domingo, 4 de fevereiro de 2018

No planeta Lula, ninguém o quer ver atrás das grades. Ou quase ninguém

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Viagem a São Bernardo do Campo, a cidade onde o antigo presidente Lula da Silva mora e onde o mito em seu redor, como presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, se formou. Mas até lá, ainda que a maioria o deseje de volta ao Palácio do Planalto, também há quem prefira vê-lo numa cela
"Sem Lula na corrida, é Jair Bolsonaro quem lidera as sondagens", lê-se num título do Folha de S. Paulo. "Lula é uma afronta ao Estado de direito", sentencia o editorial de O Estado de S. Paulo. Enquanto arruma as pilhas de jornais, José Lima, o dono do quiosque, bate desalentado com as costas da mão nas primeiras páginas e suspira. Após muita insistência, traduz por palavras o tal suspiro, sonoro e prolongado, que lhe entope a alma. "Nesta espécie de país, quem mexe com a elite e a burguesia mais cedo ou mais tarde acaba preso", afirma. "Mas a culpa é dele, ele deu mole: roubou, tornou-se igual aos outros e à primeira oportunidade eles aproveitaram."
O quiosque de Seu Lima fica a cem metros do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, onde o mito em torno de Lula da Silva no país e no mundo se projetou, e a pouco mais de dois quilómetros do edifício onde o antigo presidente mora, agora sozinho, desde que os filhos se casaram e a segunda mulher, Marisa Letícia, morreu, fez ontem um ano. Estamos em São Bernardo do Campo, cidade vizinha de São Paulo, mas a duas horas de distância do centro da megalópole que movimenta 20 milhões de pessoas todos os dias. São Bernardo, o B daquele ABC (o A é Santo André e o C é São Caetano do Sul, outros subúrbios paulistanos) é o reduto de Lula - o Lulistão, o Planeta Lula, a cidadePARA onde o destino levou, há 52 anos, o miserável retirante (alguém que deixou a terra natal para fugir da miséria) nordestino, nascido em Caetés, Pernambuco.
"Esta é a casa dele, eu brinco e digo que, quando ele entra no edifício, ele é o presidente e não eu, foi até aqui que se fez o velório da dona Marisa...", conta, na sala onde Lula assistiu ao julgamento de Porto Alegre que o condenou a 12 anos e um mês de prisão, Wagner Santana, o Wagnão, atual líder do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, função exercida pelo antigo chefe de Estado no final dos anos 70 e início dos 80. "Ele vinha sempre aqui, tomar um café. O Luiz Marinho [ex-prefeito de São Bernardo, ex-ministro de Lula e um dos seus amigos mais próximos e antigos] de vez em quando ainda vem", conta Mônica, caixa da Padaria Assembléia, ainda com o acento no "e" do português brasileiro que o Acordo Ortográfico, entretanto, suprimiu.
Em 1945, semanas antes de Luiz Inácio nascer, o seu pai, Aristides, migrou da aridez do sertão pernambucanoPARAtrabalhar como estivador em Santos, litoral de São Paulo, acompanhado, entre outros, do filho mais velho e de uma prima da sua mulher e mãe de Lula, Dona Lindu. Quando dona Lindu, a quem Lula dedicaria o primeiro discurso na presidência, reuniu os outros sete filhos e viajou por 13 dias e 13 noites num camião improvisadoPARA reencontrar o marido, descobriu que Aristides havia, entretanto, constituído família com a sua prima. Por anos, toda a gente viveu sob o mesmo teto de lata, algures no Guarujá, onde um célebre triplex décadas depois pode ter arruinado a carreira de Lula.
Até dona Lindu se separar do alcoólico Aristides e levar os filhos para São Paulo, Lula vendeu laranjas pela orla de Santos, catou caranguejos no mangue, engraxou sapatos e trabalhou numa tinturaria. Em 1961, formou-se torneiro mecânico e cinco anos depois conseguiu emprego na metalúrgica Villares, na "Detroit brasileira", ou seja, São Bernardo do Campo, sede da Volkswagen, da Ford, da Mercedes Benz, da Toyota.
Foi a morte, em 1969, da sua primeira mulher, Lourdes, por causa de uma hepatite ao oitavo mês de gravidez, que também vitimou o bebé, que levou o jovem metalúrgicoPARA o sindicalismo. "Para ocupar a cabeça", justificou à mãe, que não aprovava a ideia.
Primeiro de bigode, depois com a barba que se tornou sua imagem de marca, mas sempre de voz rouca, descobriu em si o dom da palavra e o gozo de emocionar multidões. "Continuo fascinada por tê-lo visto aqui no sindicato e depois lá no Planalto, é um conto de fadas", conta dona Rosa, dona de uma lanchonete ao lado do sindicato. "Conheço-o há 40 anos, ele sempre foi gente como a gente, voto nele ou em quem ele pedir", acrescenta Helena, que pede esmolas nas imediações.
Maranhão, como é conhecido o segurança de uma ótica ao lado do prédio onde mora Lula, discorda. Em absoluto: "Ele é o chefe da quadrilha, moro aqui desde 1970, fui metalúrgico, sabe o que ele fazia? Ele organizava greves e combinava com os patrões, "você dá um aumento e a gente te deixa demitir uns quantos", é um traíra [traidor] e ladrão, e o pessoal burro ainda grita "Lula, Lula, Lula"." As acusações de Maranhão só perdem vigor porque a cada frase ele tenta segurar o riso: "Olha, conheço-o desde o tempo em que ele andava de boteco em boteco, mudava de boteco e deixava tudo por pagar, ele sempre funcionou assim." Mais: "E o Fidel Castro, outro pinguço [bêbedo], veio aqui a casa dele se embebedar, eu vi." E ainda: "O filho dele, o Lulinha, nunca bateu um prego e ficou milionário, como?"
Parte das acusações de Maranhão, e o riso com que as acompanha, sãoPARA irritar o amigo Chicão, funcionário da vizinha Padaria Nova Miami e mais lulista do que Lula. "Vou gastar o dedo da mão de tanto votar nele, quem corre atrás dele é ladrão muito pior."
Ainda antes de presidir ao sindicato, Lula, que entretanto fora pai de Lurian numa relação fortuita, conheceu Marisa Letícia, mãe de Marcos e viúva de um jovem taxista morto ao volante por um ladrão. Os dois teriam juntos Fábio Luiz, Sandro Luiz e Luiz Cláudio.
Por essa altura, a cidade de São Bernardo assistiu a um lendário comício no Estádio Vila EuclidesPARA cem mil metalúrgicos, que Lula domou sem ajuda de megafones - os da frente iam passando palavra aos outros. Lá, ficou decidida a primeira de um conjunto de greves que ganhou repercussão internacional e precipitou o fim do regime militar. Após 40 dias, Lula cedeu, para desilusão de milhares de metalúrgicos, e negociou com os patrões: nascia o político. Antes, fora preso por 31 dias, entre abril e maio de 1980.
"Moro aqui desde que ele, com tanta greve, acabou com a indústria automóvel de São Bernardo", acusa Ademar, sapateiro. "Quem vota nele é vagabundo do Nordeste, que não quer trabalhar, que prefere viver do Bolsa Família a procurar emprego, eu sou pernambucano, como ele, conheço a realidade de lá." Zé Maria, empregado dos correios que leva uma carta a Ademar, irrita-se. "Antes dele, ganhava 1400 reais [370 euros], hoje ganho 4500 [1200], 90% dos meus colegas nos correios estão com ele mas há 10% de ingratos que só o massacram." A Ademar e Zé Maria, junta-se Mário, comerciante local. "Lula? Não, isso dá tanta briga que eu sou neutro, neutro, neutro."
Perto dali, Daniela, que sem nunca ter ido a Portugal cozinha "bolinho de bacalhau, bacalhoadas e pastéis de Belém" no seu restaurante português, diz que "se o Lula tem de pagar, o que dizer dos outros, como o [presidente Michel] Temer?".
"Eu voto Lula, uai!", acrescenta o malabarista de semáforo Rafael, usando uma interjeição final que denuncia raízes no estado de Minas Gerais. "Eu, meus pais e meus irmãos viemos da periferia de Belo Horizonte, onde éramos miseráveis, depois do governo dele o meu pai arrumou um emprego aqui e a nossa vida ficou decente, eu só faço malabarismosPARA ganhar uma graninha extra." "Pode me dar dois reais, pelo depoimento?"
Golpe por capítulos
Wagnão, na sala da direção que foi de Lula, fala em golpe por capítulos. "O primeiro foi tirar a Dilma, o segundo aprovar, via Temer, a criação de um teto de gastos para a educação e a saúde e fazer reformas, laboral e previdenciária, que atacam os direitos dos trabalhadores, o terceiro é afastar o Lula da próxima eleição, não importa o método." "O poder judicial cumpre o papel e tentará o encarceramento do Lula, ficar inelegível não lhes basta, querem prendê-lo para que ele não possa fazer campanha por ninguém, ele sabe disso, ele tem a prisão dele como certa, o país em que os meus filhos vão viver me dá medo, de vez em quando tenho de ouvir o Grândola, Vila Morena para dar um animada..."
No sindicato toda a gente pensa assim. Dona Zelinha, que gere o refeitório do local, fecha os olhos, como se fosse chorar. "Não digo nada, não quero dizer nada, a minha blusa fala por mim", afirma, vestida com uma camisa encarnada e foto de Lula estampada.
Depois da prisão e das greves que pararam o ABC paulista, Lula fundaria, acompanhado por intelectuais, o Partido dos Trabalhadores (PT) no início dos anos 80. Candidatou-se três vezes à presidência da República, perdendo umaPARA Collor de Mello e duasPARA Fernando Henrique Cardoso. À quarta foi de vez. E à quinta, à sexta e à sétima, as duas últimas já com Dilma Rousseff como sua sucessora, também. O retirante de Caetés chegou ao mais alto cargo da nação, em 2002, de onde sairia em 2010 com 80% de aprovação popular.
Mas atingido, por tabela, pelo escândalo do mensalão, e, em cheio, pelo escândalo do petrolão, foi investigado pela Operação Lava-Jato. "A Lava-Jato atingiu todos mas o Aécio [Neves] continua senador, o [Michel] Temer presidente, o [Eduardo] Cunha só foi preso depois do golpe; quem perdeu, de verdade, foram a Dilma, que caiu, e o Lula, que vai preso, mas a culpa é dele, ele deu mole para essas elites", repete em jeito de conclusão o Seu Lima, ao acabar de empilhar os jornais.
Em São Bernardo do Campo

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