Os ativistas condenados em março de 2016 por rebelião e associação criminosa destacam o contributo de Gene Sharp para a democratização dos Estados. Autor do livro "Da Ditadura à Democracia" morreu a 28 de janeiro.
A onda de manifestações em Angola contra a governação do então Presidente da República, José Eduardo dos Santos, começou em março de 2011. Os protestos de rua, sempre reprimidos pela polícia angolana, eram promovidos pelo autodenominado "Movimento Revolucionário”.
Em 2015, os manifestantes tinham encontrado outra forma de luta: estudar, no centro de Luanda, o livro adaptado do autor e ativista norte americano, intitulado "Da Ditadura à Democracia”.
"Na vila Alice discutíamos métodos de reivindicações pacíficas”, lembra José Gomes Hata, em declarações a DW África.
A 20 de junho do mesmo ano, 15 ativistas foram detidos sob acusação de preparação de golpe de Estado. "Quando um Governo prende adolescentes por estarem a ler livros isto mostra que estão nervosos, porque sabem melhor do que ninguém que o seu sistema está enfraquecido”, disse, na altura, Gene Sharp em entrevista à agência de notícias Lusa.
Três anos depois da detenção dos jovens, o ativista nascido nos Estados Unidos da America, em 1928, e que recebeu, em 2012, o chamado "Nobel Alternativo” pelo conjunto das suas obras, morreu no domingo, 28 de janeiro, aos 90 anos.
Reações dos ativistas
As reações à notícia não tardaram a surgir nas redes sociais. Na sua página do Facebook, Mbanza Hanza, um dos ativistas condenados no processo dos 15+2 e absolvido com a Lei da Amnistia escreveu: "Não deu para te conhecer, mas as tuas dicas fizeram gente aqui usar tangas! De tão atrapalhados, eles mesmos acabaram protagonizando o próprio golpe de que nos acusavam, sem praticamente algum esforço nosso”.
"Se algum dia me perguntarem o porquê da luta não violenta, simplesmente direi que a liberdade não se oferece mas conquista-se. Por isso, nós nunca e jamais seremos contra Angola. Boa noite, Gene Sharp", despede-se Fernando António Thomas "Nicolas", outro ativista envolvido no caso.
José Gomes Hata, mais conhecido como "Cheick Hammed Hata", também do mesmo processo, colocou no seu perfil uma fotografia do livro traduzido de Sharp com o aviso: "Perigo: em ditaduras este livro pode levá-lo à prisão. Da Ditadura à Democracia”.
Domingos da Cruz adaptou trabalho de Gene Sharp em "Ferramentas para Destruir o Ditador e Evitar Nova Ditadura: Filosofia Política da Libertação para Angola"
Legado de Gene Sharp
Domingos da Cruz, jornalista e investigador, foi um dos ativistas detidos a 20 de junho, na Vila Alice, centro da cidade de Luanda. Foi ele quem adaptou o livro "Da Ditadura à Democracia” em "Ferramentas Para Derrubar Um Ditador e Evitar Uma Nova Ditadura”. Esta sexta-feira (02.02), em declarações à DW África, o cidadão que recebeu a maior pena no processo dos "revus" - condenados em março de 2016 por rebelião e associação criminosa e libertados três meses depois por decisão do tribunal - afirma que Gene Sharp abriu o debate sobre a filosofia da não-violência como mecanismo de luta.
"O grande legado de Gene Sharp foi e é levar as pessoas a acreditarem piamente na capacidade da não-violência como instrumento de libertação no campo político. Uma crença com resultados práticos e de sucesso", sublinha.
Domingos da Cruz considera ainda que o professor universitário também contribuiu para que houvesse, em Angola, "pela primeira vez, em grande escala, o princípio da não-violência como tema de debate nacional, abalando os pilares da tirania”.
Cheick Hammed Hata, ativista e músico de intervenção social, também não tem dúvidas de que "Gene Sharp deixa para Angola a convicção de que é possível fazer tremer uma ditadura sem ser necessário fazer recurso a violência gratuita e oportunista".
Objeto de estudo
Segundo Domingos da Cruz, as ideias e formas de luta pacífica de Gene Sharp estão a ser estudadas em universidades e em centros de investigação científicos em todo o mundo.
"O seu legado estende-se para o âmbito académico também: transformou o princípio da não-violência e o desafio ao poder com o corpo das vítimas, como área de altos estudos”, explica, acrescentando que "hoje existem centros de pesquisa e universidades que ministram mestrados e doutoramento sobre luta não-violenta”.
Angola não está livre?
O autodenominado "Movimento Revolucionário”, inspirado na primavera Árabe, sempre contestou a longevidade do então Presidente da República no poder.
Em vários protestos usaram t-shirts com dizeres como "32 é Muito”. Em 2016, José Eduardo dos Santos anunciou o abandono da vida política ativa para 2018. Depois de 38 anos no poder, já não foi o candidato do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), nas eleições de 23 de agosto, ganhas pelo seu partido. A 26 de setembro, foi empossado João Lourenço como novo Presidente. As exonerações e discursos de combate à corrupção renovaram a esperança da população angolana. Já se pode exercer direitos e liberdade em Angola? "Angola não está livre”, responde Domingos da Cruz.
O professor universitário socorre-se dos relatórios de organizações internacionais para justificar a sua afirmação: "O índice de democracia publicado recentemente coloca Angola entre países autoritários. Na análise recente da Freedom House sobre liberdade, Angola está entre os países não livres. No mesmo período, a Human Right Watch manifestou o mesmo ponto de vista”.
Domingos da Cruz lembra ainda que "29 ativistas foram presos em cabinda. Em Luanda, duas manifestações foram reprimidas. Supostos delinquentes são assassinados pelo Estado".
"Tudo isso, no consulado do substituto de José Eduardo. Diante disso, a conclusão é simples e fácil”.
LEIA MAIS
- Data 03.02.2018
- Autoria Manuel Luamba (Luanda)
- Assuntos relacionados Revús , Eleições em Angola, Eleições de 2017 em Angola, Domingos da Cruz, David Mendes, José Marcos Mavungo, Raúl Danda, Raul Tati, Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC)
- Palavras-chave 15+2, ativistas, Gene Sharp, democracia, ditadura, Domingos da Cruz, revus, José Eduardo dos Santos, João Lourenço, Angola, Luanda
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