Erdoğan é eleito Presidente e a Aliança do Povo, que o apoiou, está em maioria. Sozinhos, podem escolher o orçamento, legislar e nomear todos os juízes. "Estamos a entrar em terra incógnita", dizem.
No início de uma nova era onde o Presidente da Turquia assume o poder executivo e passa a ter nas mãos grande parte do poder judiciário, Recep Tayyip Erdoğan assumiu a vitória nas eleições gerais que podem colocá-lo mais perto do que nunca numa eternização no poder.
Numa altura em que a agência de notícias estatal Anadolu já dava a vitória de Erdoğan como certa, o homem-forte do AKP falou brevemente aos jornalistas. “A Turquia está livre de todas as forças de terroristas e golpistas”, disse, com a menção da tentativa de golpe de Estado de 2016 a ecoar nas memórias de quem o ouvia. Nessa declaração, fez questão de sublinhar que estas eleições têm como objetivo a implementação de um novo sistema político na Turquia, resultante do referendo constitucional de 2017. “A nossa nação não escolheu só um Presidente e só 600 deputados. Estas eleições puseram em funcionamento uma nova legislação e uma nova Constituição. Trabalhámos para isto durante muito tempo”, disse Erdoğan.
E, agora, será preciso também muito tempo para que esse sistema seja alterado. Embora não tenha conseguido uma maioria absoluta nas eleições para o parlamento, o AKP conta com o apoio dos nacionalistas do MHP, com o qual formaram a coligação pré-eleitoral Aliança do Povo.
Nova Constituição mete a Turquia nas mãos de Erdoğan
Com a nova Constituição, estes dois partidos terão controlo total não só do processo executivo, tal como dos processos legislativos e judiciário. Garantido o apoio parlamentar do AKP e do MHP a Erdoğan, as leis e orçamentos propostos pelo Presidente serão de fácil aprovação. Nesta nova era, o parlamento poderá tornar-se num mero semáforo com a luz verde ininterruptamente ligada para as políticas do Presidente.
Erdoğan reforça assim a reputação de nunca ter perdido nenhumas eleições — está no poder desde 2002, tendo passado a ser Presidente em 2014 — e fica na posição de ter nas mãos os poderes suficientes para manter a Turquia na espiral repressiva que vários organizações e países da comunidade internacional, a par das ONGs, têm denunciado. Uma das ferramentas mais criticadas, inclusive pelas Nações Unidas, é a extensão já por sete vezes do estado de emergência, em vigor desde a tentativa de golpe de Estado de 2016. Desde então, ao abrigo do estado de emergência, já foram presas mais de 160 mil pessoas, mais de 152 mil funcionários públicos foram despedidos e o regime de Erdoğan já mandou encerrar 166 órgãos de comunicação social e 1719 ONG.
No plano judiciário, os juízes passarão a ser escolhidos em sintonia entre a maioria parlamentar e o Presidente. Com a nova Constituição, o Presidente tem o poder de escolher 12 juízes do Tribunal Constitucional e o parlamento nomeia os restantes três. Além disso, o Alto Conselho de Juízes e Procuradores, a autoridade que regula o funcionamento da justiça na Turquia, terá seis dos seus membros escolhidos pelo Presidente e os outros sete pela maioria pró-Erdoğan.
“Vamos fortalecer o nosso sistema judicial para o tornar mais independente e forte. Para podermos fortalecer a nossa independência e democracia e para continuar a defender os direitos básicos do povo”, disse Erdoğan este domingo no seu discurso de vitória.
Uma coligação sólida, apesar de tudo
No discurso que fez na noite eleitoral, o líder do MHP, Devlet Bahçeli, salientou o novo papel do seu partido nos anos que se seguem. “A nação turca fez do movimento nacionalista o partido-chave no parlamento e deu-lhe a responsabilidade de o equilibrar, o que é uma responsabilidade importante”, disse.
Apesar de terem pontos de partida praticamente opostos — o AKP é um partido tendencialmente islamita e o MHP é secularista — as duas forças têm pontos em comum suficientes para garantir a Erdoğan uma legislatura de cinco anos, acreditam os especialistas contactados pelo Observador.
“Esta aliança pode não durar a longo prazo, mas a médio prazo tem todos os elementos para funcionar, com a exceção de haver alguma catástrofe pelo caminho”, diz Ilhan Tanir, analista turco sediado em Washington D.C., referindo que o líder do MHP, Devlet Bahçeli, tem demonstrado que é um “homem pragmático” e que provavelmente continuará a sê-lo, mais que não seja por uma questão de sobrevivência. “Bahçeli e Erdoğan precisam um do outro e sabem muito bem que as coisas são assim. Erdoğan precisa de Bahçeli para governar e Bahçeli tem demonstrado vontade de trabalhar ao lado dele”, diz, referindo que o líder do MHP pode mesmo vir a integrar o governo, com o cargo de vice-Presidente.
Também a partir da capital norte-americana, Kemal Kirişci, diretor do Turkey Project do think tank Brookings, prevê que o tema do secularismo não será um problema entre os dois partidos, até porque acredita que o MHP, que se preza de seguir o legado secularista de Atatürk, está “enfraquecido” nessa vertente. “Por influência do AKP, o nacionalismo turco já vive com nuances do islão sunita. Até o MHP perdeu isto, portanto acredito que nem por aí haverá tensão entre estes dois partidos”, diz ao Observador.
União não chegou para a oposição vingar
Na oposição, os esforços para uma coligação que uniu o histórico CHP, liderado por Muharrem Ince, com outros três partidos não chegou para suplantar a Aliança do Povo. “Em ocasião alguma pode o principal partido de oposição perder votos numas eleições que decorrem numa situação como a que a Turquia vive neste momento, de crescente autoritarismo e de uma economia em queda. Mas foi precisamente que isso aconteceu e o CHP é o maior perdedor da noite”, diz Ilhan Tanir.
Muharrem Ince, deputado do CHP que para surpresa de muitos foi escolhido para liderar aquele partido secularista de centro-esquerda nas eleições, começou por não reconhecer os resultados avançados pela agência estatal Anadolu, que davam a vitória a Erdoğan. Porém, mais à frente na noite eleitoral, acabou por admitir derrota: “O homem ganhou.”
Ainda no lado da oposição, os curdos de centro-esquerda do HDP conseguiram chegar ao parlamento ao ultrapassarem, com 11,57%, a fasquia mínima de 10% para ter entrada no parlamento. Ao conseguir quebrar esta barreira pela segunda vez — a primeira foi em junho de 2015 — o HDP conseguiu que o AKP perdesse a maioria absoluta no parlamento.
Ainda assim, com o resultado dos nacionalistas MHP a superar as expectativas formadas pelas sondagens, o regresso do HDP ao parlamento torna-se apenas num fait-divers para este partido cujo líder, Selahattin Demirtaş, está preso desde janeiro de 2017.
“Com os resultados destas eleições, Erdoğan vai muito provavelmente continuar a governar da mesma maneira que tem governado até aqui”, vaticina Ilhan Tanir.
Kemal Kirişci concorda — e refere alguns receios para o futuro. “Com o sistema que vai entrar em vigor agora, não sei como é que será possível assegurar os padrões mínimos da democracia e do estado de direito. Eu tenho 64 anos, sou um filho da Guerra Fria e por isso fui criado numa cultura em que o nível ia sempre melhorando, em que nada se perdia”, diz. “Mas agora estamos a pôr isso tudo em causa.”
Por isso, conclui: “Estamos a entrar em terra incógnita.”