34.
PLANO DE LUSAKA:
CAMINHO
PARA A PAZ
No dia 13 de Setembro de 1973, o dr.
Keneth Kaunda, auxiliado por Marx Chona, passava para o papel o seu Plano de
Lusaka para ser apreciado pelo Governo de Portugal. Seria seu portador o
cônsul do Malawi, eng.° Jorge Pereira Jardim, então nas boas graças do governo
de Marcello Caetano.
Alguns dirigentes da Frelimo haviam tido
prévio conhecimento do Plano e se não o aplaudiam, aceitavam-no pelo menos.
A Frelimo era assolada pela crise que já
descrevi e a solução encontrada pelo Presidente da Zâmbia punha termo aos
fantasmas da derrota que acompanhavam muitos dos seus chefes.
O Presidente maoista da Tanzânia, também
tinha conhecimento do Plano e sobre ele havia discutido com Kaunda em diversas
reuniões. Para Nyerere, a não concretização do avanço russo no sub-continente
era meio caminho para agradar aos proprietários da sua simpatia — a República
Popular da China — e Moçambique seguiria depois, na paz, a inclinação política
que lhe aprouvesse, ou que mais se enquadrasse na forma de sentir do povo
moçambicano. Aliás, uma nação de influência lusitana implantada no meio do
continente elevaria as possibilidades de equilíbrio político, favorecendo todos
os territórios vizinhos.
Dividia-se o Plano em dois documentos
distintos. No primeiro, o Presidente Keneth Kaunda descrevia o ponto de vista
da Zâmbia na evolução dos territórios africanos portugueses, com vista à
procura do caminho da paz, com honra, sem ressentimentos que viessem mais tarde
a motivar o renascimento de atritos entre os dois povos — o português e o
autóctone.
Desconheciam os autores da descolonizacão
exemplar o Plano de Lusaka do dr. Kaunda? ...
Creio estar fora de hipóteses o seu
desconhecimento pois ele chegara a alguns dirigentes portugueses. O que
aconteceu foi que os planos de descolonizacão, dissecados pelo grupo nomeado
pelo general Costa Gomes, eram outros e bem diversos, como se depreende do teor
do Acordo de Lusaka, assinado um ano depois em 7 de Setembro de 1974,
onde não são ressalvadas quaisquer cláusulas que exprimam a intenção de
salvaguardar os interesses dos portugueses residentes na colónia, onde não é
protegida a cultura portuguesa, nem a memória dos seus mais altos valores.
Foi sob a «protecção» do almirante Vítor
Crespo — um dos membros da Comissão de Descolonizacão do general Costa Gomes —
que todos os monumentos portugueses foram apeados com raiva, e alguns
destruídos ou danificados. Não escaparam à sanha destruidora os monumentos de
Camões, de Vasco da Gama, de Gago Coutinho, de Sacadura Cabral, etc. Era
necessário atirar ao lixo toda a recordação de Portugal e colocar, no seu
lugar, as figuras de Lenine, de Karl Marx, de Mão Tse Tung.
O inculto
comissário político da cidade de Moçambique, justificaria ao povo o motivo da
destruição do monumento de Vasco da Gama com as seguintes palavras:
—
O colonizador Salazar, para escravizar os africanos, mandou Vasco da Gama a
Moçambique descobrir o caminho marítimo para a Índia.
E só assim, filosofando desta
maneira, a acção destruidora dos alicerces de uma civilização — que mesmo assim
não fenece — consentida pelo almirante Vitor Crespo pode sei entendida. Por
mais socialista que fosse a atitude do alto comissário de
Portugal em Moçambique, a farda que envergava e o cargo que exercia davam-lhe a
obrigação de zelar e de fazer respeitar os símbolos de Portugal, como os
valores espirituais e humanos que eles representavam.
Os destinos do
povo moçambicano e dos portugueses foi jogado em Lusaka no dia 7 de Setembro de
1974, por portugueses, o que torna necessário divulgar o que um ano antes havia
sido esquematizado por estrangeiros: O Presidente Keneth Kaunda e seus
auxiliares. Por isso transcrevo, na íntegra, o Plano do Presidente Kaunda. E
que o leitor seja o juiz:
«Confidencial
República
da Zâmbia
Ponto
de vista da Zâmbia na Evolução
dos
Territórios Africanos Portugueses:
1. A Zâmbia prossegue uma política de paz
genuína. O Governo da Zâmbia continuará a esforçar-se para consolidar a paz na
Zâmbia e no mundo. O Governo da Zâmbia
interessa-se em ter ao redor da Zâmbia vizinhos estáveis e
prósperos. Moçambique é um deles. A paz que a Zâmbia pretende em seu redor e
no mundo em geral não é apenas a ausência de conflitos mas sobretudo a
existência de harmonia, respeito e entendimento, tudo firmemente assegurado
pela cadeira da justiça.
2.
A Zâmbia prossegue uma política não racista. O Governo Português tem
demonstrado que, ao contrário da África do Sul e da Rodésia rebelde, participa
nos princípios fundamentais do não-racialismo. As lições da História
demonstram que o mundo se encaminha para uma maior integração humana e que a
raça humana nunca mais voltará a ser a mesma. O Governo da Zâmbia aceita os
milhares de brancos na Zâmbia e no resto da África Austral como uma realidade
geográfica, histórica, social e cultural que terá tremenda influência no
desenvolvimento humano desta parte do mundo. Os dirigentes africanos não podem
abdicar das suas responsabilidades para com as raças não-negras, tal como não
espera que os Britânicos, os Americanos e os Latino Americanos, por exemplo,
abdicassem das suas responsabilidades para com as raças negras e castanhas
naqueles continentes.
3.
A Zâmbia está interessada em
desenvolver boas relações com Portugal. Nada se opõe a que os dois países
desenvolvam boas relações e cooperação em muitos campos, excepto:
a) A política portuguesa nos seus territórios
africanos.
b) A cooperação portuguesa política e militar
com a África do Sul racista e com a Rodésia rebelde.
Os
contactos entre os dois países seriam facilitados e encorajados se Portugal
efectivamente modificasse a sua política em face da África do Sul e da Rodésia,
cujos actos de agressão contra os países independentes da África são obstáculo
na procura de uma solução pacífica dos actuais conflitos nos territórios
africanos portugueses.
4.
A Zâmbia crê que a independência dos territórios portugueses em África é
a única e definitiva solução para a presente situação crítica nesses
territórios. A guerra é, lamentavelmente, uma desnecessária perda de sangue e
dos recursos financeiros ou outros. Acções que aumentem o intenso ressentimento
já existente entre as massas da população africana, cujo espírito e coração
deveriam ser conquistados, devem ser firmemente evitadas.
O
Governo português deveria, pelo contrário, intensificar os seus esforços para
seriamente estabelecer uma estrutura realística para a cooperação harmoniosa
entre o povo de todas as raças nos territórios portugueses. Será o povo de
Moçambique que em última análise tratará dos interesses portugueses e traçará o
destino dos nacionais portugueses em Moçambique, tal como os dirigentes
africanos em Angola e noutros pontos dos territórios portugueses tratarão dos
interesses portugueses e moldarão o destino de toda a população incluindo os nacionais
portugueses. Os Movimentos Nacionalistas como a «Frelimo» deveriam ser
reconhecidos como um importante factor político cuja assistência na formulação
da futura estrutura política não pode ser ignorada.
5. O Governo Português deveria
evitar:
a) Envolver a África do Sul política, e
económica e militarmente nos territórios portugueses africanos.
b) Envolver Portugal na derrocada rodesiana.
c) Ser envolvido pelas grandes potências na
defesa dos seus interesses na Rodésia, África do Sul, Namíbia e outros
territórios da África Austral bem como nos seus próprios territórios africanos,
uma vez que isso complicaria a procura de uma solução pacífica.
d) Considerar a Zâmbia e a Tanzânia como
Estados comunistas ou testas de ponte de comunismo. Na análise final, a
Tanzânia e a Zâmbia são os melhores amigos do povo
português e defenderão as comunidades portuguesas tal como têm defendido outras
minorias no passado.
e)
Alistar milhares de africanos no exército para combaterem os nacionalistas africanos
porque isso conduzirá à militarização de Moçambique e outros territórios
portugueses, para prejuízo último dos próprios interesses de Portugal. Quanto
mais for o número de moçambicanos envolvidos nas acções de guerra maior será o
número de pessoas submetidas à disciplina militar no futuro. Existem abundantes
exemplos na História que comprovam como essa orientação pode ser desastrosa.
O
Governo Português tem interesse em criar condições apropriadas para uma
administração civil estável em Moçambique, em Angola e outros territórios sob a
jurisdição portuguesa.
6.
É com apoio nestes princípios que o Governo da Zâmbia tem oferecido repetidamente, desde a
Independência, os seus bons ofícios privadamente e em público para assistir
Portugal e pôr termo à guerra e a resolver os problemas através de negociações
com os dirigentes nacionalistas. O Governo da Zâmbia está convencido de que os
interesses portugueses serão melhor servidos se se trabalhar para a
independência dos seus territórios africanos. Os dirigentes nacionalistas têm
demonstrado a sua boa vontade para conversar acerca da criação de condições
para a negociação de futuros desenvolvimentos constitucionais em Moçambique.
7. O Governo da Zâmbia acredita na comunicação. Acredita que esse é o
melhor caminho para resolver o problema. Reafirma a sua disposição de oferecer
os seus bons ofícios para ajudar a terminar a guerra e colocar Moçambique e
Angola firmemente no caminho da genuína paz, independência e prosperidade.
Lusaka,
12 de Setembro de 1973.»
35.
PLANO DE
LUSAKA:
O
BEM-ESTAR DOS PORTUGUESES
A segunda parte do Plano de Lusaka do dr.
Keneth Kaunda refere, denominadamente, a estrutura necessária para a
Independência de Moçambique, e os interesses de Portugal que deveriam ser
respeitados com garantias. Com a mesma segurança e tranquilidade Keneth Kaunda
afirma a sua posição medianeira.
A troca de garantias é compensadora para Portugal e vai ao
encontro das pretensões do povo português e do espírito que iria enformar, um
ano depois, o Movimento das Forças Armadas, em 25 de Abril de
1974. Mas não agradaria aos negociadores portugueses comunistas. Teria outras
cores a capitulação portuguesa.
O
Plano de Lusaka proclama honra para Portugal. O texto e as
intenções são claras e nem eram necessárias reformas. Compreendendo-se os
motivos que levaram Portugal a não o aceitar antes da Revolução de Abril, não
se entende a recusa após o Movimento das Forças Armadas ter abalado e destruído
os alicerces sobre os quais repousava a teoria do governo português deposto.
Mas as inovações introduzidas em Portugal são ilimitadas e a Comissão de
Descolonização olha o problema de modo diferente. E quem não concordar com ela
comete o horrível e duramente punido crime contra a descolonização.
A opinião
pública internacional mostra-se confusa. O Plano do dr. Kaunda transpirara e muitos países não
entendem o comportamento de Portugal, mas assistem em silêncio. Só a Rádio
Moscovo, nos seus noticiários para as colónias portuguesas e Brasil, vai dando
a perceber as íntimas relações entre o proceder da Comissão de Descolonização e
a forma de olhar o problema de Moscovo. E é a Comissão de Descolonização, com o
seu procedimento repressivo, que castra qualquer tentativa, entre Abril e
Setembro, para fazer ressuscitar o Plano de Lusaka.
É interessante
verificar que até agora, em 1977, toda a Imprensa portuguesa o tem olvidado,
como que a não querer remexer numa ferida acesa em muitas consciências
portuguesas. E que melhor altura para o divulgar do que esta, quando Portugal
conta com um Governo onde o Partido Comunista foi pouco votado pelo povo
português? Não será ainda ocasião para dizer a verdade aos portugueses, aquela
verdade que Keneth Kaunda não escondeu em 1973 dos dirigentes de Portugal?
Publico, a
seguir, o segundo documento do Plano de Lusaka e
mais uma vez peço ao leitor para ser juiz:
«Confidencial
República da Zâmbia
Memorandum
Ponto
de vista da Zâmbia na Evolução dos Territórios
Africanos Portugueses Estrutura para a Independência
O
Governo Português está obviamente preocupado acerca da preservação dos seus
interesses nacionais nos territórios africanos de Portugal. Deve inter alia preocupar-se com o tipo de
ligações que permitiriam a Portugal manter a sua influência nos novos
territórios independentes. O Governo da Zâmbia tem a consciência desta
preocupação e está portanto procurando colaborar na preparação de uma estrutura
que proteja e garanta os interesses portugueses. O Governo da Zâmbia está
preparado, desde que tenha o acordo do lado português, para obter as garantias
dos dirigentes nacionalistas acerca do futuro dos interesses de Portugal. Com
este objectivo deve ser considerado o seguinte:
1.
RELAÇÕES POLÍTICAS
a) Os territórios independentes prosseguirão uma
tendência não-racial na construção das novas nações e os nacionais portugueses
que ali têm vivido há séculos encontrarão uma melhor situação do que aquela que
têm agora.
b) A
segurança dos nacionais portugueses apenas pode ser apropriadamente garantida
através de um programa de integração nacional sob condições de harmonia racial
e cooperação, sem conflito ou guerra. A actual guerra é um obstáculo para se
alcançarem estes objectivos.
c) As relações diplomáticas entre os novos
territórios independentes e Portugal assegurarão contactos mais efectivos e
produtivos, bem como mútuo apoio na base de igualdade e respeito recíprocos.
d) Estabelecimento de uma Comunidade Lusíada
compreendendo os antigos territórios portugueses incluindo o Brasil. Uma
associação destas, na qual Portugal teria uma posição dominante,
desenvolver-se-ia como melhor organização do que a «Commonwealth» que a
Grã-Bretanha instaurou. A política britânica-rodesiana-sul-africana
conjuntamente com a visão racista de alguns nacionais britânicos nas antigas colónias
britânicas ensombraram a imagem da Grã-Bretanha e reduziram a sua influência,
sobretudo em África.
e)
A Administração nos novos territórios independentes será grandemente
influenciada por Portugal no futuro previsível. Durante este período os nacionais
portugueses serão capazes de criar um maior grau de confiança na governação das
novas nações independentes agora sob controlo português.
2.
RELAÇÕES CULTURAIS
O Governo da Zâmbia está
ciente do orgulho português na sua cultura Lusíada. É convicção do Governo da
Zâmbia de que a independência dos territórios africanos portugueses não
significará o fim da influência cultural portuguesa, mas ao contrário o início
da expansão do campo da cultura lusa em dignidade e respeito.
a)
O português permanecerá como a Língua Franca nos novos territórios
independentes.
b) A educação será predominantemente portuguesa
com professores portugueses.
c)
Cooperação técnica com experiência e pessoal portugueses.
d) A influência portuguesa na vida social e
cultural permanecerá durante longo tempo.
e)
As condições religiosas
serão influenciadas pelo
passado português.
3. RELAÇÕES
ECONÓMICAS
A conservação dos interesses
económicos portugueses é fundamental em qualquer acordo para conceder a
independência aos territórios africanos portugueses. O Governo da Zâmbia está
ciente de que qualquer estrutura para a independência deveria garantir ao
Governo Português que os seus interesses económicos serão protegidos.
a) Comércio
b) Investimentos
c) Assistência
técnica
d) Acordo
económico e de cooperação técnica.
4. RELAÇÕES
MILITARES
O Governo da Zâmbia
reconhece que a Defesa é um campo muito melindroso. O Governo Português
quererá, sem dúvida, estar seguro de que a independência política não
conduzirá, por exemplo, a que uma potência comunista preencha o vácuo. A
preservação dos territórios portugueses será assunto de interesse para o
Ocidente em geral. Segundo o Governo da Zâmbia estes aspectos são negociáveis
com os dirigentes nacionalistas e não serão um obstáculo para um acordo final
sobre a independência.
5. OPORTUNIDADE PARA
A INDEPENDÊNCIA
Deve ser negociada logo que
a estrutura para a independência esteja traçada.
6. FACTORES EXTERNOS QUE
DEVEM SER ARREDADOS DA SITUAÇÃO PORTUGUESA
1. Envolvimento da África do Sul.
2. Envolvimento da Rodésia.
3. Envolvimento das grandes potências.
Estes podem complicar as
negociações ou as medidas tomadas para pôr fim à guerra.
Interesses
Nacionais Portugueses
1. INTERESSES
POLÍTICOS E DE
SEGURANÇA
Fundamentalmente
referimo-nos ao bem-estar dos nacionais portugueses na era post-independência.
O novo sistema político para os novos países independentes
deverá assegurar protecção para todos os moçambicanos e promover o seu
bem-estar sem consideração de raça, cor, credo ou origem étnica. De particular
importância para o Governo Português é o futuro de uma grande população de
origem portuguesa.
2. INFLUÊNCIA
POLÍTICA
Portugal deseja, sem dúvida,
ter uma influência dominante nos novos países independentes e não desejaria ver
o crescimento de qualquer outra influência prejudicial para os interesses
portugueses nos seus antigos territórios.
3. INTERESSES
ECONÓMICOS E FINANCEIROS
Portugal desejaria, sem
dúvida, ver que o comércio, os investimentos e outros interesses económicos
sejam completamente desenvolvidos nos seus antigos territórios em seu favor e
não em favor de qualquer outra potência.
4. INTERESSES
CULTURAIS
Conservação da cultura lusa.
5.
DEFESA
Os novos países
independentes deveriam, no ponto de vista do Governo Português, manter uma
atitude quanto à defesa que pelo menos não fosse anti-portuguesa. A estrutura
para a conservação e progresso de todos estes interesses nacionais é, no
conhecimento da Zâmbia, negociável.
Os chefes nacionalistas estão determinados por um sentimento de responsabilidade
moral para com Portugal e os seus interesses, e estariam preparados para
encontrar uma solução amigável em todos estes aspectos.
Lusaka,
12 de Setembro de 1973.»
In Inácio de
Passos – Moçambique A Escalada do Terror 1977 (pág. 176)