sexta-feira, 15 de junho de 2018

Maratane, entre o asilo e o oportunismo: mitos ainda por desvendar.

1 - (Um olhar retrospectivo). Por: João Niove Antes, uma área para a produção agropecuária, segundo projecções de alguns fazendeiros de outrora que se haviam instalado na região e que logo depois da independência nacional, requalificou-se para Centro de Apoio à Velhice, em virtude de nele terem sido acolhidos alguns idosos que sofriam de lepra, Maratane, para além das suas excelentes nascentes de água que acabam confluindo em córregos que possibilitam a fertilidade dos solos para a prática agrícola, hoje, é um centro de recepção e acomodação de refugiados e de candidatos ao estatuto de refugiados. Da zona de cimento da chamada capital do Norte ao Centro de Maratane, são cerca de 25 kms de estrada em terra batida, um percurso de não mais de 40 minutos, em viatura de tracção às quatro rodas. Maratane é uma povoação da localidade de Namachilo, Posto Administrativo de Anchilo, Distrito de Nampula e localizase ao sudoeste da Cidade de Nampula. Mercê das decisões emanadas do Governo central relativas ao encerramento dos demais centros de acomodação de refugiados que existiam algures em Massaca II, Distrito de Boane e Bobole, Distrito de Marracuene, ambos da Província do Maputo, e consequente transferência dos seus efectivos populacionais para o Centro de Maratane, na Província de Nampula, que a partir dessa altura, Maratane tornou-se no Centro Nacional de Refugiados, em Moçambique. Dados em nosso poder, fornecidos pelo Instituto Nacional de Apoio aos Refugiados (INAR) em Nampula, indicam que ao longo do ano de 2003, Maratane albergava cerca de 4.500 requerentes de asilo dos quais cerca de 58% eram homens e 42% mulheres com uma média mensal de pedido de asilo, de cerca, de 200 requerentes. O Centro contava, no ano em alusão, com um pouco mais de 14 nacionalidades, sendo de destacar, a Congolesa, a Burundesa e a Ruandesa e, ainda havia um registo de 144 nascimentos, destes um pouco acima 2 de 50% eram do sexo feminino e mais de 60% de nacionalidade congolesa. Analisando estes dados pela vertente da dinâmica demográfica, sobretudo, em relação ao movimento de entradas bem como de nascimentos que se registam neste Centro, o quadro de uma assistência qualificável tende a ensombrar-se, pois os recursos para fazer face a este fenómeno começam a escassear. O Instituto Nacional de Apoio aos Refugiados, sendo uma instituição de direito público subordinada ao Ministério dos Negócios Estrangeiros e Cooperação tem trabalhado de mãos dadas com o Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) no apoio e assistência aos refugiados. Aliás, à luz do Estatuto do ACNUR aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 14 de Dezembro de 1950 prevê que este organismo deve proporcionar protecção internacional aos refugiados, o que é evidente em Maratane. Mas, essa assistência, torna-se insuficiente, a avaliar pelo volume de entradas que tende a aumentar dia-apósdia, obrigando a essas entidades de tutela um cada vez maior redobrar de esforços, quer na provisão de alimentos básicos como em serviços de abastecimento de água potável, saúde, educação e segurança. Quem requer asilo no Centro de Maratane? Moçambique é signatário da Convenção Africana de 10.09.1960 que em seu artigo 1º, aplicável aos países membros da União Africana, sem excluir as hipóteses previstas na Convenção das Nações Unidas de 1951 e do Protocolo de 1967, conceitua refugiado como sendo toda pessoa que, em virtude de uma agressão, ocupação ou dominação estrangeira, e de acontecimentos que perturbem gravemente a ordem pública, em parte ou na totalidade do seu país de nacionalidade, se vê obrigada a abandonar a sua residência habitual para buscar refúgio em outro lugar, fora do seu país de origem ou de nacionalidade. Geralmente, o refugiado abandona tudo, desde a casa, os bens, a família e até o país, em troca de um futuro incerto numa terra desconhecida. Portanto é um 3 abandono derivado de graves violações dos direitos humanos no seu país de nacionalidade ou de origem. Assim, para compreender este cenário passa por retrospectivar a situação geopolítica conflituosa prevalecente na região dos Grandes Lagos, sobretudo, no nordeste da República Democrática do Congo, em que há um recrudescimento de bolsas de conflitos etno-políticos que tendem a alastrar-se para os vizinhos Burundi e Ruanda. Como corolário desta avalanche e, particularmente, em relação aos requerentes de asilo, isto é aqueles que requerem uma segurança, um abrigo (refúgio) no Centro de Maratane há a salientar duas vertentes de entradas de cidadãos de outras nacionalidades que importa sublinhar: 1) cidadãos que fogem dos campos de refugiados dos países fronteiriços e que se encontram a sul da região dos Grandes Lagos, nomeadamente, Tanzania, Zâmbia e Malawi e 2) os que fogem directamente dos seus países de origem devido a persistência desses conflitos internos. Tanto para uns como para outros, depois de se apresentarem no Centro de Maratane são submetidos a uma triagem por pessoal técnico especializado com o objectivo de conhecer a situação e proveniência de cada um. Como qualquer outro processo, este tem enfrentado problemas relacionados com falsas declarações, por parte de alguns requerentes de asilo. Sem pretendermos uma análise individualizada e exaustiva dos dados disponíveis, mas como tentativa de dar substância ao que temos vindo a veicular, temos a título de exemplo os requerentes de asilo de nacionalidade somáli que usam o centro como corredor de passagem para outros quadrantes. Aliás, como que a confirmar o nosso pressuposto, basta referir que entra no Centro de Maratane uma média semanal de 20 somalis, mas que, curiosamente, as estruturas administrativas do centro têm no seu controle um número não superior a 50 candidatos ao estatuto de refugiados. E os outros...?! Esta é a pergunta cuja resposta não cabe neste artigo! 4 Neste contexto, não raras vezes, Maratane, e por que não Moçambique, tem servido como corredor de trânsito para outras regiões tanto do território nacional como, e sobretudo, para o “eldorado” vizinho território Sulafricano. Mesmo que se interceda junto do AltoComissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) para uma triagem mais rigorosa de requerentes a asilo, a infiltração de imigrantes ilegais sob capa de refugiados é inevitável a avaliar pela complexidade do processo bem como da fragilidade ou, melhor, da vulnerabilidade de entidades nele envolvidas. Em Maratane, há problemas de atribuição de cartões de abastecimento de artigos de primeira necessidade. Vezes há em que mesmo após a saida de alguns refugiados ou requerentes de asilo, os seus cartões continuam ainda na posse de algumas pessoas do centro, ou seja, não são inutilizados o que faz com que o número esteja sempre a crescer. Não há baixa na contagem, via cartões emitidos. Segundo o ACNUR, aquando da distribuição de alimentos verificada entre Abril e Maio de 2004, foram confiscados cerca de 90 cartões, dos quais 16 pertenciam a uma mesma pessoa e que se presume que os seus legítimos donos tenham, provavelmente, regressado aos seus países de origem, ou então estejam fora do controlo das autoridades do centro e algures na Cidade de Nampula ou num outro canto da nossa pátria amada ou mesmo fora dela. O controlo de cartões, se é que existe, leva a crer que seja deficiente ou então viciado para a satisfação de outros interesses, pois quando há baixa no centro (isto é saída), o cartão é automaticamente inutilizado, quer dizer, cruzado. Quando isto não acontece leva a supor que há uma indevida e duvidosa utilização desses cartões. Com vista a estancar o desencaminhamento de víveres, provavelmente, via “cartões piratas”, levou-se a cabo um novo registo porta-aporta para (re) confirmação do número real de residentes e respectivo cartão o qual conta com uma foto tipo-passe, para 5 a autenticação da identidade do portador. Uma medida que, quanto a nós, não surtirá os seus resultados visto que alguns deles, sobretudo do sexo feminino, apresentam-se com rostos totalmente cobertos, o que, provavelmente, pode dificultar a certificação do rosto com a foto que aparece no cartão de abastecimento. Porquê Maratane? Pese embora algumas correntes geográficas da actualidade defendam que, numa determinada paisagem se possa desenvolver qualquer tipo de povoamento sem que as características físicas interfiram de forma determinante, para o caso de Maratane, sugere uma realidade, deveras, diferente, a analisar pelas suas excelentes condições físicas, pois os tais fazendeiros colonos que “descobriram” a área parece terem sido excessivamente “apaixonados” por factores, sobretudo, geomorfológicos da região, aliás, a fertilidade dos seus solos associada à disponibilidade de baixas húmidas conferem a região onde se localiza o Centro de Maratane um clima de aptidão para a prática da actividade agro-pecuária assim como para o assentamento populacional. Maratane, que reassentamento? Com tendências de aumento de fluxo médio mensal de 100 para 200 requerentes de asilo, obviamente, que já começam a surgir problemas de falta de espaço para acomodar mais pessoas que estão entrando em Maratane, quase que diariamente. Para além do espaço para acomodação, há uma série de outros serviços sociais que devem ser, minimamente, providos, tais são os casos de cuidados médicos básicos, alimentos, água, entre outros. Este imprevisível fluxo de refugiados torna ineficaz o apoio e assistência dispensados quer pelas estruturas de tutela (INAR e ACNUR) quer por outros parceiros nacionais e internacionais. Embora não seja intenção desta abordagem, há pertinência a sublinhar, o papel e o contributo de algumas organizações não governamentais que operavam na província de Nampula, altura em que se escreveu este artigo, como a “World Relief” com programas de integração do refugiado nas áreas de agricultura, micro-créditos, criação de aves e de animais de pequeno porte, 6 projectos para mulheres que incluem corte e costura; a “Federação Luterana Mundial” que se dedicava ao aconselhamento, resolução de conflitos entre famílias e demais residentes no centro, promoção de actividades culturais, recreativo-desportivas, e outras actividades de artes e ofícios; a “Rede da Criança” outra ONG que apoia nas actividades das crianças sem idade escolar; a “Visão Mundial” que respondia pela supervisão das actividades de construção de habitações para os refugiados em Maratane, entre outras organizações. Este rol de actividades não só implicava a necessidade de expansão da área habitacional como também de melhoramento de serviços prestados, como a afectação de uma viaturaambulância para a unidade sanitária local bem como a respectiva potenciação ou apetrechamento em recursos humanos e materiais, continuação de estudos geológicos com vista a abertura de mais furos de captação de água potável para abastecer o centro, melhoramento das vias de acesso, instalação e/ou montagem de um pequeno sistema de comunicação, etc. Até ao momento que escrevíamos este artigo, a Administração do Centro havia recebido mais de 300 pedidos de talhões para construção de habitações, tendo sido cedidos mais de 200, o que prova a imperiosidade de redefinição de Maratane não como um simples centro de refugiados, mas um espaço com um estatuto e dimensão maior que o actual. Redimensionar Maratane, julgamos nós, ser um imperativo não só para as entidades que tutelam o centro como também e sobreutdo uma resposta significativa face à sua dimensão e, particularmente, uma acção concertada baseada nos pilares de solidariedade humana; e, já redimensionado, Maratane pode vir a tornar-se num pólo de desenvolvimento a partir das actividades agro-pecuárias e de geração de renda. As barbearias vs dormitórios Actualmente, a periferia da Cidade de Nampula está “invadida” por “barbearias-dormitórios” que, ao longo do dia solar, têm a função de cortar e tratar cabelos mas à noite viram autênticas camaratas albergando refugiados que, provavelmente, fogem de Maratane. 7 Os bons ofícios de hospitalidade de que se apadrinha à população de Nampula chegam mesmo a pôr em causa algumas normas de vida urbana. Os citadinos nampulenses ao cederem, por arrendamento, os espaços contíguos às suas residências para este tipo de actividade, mostra, por um lado, a solidariedade por estes irmãos africanos, mas um dia, provavelmente, poderão ser surpreendidos quando se depararem com um outro tipo de actividade nocturna ilegal nestas “barbearias-dormitórios” que inundam um pouco por toda a periferia da cidade de Nampula. As condições de salubridade nestas barbearias deixam muito a desejar, pois regra geral, não dispõem de janelas e as paredes são de, aproximadamente, 2 metros e cobertas de chapas de zinco, na sua maioria! Quer se queira, quer não, em Maratane já está a despontar um novo reassentamento pois, as famílias estão a alargar-se e isto sugere a expansão dos espaços tanto residencial como produtivo. A partir deste novo cenário que se vive no centro ja começa a notar-se uma forte miscigenação cultural, pese embora as nacionalidades nele predominantes sejam de um mesmo contexto geopolítico e cultural. Portanto, Maratane de hoje sugere uma visão mais circunstanciada, ousada e, sobretudo, mais próxima da realidade que se vive no centro e não só. Uma vez em comunidade, como é óbvio, e em jeito de paráfrase a Roberto da Matta na sua célebre obra “Relativizando - uma introdução à Antropolologia Social”, os refugiados vão experimentando certos impulsos “anti-sociais individualistas”, como a fome, a agressividade e o sexo, impulsos estes que estimulam o Homem, pela força da negativa experiência, a inventar as normas regulamentares da vida no centro. Como é sabido, é por se conceber fraco e solitário que o homem se agrupa e forma a comunidade onde surgem tais estímulos e problemas de que o homem deve assumir o seu histórico papel de revolucionador. 8 Portanto, um desses estímulos a enaltecer é o apetite sexual que provoca, consequentemente, a invenção da família, do incesto, do casamento e do parentesco; o outro é a fome que conduz à descoberta do trabalho e do valor dos alimentos, enfim um mundo de factos não devidamente previstos, na altura de definição do local como de simples recepção e acomodação de pessoas com estatuto de refugiados. À medida que o tempo passa, vai observando-se entre os refugiados e populações nativas uma miscigenação cultural, com destaque para os elementos culturais endógenos e, nesta relação, um dos primeiros elementos socio-culturais a ser assimilado, em nosso entender, é a língua portuguesa, como factor que condiciona a sua inserção social no novo habitat, e, associa-se a língua de Camões o Emakwa, pois o centro encontra-se instalado fora da área urbana, daí a língua local assumir o seu papel de integrador e de socialização. A malária constitui uma das principais causas de morte em Maratane e segundo dados em nosso poder, ao longo do ano de 2003 foram registados 16 mortes causadas por esta enfermidade, de acordo com fontes sanitárias locais. Quanto à educação, Maratane possui dois tipos de subsistemas, um tido como formal e baseado nos moldes do Sistema Nacional de Educação (SNE) e o informal que obedece os moldes de ensino dos Grandes Lagos cujas aulas são ministradas em Francês. Maratane na aposta por um novo semblante. Em Maratane, funciona um “Ateliê” de corte e costura, onde senhoras refugiadas não só confeccionam roupas para venda como também ensinam à jovem geração a arte de costurar roupas. Por outro lado, foram montados painéis solares cuja energia garante o funcionamento do equipamento informático recentemente instalado. Para permitir um maior controlo de entradas e saídas, o Núcleo Provincial de Apoio aos Refugiados de Nampula, concebeu um documento denominado “Autorização de Saída” o qual passou a ser requerido por aqueles que desejarem ausentar-se do centro para cidade que 9 deverá ser exibido sempre que solicitado pelas autoridades. O tempo máximo de ausência do centro a ser autorizado pela respectiva administração e com o visto do Delegado Provincial do INAR, é de 48 horas a contar da data de emissão da guía e serão considerados motivos de deslocação os assuntos relacionados com o emprego, educação, saúde e comércio. Aos transportadores de semi-colectivos de passageiros, vulgo “chapa-100” que desejarem entrar no centro ser-lhes-ao exigido uma credencial emitida pelo Núcleo Provincial dos Refugiados de Nampula. Está em curso o projecto de irrigação a partir da barragem recentemente reabilitada pela Embaixada dos Estados Unidos da América. Portanto, com estas condições e outras aqui não arroladas credenciam Maratane um lugar onde o refugiado se encontra em segurança porque para além de oferecer abrigo dá-lhes a possibilidade de se transformarem de simples refugiados dependentes de ajudas em empreendedores.

Sem comentários: