quarta-feira, 17 de setembro de 2014

que amamos pererecas, marinamos

Nós

17/9/2014 17:00
Por José Ribamar Bessa Freire, de Niterói


Colunista Bessa Freire, conta como marinou nas eleições de 2010
Colunista Bessa Freire, conta como marinou nas eleições de 2010




(Coluna Pererecas escrita em 2010) Escrevo de Rio Branco. Vim ministrar a conferência de abertura do seminário “A Historiografia Amazônica em Debate” organizado pelo Grupo de Pesquisa Gaia da Universidade Federal do Acre (UFAC). Aqui tenho uma penca de ex-alunos. Alguns são índios: Isaac Ashaninka, Norberto Kaxinawá, Adaizo Yawanawá. Outros não. É o caso do atual governador do Acre Binho Marques e da senadora Marina Silva. Dei aula para ambos, em 1986, na Pós-graduação de História Social e Econômica da Amazônia.
- Qual dos dois foi melhor aluno? – me pergunta o entrevistador Alan Rick, num programa local da TV Gazeta.
Demoro a responder. Estou desconcentrado. É que não consigo desviar os olhos do topete dele. Os fios de seus cabelos penteados para trás guardam distância simétrica um do outro e estão cimentados por um irremovível laquê, que nenhum tufão consegue despentear. Mistura de Elvis Presley com Silvio Santos. Enquanto penso que essa tribo da televisão é bizarra, a entrevista prossegue.
- Você vota na Marina para presidente da República? – ele quer saber.
Lembrei, então, que um amigo antropólogo de São Paulo me fez a mesma pergunta, só que conjugando um novo verbo: – Você ‘marinou’?. Na realidade, ‘marinei’. Por isso, toma cuidado com o que eu escrevo, leitor (a). Esse que vos fala não é um locutor ‘imparcial’, mas alguém que vestiu a camisa ‘Marina presidente’. Por quê? Ora, por causa das pererecas.
Motel de perereca
Lá, no Rio, em 1965, os biólogos localizaram a Physalaemus soaresi – uma perereca de 2 cm. que não existe em nenhum outro lugar do planeta, só no brejo da reserva da Floresta Nacional, próximo à rodovia Presidente Dutra. Acontece que máquinas gigantescas, tratores, caminhões e escavadeiras invadiram o brejo para construir o Arco Metropolitano, uma obra do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), orçada em 1 bilhão de reais.
O Arco, que vai permitir chegar ao Porto de Itaguaí através de 80 km de asfalto, ameaça extinguir essa espécie rara da família Leptodactylidae, uma família humilde, mas honrada, que está para o mundo dos batráquios, assim como a família Silva está para os brasileiros. Os operários da obra deram-lhe o nome de ‘Norminha’, personagem fogosa da Dira Paes na telenovela “Caminho das Índias”. Norminha Leptodactylidae.
- Se não parar a obra, a família inteirinha desaparece do mapa – alertaram os administradores da floresta. Mas os engenheiros da Secretaria Estadual de Obras retrucaram: – Então, leva a perereca pra outro lugar, porque o PAC não pode parar. O vice-governador do Rio, Luiz Pezão, ironizou com uma provocação boçalóide: “Se é para não atrapalhar o namoro de perereca, então vamos fechar toda a via Dutra”.
Foi quando entrou em campo Carlos Minc, o cupido das pererecas, que discordou. Na qualidade de ministro do Meio Ambiente, propôs a construção de uma espécie de motel, onde elas possam se reproduzir, o que desagradou a gregos e baianos. Uns acham que a proposta do Minc – erguer um muro com placas de metal separando o brejo do canteiro de obras – não é bem um motel, mas um ‘pererecaduto’, nocivo aos batráquios. Outros creem que não vale a pena encarecer o custo da obra por motivo que consideram fútil.
A situação se complicou ainda mais, quando o biólogo Sérgio Potsch, responsável pelo laboratório de répteis e anfíbios da UFRJ e especialista em girinos, informou que o brejo abriga uma espécie rara de peixe – o Notholebias Minimus – que também não existe em nenhum outro lugar do mundo. O certo é que a obra do Arco Metropolitano foi paralisada, enquanto os técnicos discutem o que fazer.
O cu da formiga
Eis o que eu queria dizer: se não houvesse a possível candidatura de Marina da Silva, o discurso dominante seria o de Lula da Silva e ‘Norminha’ já estaria mortinha da silva. Que discurso é esse? Meses atrás, Lula debochou de uma perereca gaúcha, responsabilizando-a pelo atraso em mais de meio ano na construção de um viaduto da BR-101. Fez discurso similar em relação ao bagre, que pode ser prejudicado pela hidrelétrica do Rio Madeira. Agora, o papo mudou.
Bastou a presença da Marina no cenário político nacional para obrigar os demais candidatos e os poderes públicos a incorporarem as questões de sustentabilidade ambiental em seus discursos. Marina está convicta de que as necessidades da atual geração podem ser satisfeitas sem sacrificar as gerações futuras, sem saqueio ou predação. Isso é sustentabilidade.
É muita burrice eliminar uma espécie animal ou vegetal em troca de uma estrada ou de uma hidrelétrica, porque existem técnicas e saberes diversificados para construir obras, mas até hoje não foi inventada uma forma de recriar uma espécie que desapareceu. O grande problema ambiental é esse: a ignorância e a desinformação e não o desmatamento, a queimada, as estradas, que já são frutos da boçalidade.
Tem gente que acha um absurdo que uma “pererequinha de merda”, de dois cm. atrase uma obra de 1 bilhão de reais. Mas o poeta Manoel de Barros tem razão quando diz que “o cu de uma formiga é muito mais importante do que uma usina nuclear”, e que não precisou ler os teólogos e os sábios para chegar a Deus. “As formigas me mostraram Ele”, escreveu o poeta, doutor em formigologia. Para a vida verdadeira, o cu da formiga, a cabeça do bagre e a perereca são tão imprescindíveis quanto uma estrada. Uma usina nuclear, o homem constroi, mas não foi ainda capaz de recriar o cu de uma formiga, se ela for extinta.
Não importa o que Marina pensa sobre o aborto, nem suas convicções religiosas sobre a criação do mundo, desde que ela tenha claro, como têm, de que o estado é laico. O que importa é que, por causa dela, dona Dilma, seu Serra, seu Ciro e qualquer outro candidato vão ser obrigados a discutir seriamente a questão ambiental e a sustentabilidade. Marina sabe que estradas e hidrelétricas são necessárias, mas podem ser construídas sem destruir o planeta. Acena poeticamente para a utopia e mostra que o valor das coisas depende da capacidade que temos de nos encantar por elas.
Marina me representa, hoje, tão visceralmente quanto o Lula em eleições passadas. Simboliza a inteligência, a sensibilidade, o compromisso com os indefesos, os fracos, os pequenos, o planeta, a mama pacha.
Por isso, marinei. Ela terá militantes entusiasmados ao seu lado, porque é capaz de empolgá-los, o que está ficando mais difícil para dona Dilma e impossível para seu Serra. Foi mais ou menos isso que disse ao jornalista Altino Machado, caminhando ontem com ele pelas ruas de Rio Branco. Nós todos, que amamos as pererecas e a vida, marinamos.
José Ribamar Bessa Freire é professor da Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNI-Rio), onde orienta pesquisas de doutorado e mestrado e da Faculdade de Educação da UERJ, onde coordena o Programa de Estudos dos Povos Indigenas.coordena o Programa de Estudos dos Povos Indígenas (UERJ), pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO) e edita o site-blog Taqui Pra Ti. Tem mestrado em Paris e doutorado no Rio de Janeiro. É colunista do novo Direto da Redação.
Direto da Redação é editado pelo jornalista Rui Martins.

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