São
23 horas. Tempo de ir para a montra. Na chamada Rua dos Pecados,
despem-se as capulanas e os lenços, surgem os saiotes curtos e
transparentes que realçam o fio dental, destapando as pontas dos
mamilos. Ancas e coxas ganham bamboleios, pois irão marcar a diferença,
no difícil exercício de atrair clientes. Tudo então se altera. Do andar,
ao falar… Todas são poliglotas, “spicando” do inglês ao alemão
misturado com o bitonga quando necessário. Não há complexos nem
inibições, pois os pontapés na gramática até são um modelo de atracção.
O sol já se foi,
mas o dia ainda é uma criança no reino das “rapidinhas”, das bebidas
ingeridas a contra-gosto, das danças e estilos forçados pelas
circunstâncias! Vêm da periferia da capital e de outros pontos do país, a
maioria à sucapa de pais ou familiares que as acolhem, rumo à noite
maputense. Jovens ainda na puberdade, dos 13 anos em diante, saem de
casa como boas meninas, muitas vezes com mochilas de estudante, mas no
“triângulo vermelho” operam transformações, vestindo o “fato de
trabalho”. Aí, misturam- se com as veteranas. Os cabelos são tratados à
medida das posses, desfrizados, substituídos por tissagens ou perucas…
tudo, menos a carapinha original.
Ditadura da veterania
O
“cartão-de-visitas” da Rua de Bagamoyo é o Luso. Lá, faz-se
strip-tease, o serviço é atractivo e há protecção para os clientes,
garantido por musculados, espalhados um pouco por todo o lado. É para lá
que convergem os mais abastados, ou pelo menos aqueles que não se
importam de pagar por cada cerveja um pouco mais do dobro do preço no
“dumba-nengue”. Há hierarquia, sobretudo entre as mulheres. Por exemplo:
há as “aloiraçadas” veteranas, cujo porte, vestimenta e capacidade de
impressionar, lhes garantem à partida o acesso aos mais “tacudos”.
Beneficiam da “cunha” dos seguranças, têm um esquema de relações
públicas mais sofisticado.
Pelo seu
estatuto, posicionam-se por detrás do balcão e observam, altaneiras, as
concorrentes, usando um ascendente que não permite discussão, por várias
razões: o inglês aprendido em muitas horas de “pontapés na gramática”,
cá ou na terra do rand, a peruca tratada no cabeleireiro, os seios,
imponentes, sobrando dos “soutiens”, a maquilhagem e a desenvoltura,
conferida por vários anos no ofício. Gabam-se de ter conta bancária,
apartamento e “taxeiro” privativos. Do seu amante de ocasião, já recebem
por antecipação uma grossa quantia para desfrutarem na noite. Não raras
vezes, socorrem as “novatas” em situações aflitivas, não por
solidariedade, mas para vincar diferenças e prevenir veleidades.
No mundo da
prostituição, as regras e os escalões são como no futebol: sub-17,
sub-20… e equipa principal. Com a diferença de que aqui, as veteranas no
activo são quem estabelece as regras e controla tudo. A concorrência é
grande. E por vezes desonesta. O simples facto de alguém possuir uma tez
mais clara, uma peruca loira, ou um casaco “chique”, dá-lhe ascendente.
Afi nal, todas estão ali em busca de um “jackpot”, o que significa um
bolso farto, que permita mitigar a fome do dia seguinte e pagar a
matrícula escolar dos filhos. É assim a vida e a sorte das prostitutas
na baixa de Maputo, onde as noites se transformam em dia e grande parte
das normas que vigoram para lá “desse território” são letra morta.
Inclusive, a deliberação governamental que interdita o acesso de menores
a locais de diversão nocturna. É normal verem-se moças com saias
curtinhas, seios em maturação em rosto “imberbe”, exibido todas as
noites.
O drama das taxas
Quando saem de
casa, apenas levam consigo míseros trocos para o “chapa”, muitas vezes
só para o percurso de ida. O resto depende da sorte e da capacidade de
seduzir parceiros. De permeio, há que ter em conta as taxas da longa
noite, que começam onde se guardam as roupas, passam pelo pagamento a
certos agentes da polícia e terminam nos “gangs” de bandidos que actuam
mal lhes cheire a “mola”. Estes e outros são o drama das desfavorecidas,
daquelas que, na verdade, não fazem da prostituição um modo de vida,
mas apenas uma forma de sobrevivência e que, nalguns casos, acaba por se
tornar hábito, porque única alternativa antes de as rugas aparecerem e
os seios se assemelharem a autênticas “sapatilhas”.
As jovens, em
muitos casos, levam de dia uma vida normal, são estudantes ou
trabalhadoras, mas aos fins-de-semana fazem o seu “biscate”. Um outro
escalão é o das não dotadas de encantos pela natureza, “semi-mamanas”,
por vezes já com “pneus” na cintura. Sem encantos, procuram a
concorrência através de outro tipo de estratégias, que passam por
menores exigências e trocas de favores na sua humilde dependência, de
quarto e casa de banho. Trazem o parceiro pela madrugada e removem os
corpinhos inocentes dos filhos, que dormitam de barrigas vazias.
Aí, cumprem a
“função”. Muitas vezes, após a relutância do candidato, atraído por
jovens mais es- Nessas alturas, os incidentes aumentam como consequência
do galopante consumo de álcool, sendo a cerveja a bebida mais
consumida. O maior número de desaguisados é entre as mulheres, que não
aceitam de ânimo leve a traição, vulgarmente conhecida por “cabeçada”. E
quando a moeda em perspectiva é a nota verde, vale tudo, quebrando-se
as habituais regras de “sondar antes de atacar”, caso o cavalheiro
“esteja com alguém”.
O
ponto alto é as duas da manhã, com os corpos cansados e o álcool a
atingir o timbre máximo. As que foram “contempladas” procuram
desesperadamente atrair os seus amantes para longe da concorrência. As
menos “sortudas” vão baixando o seu nível de exigências, ao ponto de uma
sandes, uma cerveja e a eventual boleia para casa, poder valer uma
“rapidinha” já ao nascer da manhã. Os sonhos do “jackpot” foram-se
esvaindo com a noite. Nestes casos, fazem-se juras de amor ao
companheiro de última hora, tentando recolher trocos para a salvação do
dia...
Este afirma-se
“desprevenido”, dá o que entende, sob promessa de novos encontros. Aí, a
troca de números de telefones e mesmo de nomes, nem sempre são
verdadeiros. culturais, “abrem o jogo”, colocam-lhe as suas
dificuldades, que se prendem com as necessidades imediatas do pagamento
da renda de casa ou do leite para os meninos.
Fica a promessa
de uma posterior partilha daquele leito, em noites de entrega total, com
amor pago a prestações, consoante as circunstâncias, através de umas
cervejas ou de um pequeno rancho para a família. Rolam as horas
baixam-se as exigências. Quando se regista um qualquer acontecimento
especial, como a chegada de uma fragata de guerra ou um conjunto de
navios no porto, a face da rua muda radicalmente. Os bares regurgitam de
gente, o neón começa mais cedo e nalguns casos mantém-se ligado manhã
dentro. Aí, a festa é de todo(a)s. Os polícias ficam mais atentos, os
“taxeiros” fazem o vaivém, e os “chulos” reclamam a sua quota-parte.
@VERDADE – 16.10.2009