segunda-feira, 17 de junho de 2013

Tenho Medo

 

 Por Carlitos Manuel

Finalmente a greve foi desconvocada, disseram que esta’ suspensa… mas eu tenho medo.
Tenho medo de finalmente regressar ao meu trabalho e encontrar os meus colegas e me perguntarem se consegui o que eu queria.
... Tenho medo de voltar ao trabalho e dizer aos meus chefes que “estou de volta para trabalhar” e eles pensarem que vou sabotar o trabalho deles… em silencio.
Tenho medo que nem todos consigam não guardar rancor e ressentimentos do período da greve.
Tenho medo dos vizinhos a quem já disse varias vezes “vizinho, eu não estou a trabalhar, estou em greve, ve-la se consegues marcar uma consulta na clinica privada”
Tenho medo que as minhas filhas me perguntem, “ Pai vais trabalhar? A greve terminou? Entao vamos ter nossa casa propria, nosso carro para nos levar a escola e passear e finalmente poderemos estudar naquela escola privada!”
Tenho medo de voltar ao serviço ainda sem uniforme, sem bata branca, sem sapatos brancos, sem cinto branco, sem calcas e sem camisa branca.
Tenho medo de dizer aos doentes “este medicamento aqui não existe, vai tentar na farmácia privada” tenho medo porque ele coitado não percebe que não consegui o que queria. Ele não percebe que da minha luta não consegui melhorar as minhas condições de trabalho, nao percebe que nada mudou. Tenho medo que ele pense que estou em greve silenciosa.
Alias, dizer que não mudou nada e’ um exagero, a todos aqueles problemas que sabemos de sobra agora vem se adicionar outros, odio, perseguição, incompreencao… e medo… muito medo. Medo de assumir culpa que não tenho… medo do medo que os meus chefes tem de mim.
Tenho muito medo que o doente pense que lhe estou a sabotar, que estou na tao propalada greve silenciosa ao lhe algaliar com uma sonda nasogastrica mas, sem gel de lidocaína (anestesia).
Tenho medo que me morra um doente com anemia gravíssima, porque o laboratório não tem reagentes para testar sangue para transfusão. Tenho muito medo que pensem que ele morreu porque estou em greve silenciosa.
Tenho medo de dizer ao paciente “volte amanha, hoje não temos material para pensos”, tenho muito medo que ele não entenda que não há condições para esterilizar material para ele, que não estou em greve silenciosa…
Tenho muito medo de voltar a tratar as convulsões com rezas e preces aos deuses, porque não tem nenhum anticonvulsivante…
Tenho medo de voltar a estimar a Tensao Arterial dos pacientes porque não há aparelho para avaliar essa tensão.
Tenho medo de continuar a medir a temperatura corporal com o dorso da minha mao, porque não tem termómetro… tenho muito medo que os pacientes pensem que não lhes medi glicemia porque estou em greve silenciosa.
Tenho medo de regressar ao hospital, saber que o Gabinete Medico ainda não tem balanca, não tem blocos de receita, não tem livros de registo, não tem lanterna ginecológica, não tem lençol na marqueza.
Tenho muito medo de dizer a uma mae que traz uma criança muito doente “tens dinheiro? O teu filho esta’ grave e tem que ir ao hospital de referencia, aqui não temos carro. Se tens dinheiro va’ de chapa – a única coisa que posso fazer neste momento e’ passar –te uma guia” tenho medo que ela não entenda que o sistema não tem carro e não e’ porque estou em greve silenciosa.
Tenho medo da administrar ao paciente o medicamento que há e não o que o doente precisa. Tenho medo que ele não perceba que não tenho outra alternativa. Não estou em greve silenciosa.
Medo de continuar a tratar meningite confirmada com cotrimoxazol suspensão oral. Porque não tem injectaveis por perto… e isso pode ser interpretado como greve silenciosa. Mas não e’ greve silenciosa, e’ falta de medicamento adequado para a situação.
Tenho medo de chegar tarde ao serviço, porque o chapa não veio a tempo, isso pode ser interpretado como uma greve silenciosa.
Tenho medo que os mesmos que ignoraram o meu grito de socorro para melhorar as condições de trabalho, queiram relatórios satisfatorios do desempenho das minhas actividades. E se este relatório não for ao encontro do que querem ouvir.. . tenho medo que pensem que estou em greve silenciosa.
Tenho medo que a tao propalada greve silenciosa seja usada como cavalo de batalha no combate aos indesejados, aqueles que tiveram a coragem de dizer “criem condições para eu servir melhor” deixando de lado todo um monte de doenças de que padece o sistema.
Tenho medo que os que se acobardaram, puxando saco dos chefes, sejam entregues a faca e o queijo para humilhar aqueles que acreditaram que e’ possível trabalhar e viver melhor.
Tenho medo de ficar doente e não poder trabalhar, porque pode ser visto como uma greve silenciosa.
Tenho medo que você que acaba de ler esta mensagem tenha medo de a partilhar porque sera conotado como conivente com a greve silenciosa.
Tenho medo da greve silenciosa…
Fui.

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