Falo da existência da tentativa de utilizar o partido para se servir a si próprio, ao invés de servir o povo. E no meio desse jogo até se utiliza o tribalismo, até o regionalismo para se alcançar certos interesses – Coronel Sérgio Vieira em entrevista ao Canal de Moçambique
Bernardo Álvaro
O ambiente que se vive na direcção do partido Frelimo é turbulento. As constantes contradições entre membros históricos do partido podem bem revelar essa turbulência. Agora que se aproxima a fase decisiva na definição de quem irá dirigir o partido nos próximos anos, acentua-se o bate-boca dos camaradas na Imprensa, em assuntos que antes eram discutidos em fóruns bastantes restritos.
Durante a VII Sessão do Comité Central da Frelimo, realizada a semana passada na Matola, foi o Coronel Sérgio Vieira que, através da Imprensa, no caso o Canal de Moçambique, veio a público mandar recados para dentro do partido Frelimo.
O coronel disse claramente que “há diminuição de debate dentro do partido” e talvez por isso mesmo tenha aproveitado a entrevista a este semanário para falar de assuntos sensíveis como tribalismo, regionalismo, no seio da Frelimo.
Curto e grosso, Sérgio Vieira trouxe
mais revelações que podem explicar bem como se vive na actual Frelimo.
Eis a entrevista que o respeitado coronel
concedeu ao Canal de Moçambique no pátio da Escola Central do Partido Frelimo,
no dia da abertura da VII Sessão do Comité Central.
Canal de Moçambique
(Canal) – Coronel Sérgio Vieira, depois desta sessão deixa de fazer parte do
Comité Central. Que avaliação faz durante o
tempo em que ficou
membro e quais são as recomendações que deixa para os que ficam e os que vão
entrar neste órgão do partido Frelimo?
Sérgio Vieira – Creio que são muitas
coisas boas e outras extremamente muito más. Desempenhou-se no partido, em
conjunto, muitas coisas. Falámos de cinquenta anos de história. Falo da Luta de
Libertação Nacional, a criação de um Estado moçambicano, a consolidação e a
socialização do Estado, contribuição para libertação do Zimbabwe, da África do
Sul, a defesa de Angola e outras coisas extraordinárias e positivas. Na segunda
fase... o partido não existe em abstracto. Existem os seus militantes, existem
os quadros e os órgãos. Mas devo dizer que há que registar outros aspectos
extremamente negativos ocorridos ao longo deste tempo. Vivemos grandes dramas,
vivemos grandes problemas. Tivemos logo no primeiro congresso, tivemos no
segundo congresso. Houve assassinatos como de Mondlane, Samora e outros tantos.
Mas devo dizer que Samora não foi assassinado por moçambicanos como os outros.
Samora foi, sim, assassinado pelo Apartheid. São situações que se verificaram e
fazem parte da vida.
Canal – Quais são os
aspectos negativos que mais lhe marcaram ao longo destes cinquenta anos em que
serviu o partido?
Sérgio Vieira – São vários desde o
primeiro congresso, depois no segundo congresso. Neste momento, assusta a
existência de um certo rudismo, de oportunistas e de certo oportunismo.
Falo da existência da tentativa de
utilizar o partido para se servir a si próprio, ao invés de servir o povo. E no
meio desse jogo até se utiliza o tribalismo, até o regionalismo para se
alcançar certos interesses. Na verdade não é que essa pessoa quando fala do
tribalismo queira defender a tribo, mas, sim, está a defender o “eu” e o “eu é
que quero”.
Canal – Recentemente
o padre Filipe Couto falou também do aspecto do regionalismo e de algumas
manobras na Frelimo para se afastarem alguns membros históricos dos principais
órgãos de decisão.... Qual é a sua opinião?
Sérgio Vieira – A opinião de Couto é
dele e não é minha. Eu não fui objecto de nenhuma artimanha. Entendo que agora devo
dedicar-me um pouco mais ao que nunca fiz ao longo da minha vida. O que devo
dizer agora é de que daqui em diante vou fazer aquilo que nunca pude fazer. Os
meus interesses pessoais que nunca pude cumprir. Falo da minha família, dos
meus filhos, meus netos que nunca tive tempo de acompanhá-los.
Canal – O coronel
Sérgio Viera sempre defendeu que a futura liderança da Frelimo e do país tem que
ser capaz, com visão.... Insiste nesta tese?
Sérgio Vieira – É normal, porque
uma liderança sem visão não existe. Uma direcção sem visão é uma direcção cega.
É preciso que haja um grande conjunto de combinação de talentos, de
capacidades, de vontades e de dedicação. Eu vou dizer assim: não é questão do candidato
ser fulano e beltrano. Isso não me interessa. Eu digo assim: não sei se
levarmos o Mourinho, que se diz ser o melhor treinador do mundo, e trazermos
para treinar o Chingale de Tete, que é equipa da minha terra, seria capaz de levar
a equipa a campeão do mundo. Por isso digo que tem que haver essa combinação de
equipa. Tem que ser uma equipa e não uma pessoa sozinha. Eu vou-te dizer a
tragédia que foi talvez dos maiores generais do século XIX, Napoleão. Ele foi
derrotado por um homem mediano e simples, Helton, que trabalhou com o
Estado-Maior, trabalhou com equipa, enquanto Napoleão não tinha equipa.
Canal – Qual é a sua
opinião sobre os debates, as opiniões dos membros no seio do partido Frelimo?
Sérgio Vieira – Quero crer que tem
havido uma diminuição de espaço de debate. De alguma maneira são muitas coisas.
Um é o aspecto de protocolo, protocolo, protocolo, saudações, saudações, saudações,
mensagens, mensagens. Isso reduz brutalmente o tempo útil para o debate que
devia existir. A segunda coisa que nem sempre é útil, é transferir uma grande parte
da discussão para os grupos de trabalho. Porque aquilo que chega depois nos
relatórios das comissões de trabalho para o plenário vai muito de ruim, de modo
que isto também diminui o impacto daquilo que pode ser a profundidade e a
importância do debate. Esses são aspectos, algo negativo, porque há uma redução
de tempo. Outro aspecto é que o próprio Comité Central, que no passado se
reunia duas vezes por ano em sessões ordinárias, agora está a se reunir uma vez
por ano, em sessão ordinária, o que não é bom. Há que haver uma maior frequência
das reuniões do Comité Central.
Canal – Qual é a sua
opinião sobre as correntes que defendem a existência de dois presidentes, um do
partido Frelimo e outro da República, a sair também do mesmo partido, como tem
sido dito pelo actual secretário-geral?
Sérgio Vieira – Eu penso que
bicefalismo nem sempre é a melhor coisa do mundo. A unidade de direcção elimina
as contradições de direcção. E assim sempre foi. Mas isso é melhor explicado
por quem propõe (Filipe Chimoio Paúnde). Nós tivemos até a bem pouco tempo o
camarada presidente Joaquim
Chissano, que saiu da liderança do
partido, e o camarada Armando Guebuza ficou presidente do partido e já era
presidente da República. Posso crer que muitas vezes essa preocupação conta com
muitas outras preocupações que não têm nada a ver com o camarada Guebuza.
Canal – Se essas
preocupações não têm nada a ver com o presidente Guebuza, como diz então? Com
quem tem a ver?
Sérgio Vieira – Tem a ver com quem
o diz (actual secretário-geral Filipe Paúnde). Portanto, vejo que ele quer
continuar...
Canal de
Moçambique – 29.08.2012