhe a obrigação de zelar e de fazer respeitar os símbolos de Portugal, como os valores espirituais e humanos que eles representavam.
Os destinos do povo moçambicano e dos portugueses foi jogado em Lusaka no dia 7 de Setembro de 1974, por portugueses, o que torna necessário divulgar o que um ano antes havia sido esquematizado por estrangeiros: O Presidente Keneth Kaunda e seus auxiliares. Por isso transcrevo, na íntegra, o Plano do Presidente Kaunda. E que o leitor seja o juiz:
«Confidencial
República da Zâmbia
Ponto de vista da Zâmbia na Evolução
dos Territórios Africanos Portugueses:
1.  A Zâmbia prossegue uma política de paz genuína. O Governo da Zâmbia continuará a esforçar-se para consolidar a paz na Zâmbia e no mundo. O Governo da Zâmbia interessa-se em ter ao redor da Zâmbia vizinhos estáveis e prósperos. Moçambique é um deles. A paz que a Zâmbia pre­tende em seu redor e no mundo em geral não é apenas a ausência de conflitos mas sobretudo a existência de harmonia, respeito e entendimento, tudo firmemente assegurado pela cadeira da justiça.
2. A Zâmbia prossegue uma política não racista. O Governo Português tem demonstrado que, ao contrário da África do Sul e da Rodésia rebelde, participa nos princípios fundamentais do não-racialismo. As lições da His­tória demonstram que o mundo se encaminha para uma maior integração humana e que a raça humana nunca mais voltará a ser a mesma. O Governo da Zâmbia aceita os milhares de brancos na Zâmbia e no resto da África Austral como uma realidade geográfica, histórica, social e cultural que terá tremenda influência no desenvolvimento humano desta parte do mundo. Os dirigentes africanos não podem abdicar das suas responsabilidades para com as raças não-negras, tal como não espera que os Britâ­nicos, os Americanos e os Latino Americanos, por exemplo, abdicassem das suas responsabilidades para com as raças negras e castanhas naqueles continentes.
       3.   A Zâmbia está interessada em desenvolver boas relações com Portugal. Nada se opõe a que os dois países desenvolvam boas relações e cooperação em muitos campos, excepto:
a)     A política portuguesa nos seus territórios africanos.
b)   A cooperação portuguesa política e militar com a África do Sul racista e com a Rodésia rebelde.
Os contactos entre os dois países seriam facilitados e encorajados se Portugal efectivamente modificasse a sua política em face da África do Sul e da Rodésia, cujos actos de agressão contra os países independentes da África são obstáculo na procura de uma solução pacífica dos actuais con­flitos nos territórios africanos portugueses.
      4.   A Zâmbia crê que a independência dos territórios portugueses em África é a única e definitiva solução para a presente situação crítica nesses territórios. A guerra é, lamentavelmente, uma desnecessária perda de sangue e dos recursos financeiros ou outros. Acções que aumentem o intenso ressentimento já existente entre as massas da população africana, cujo espírito e coração deveriam ser conquistados, devem ser firmemente evitadas.
O Governo português deveria, pelo contrário, intensificar os seus esforços para seriamente estabelecer uma estrutura realística para a coope­ração harmoniosa entre o povo de todas as raças nos territórios portu­gueses. Será o povo de Moçambique que em última análise tratará dos interesses portugueses e traçará o destino dos nacionais portugueses em Moçambique, tal como os dirigentes africanos em Angola e noutros pontos dos territórios portugueses tratarão dos interesses portugueses e moldarão o destino de toda a população incluindo os nacionais portugueses. Os Movi­mentos Nacionalistas como a «Frelimo» deveriam ser reconhecidos como um importante factor político cuja assistência na formulação da futura estrutura política não pode ser ignorada.
      5.    O Governo Português deveria evitar:
a)   Envolver a África do Sul política, e económica e militarmente nos territórios portugueses africanos.
b)   Envolver Portugal na derrocada rodesiana.
c)   Ser envolvido pelas grandes potências na defesa dos seus interesses na Rodésia, África do Sul, Namíbia e outros territórios da África Austral bem como nos seus próprios territórios africanos, uma vez que isso complicaria a procura de uma solução pacífica.
d)   Considerar a Zâmbia e a Tanzânia como Estados comunistas ou testas de ponte de comunismo. Na análise final, a Tanzânia e a Zâmbia são os melhores amigos do povo português e defenderão as comunidades portuguesas tal como têm defendido outras minorias no passado.
e) Alistar milhares de africanos no exército para combaterem os nacio­nalistas africanos porque isso conduzirá à militarização de Moçam­bique e outros territórios portugueses, para prejuízo último dos próprios interesses de Portugal. Quanto mais for o número de moçambicanos envolvidos nas acções de guerra maior será o número de pessoas submetidas à disciplina militar no futuro. Existem abundantes exem­plos na História que comprovam como essa orientação pode ser desastrosa.
O Governo Português tem interesse em criar condições apro­priadas para uma administração civil estável em Moçambique, em Angola e outros territórios sob a jurisdição portuguesa.
6. É com apoio nestes princípios que o Governo da Zâmbia tem oferecido repetidamente, desde a Independência, os seus bons ofícios privadamente e em público para assistir Portugal e pôr termo à guerra e a resolver os problemas através de negociações com os dirigentes nacionalistas. O Governo da Zâmbia está convencido de que os interesses portugueses serão melhor servidos se se trabalhar para a independência dos seus territórios africanos. Os dirigentes nacionalistas têm demonstrado a sua boa vontade para conversar acerca da criação de condições para a nego­ciação de futuros desenvolvimentos constitucionais em Moçambique.
7.    O Governo da Zâmbia acredita na comunicação. Acredita que esse é o melhor caminho para resolver o problema. Reafirma a sua disposição de oferecer os seus bons ofícios para ajudar a terminar a guerra e colocar Moçambique e Angola firmemente no caminho da genuína paz, indepen­dência e prosperidade.
Lusaka, 12 de Setembro de 1973.»
35.    PLANO  DE  LUSAKA:
O   BEM-ESTAR   DOS   PORTUGUESES
A segunda parte do Plano de Lusaka do dr. Keneth Kaunda refere, denomina­damente, a estrutura necessária para a Independência de Moçambique, e os inte­resses de Portugal que deveriam ser respeitados com garantias. Com a mesma segu­rança e tranquilidade Keneth Kaunda afirma a sua posição medianeira.
A troca de garantias é compensadora para Portugal e vai ao encontro das pretensões do povo português e do espírito que iria enformar, um ano depois, o Movimento das Forças Armadas, em 25 de Abril de 1974. Mas não agradaria aos negociadores portugueses comunistas. Teria outras cores a capitulação portuguesa.
O Plano de Lusaka proclama honra para Portugal. O texto e as intenções são claras e nem eram necessárias reformas. Compreendendo-se os motivos que levaram Portugal a não o aceitar antes da Revolução de Abril, não se entende a recusa após o Movimento das Forças Armadas ter abalado e destruído os alicerces sobre os quais repousava a teoria do governo português deposto. Mas as inovações introduzidas em Portugal são ilimitadas e a Comissão de Descolonização olha o problema de modo diferente. E quem não concordar com ela comete o horrível e duramente punido crime contra a descolonização.
A opinião pública internacional mostra-se confusa. O Plano do dr. Kaunda transpirara e muitos países não entendem o comportamento de Portugal, mas assis­tem em silêncio. Só a Rádio Moscovo, nos seus noticiários para as colónias portu­guesas e Brasil, vai dando a perceber as íntimas relações entre o proceder da Comissão de Descolonização e a forma de olhar o problema de Moscovo. E é a Comissão de Descolonização, com o seu procedimento repressivo, que castra qualquer tentativa, entre Abril e Setembro, para fazer ressuscitar o Plano de Lusaka.
É interessante verificar que até agora, em 1977, toda a Imprensa portuguesa o tem olvidado, como que a não querer remexer numa ferida acesa em muitas consciências portuguesas. E que melhor altura para o divulgar do que esta, quando Portugal conta com um Governo onde o Partido Comunista foi pouco votado pelo povo português? Não será ainda ocasião para dizer a verdade aos portugueses, aquela verdade que Keneth Kaunda não escondeu em 1973 dos dirigentes de Portugal?
Publico, a seguir, o segundo documento do Plano de Lusaka e mais uma vez peço ao leitor para ser juiz:
«Confidencial República da Zâmbia
              Memorandum
Ponto de vista da Zâmbia na Evolução dos Territórios  Africanos Portugueses Estrutura para a Independência
O Governo Português está obviamente preocupado acerca da preservação dos seus interesses nacionais nos territórios africanos de Portugal. Deve inter alia preocupar-se com o tipo de ligações que permitiriam a Portugal manter a sua influência nos novos territórios independentes. O Governo da Zâmbia tem a cons­ciência desta preocupação e está portanto procurando colaborar na preparação de uma estrutura que proteja e garanta os interesses portugueses. O Governo da Zâmbia está preparado, desde que tenha o acordo do lado português, para obter as garantias dos dirigentes nacionalistas acerca do futuro dos interesses de Portugal. Com este objectivo deve ser considerado o seguinte:

1.    RELAÇÕES  POLÍTICAS
a)  Os territórios independentes prosseguirão uma tendência não-racial na construção das novas nações e os nacionais portugueses que ali têm vivido há séculos encontrarão uma melhor situação do que aquela que têm agora.
 b)   A segurança dos nacionais portugueses apenas pode ser apropriada­mente garantida através de um programa de integração nacional sob condições de harmonia racial e cooperação, sem conflito ou guerra. A actual guerra é um obstáculo para se alcançarem estes objectivos.
c)   As relações diplomáticas entre os novos territórios independentes e Portugal assegurarão contactos mais efectivos e produtivos, bem como mútuo apoio na base de igualdade e respeito recíprocos.
d)   Estabelecimento de uma Comunidade Lusíada compreendendo os anti­gos territórios portugueses incluindo o Brasil. Uma associação destas, na qual Portugal teria uma posição dominante, desenvolver-se-ia como melhor organização do que a «Commonwealth» que a Grã-Bretanha instaurou. A política britânica-rodesiana-sul-africana conjuntamente com a visão racista de alguns nacionais britânicos nas antigas colónias britânicas ensombraram a imagem da Grã-Bretanha e reduziram a sua influência, sobretudo em África.
e) A Administração nos novos territórios independentes será grandemente influenciada por Portugal no futuro previsível. Durante este período os nacionais portugueses serão capazes de criar um maior grau de confiança na governação das novas nações independentes agora sob controlo português.
2.    RELAÇÕES  CULTURAIS
O Governo da Zâmbia está ciente do orgulho português na sua cultura Lusíada. É convicção do Governo da Zâmbia de que a independência dos territórios africanos portugueses não significará o fim da influência cul­tural portuguesa, mas ao contrário o início da expansão do campo da cultura lusa em dignidade e respeito.
a) O português permanecerá como a Língua Franca nos novos territórios independentes.
b)   A educação será predominantemente portuguesa com professores por­tugueses.
c)   Cooperação técnica com experiência e pessoal portugueses.
d)  A influência portuguesa na vida social e cultural permanecerá durante longo tempo.
e)   As   condições   religiosas   serão  influenciadas  pelo   passado   português.

3.    RELAÇÕES  ECONÓMICAS
A conservação dos interesses económicos portugueses é fundamental em qualquer acordo para conceder a independência aos territórios africanos portugueses. O Governo da Zâmbia está ciente de que qualquer estrutura para a independência deveria garantir ao Governo Português que os seus interesses económicos serão protegidos.
a) Comércio
b) Investimentos
c)  Assistência técnica
d) Acordo económico e de cooperação técnica.
4.    RELAÇÕES  MILITARES
O Governo da Zâmbia reconhece que a Defesa é um campo muito melin­droso. O Governo Português quererá, sem dúvida, estar seguro de que a independência política não conduzirá, por exemplo, a que uma potência comunista preencha o vácuo. A preservação dos territórios portugueses será assunto de interesse para o Ocidente em geral. Segundo o Governo da Zâmbia estes aspectos são negociáveis com os dirigentes nacionalistas e não serão um obstáculo para um acordo final sobre a independência.
5.    OPORTUNIDADE  PARA  A  INDEPENDÊNCIA
Deve ser negociada logo que a estrutura para a independência esteja traçada.
6. FACTORES EXTERNOS QUE DEVEM SER ARREDADOS DA SITUAÇÃO PORTUGUESA
1. Envolvimento da África do Sul.
2. Envolvimento da Rodésia.
3. Envolvimento das grandes potências.
Estes podem complicar as negociações ou as medidas tomadas para pôr fim à guerra.
Interesses Nacionais Portugueses
1.    INTERESSES  POLÍTICOS  E  DE  SEGURANÇA
Fundamentalmente referimo-nos ao bem-estar dos nacionais portugueses na era post-independência. O novo sistema político para os novos países independentes deverá assegurar protecção para todos os moçambicanos e promover o seu bem-estar sem consideração de raça, cor, credo ou origem étnica. De particular importância para o Governo Português é o futuro de uma grande população de origem portuguesa.
2.    INFLUÊNCIA  POLÍTICA
Portugal deseja, sem dúvida, ter uma influência dominante nos novos países independentes e não desejaria ver o crescimento de qualquer outra influência prejudicial para os interesses portugueses nos seus antigos territórios.
3.    INTERESSES  ECONÓMICOS  E  FINANCEIROS
Portugal desejaria, sem dúvida, ver que o comércio, os investimentos e outros interesses económicos sejam completamente desenvolvidos nos seus antigos territórios em seu favor e não em favor de qualquer outra potência.
4.    INTERESSES   CULTURAIS
Conservação da cultura lusa.
5.    DEFESA
Os novos países independentes deveriam, no ponto de vista do Governo Português, manter uma atitude quanto à defesa que pelo menos não fosse anti-portuguesa. A estrutura para a conservação e progresso de todos estes interesses nacionais é, no conhecimento da Zâmbia, negociável. Os chefes nacionalistas estão determinados por um sentimento de respon­sabilidade moral para com Portugal e os seus interesses, e estariam pre­parados para encontrar uma solução amigável em todos estes aspectos.
Lusaka, 12 de Setembro de 1973.»

In Inácio de Passos – Moçambique A Escalada do Terror 1977 (pág. 176)