Livros, revistas e outras compras. As histórias dos cartões de crédito dos Governos
Ministério Público acusou dois governantes por usarem cartões de crédito do Estado para proveito próprio. Três governos investigados, muitas dúvidas e o retrato de como ministros usam estes cartões.
Um dos volumes era o “Convite à Ética”, do filósofo Fernando Savater. Mas havia muita literatura no meio de dezenas de livros jurídicos. Clássicos, como “Anna Karenina”. Ou clássicos ainda mais clássicos, como a “Ilíada”, de Homero. O bom gosto literário de José Conde Rodrigues foi proporcional aos gastos. Em apenas três anos, enquanto foi secretário de Estado da Justiça no primeiro Governo de José Sócrates, montou uma verdadeira biblioteca com mais de 700 livros e revistas pagos pelo erário público através de compras feitas com o cartão de crédito do ministério, entre 2007 e 2009. Não estava sozinho. Nem é o único acusado de peculato pelo Ministério Público. José Magalhães, que esteve no mesmo ministério no Governo seguinte, é acusado do mesmo crime, embora por valores muito inferiores.
Ministros, secretários de Estado, chefes de gabinete, três executivos diferentes. Vários cartões de crédito e muito poucas regras: apenas recomendações genéricas para um uso excecional. Esta semana o Ministério Público deu a conhecer a acusação contra aqueles dois secretários de Estado da Justiça de governos de José Sócrates que, em conjunto, terão gasto quase 15 mil euros sem justificação ou, pelo menos, sem que o Estado fosse o último beneficiário desses gastos.
Existem estes dois acusados por suspeitas de gastos indevidos em revistas e livros, mas as suspeitas do Ministério Público eram mais generalizadas. O despacho de acusação que o Observador consultou mostra que as dúvidas nem sequer se esgotaram nestes dois ex-governantes, numa investigação que percorreu sete anos de governos (dois do PS e meio do PSD/CDS). Noutros casos, houve dúvidas e a necessidade de clarificação, embora não tenha havido provas suficientes para avançar com os casos para julgamento. A ex-ministra da SaúdeAna Jorge esteve nesta situação, por ter feito compras com o cartão de crédito em lojas de roupa, ourivesarias ou no El Corte Inglés, mas o Ministério Público entendeu não acusar depois de a ouvir durante o inquérito. A ex-ministra disse ao Observador que comprava com o cartão presentes para as visitas que fazia em funções.
Foi ainda extraída uma certidão para ser realizada uma investigação autónoma a João Gonçalves, pelo uso de cartão de crédito como chefe de gabinete do então secretário de Estado da Saúde, Óscar Gaspar (no segundo Governo de Sócrates). Este jurista tinha sido chefe de gabinete de Filipe Batista, quando este foi secretário de Estado adjunto de José Sócrates e hoje é adjunto da ministra da Presidência do Conselho de Ministros, Maria Manuel Leitão Marques.
Também há o outro lado desta investigação o dos ministros mais espartanos, como o homem das Finanças de Sócrates, Teixeira do Santos, ou Augusto Santos Silva – neste caso, o cuidado com os gastos em nome do Estado levou o então ministro da Defesa a devolver ao Ministério o valor de um livro que comprou para si no Brasil, usando o cartão do Estado.
A revista Caras e os clássicos da literatura que o ministério comprou mas não tem
A comparação com o que era a prática nos gabinetes de outros governos foi essencial, porque permitiu que saltassem à vista as diferenças na utilização que José Conde Rodrigues fazia do cartão de crédito que lhe tinha sido atribuído quando assumiu as funções de secretário de Estado Adjunto e da Justiça. Se, num olhar global dos vários gabinetes dos executivos investigados, as despesas com estes cartões eram pontuais, no caso de Conde Rodrigues era bem diferente.
Esteve quatro anos e sete meses naquelas funções (2005-2009) e, de acordo com os extratos a que o Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) teve acesso, no período em que exerceu funções, gastou um total de 58.356 euros através do uso do cartão de crédito, para pagar refeições, combustível, livros e revistas. Ao longo desse tempo, Conde Rodrigues teve cinco cartões atribuídos, os três primeiros com um plafond de 4 mil euros e os dois últimos com 7 mil, cada um.
O que fez o Ministério Público concentrar-se neste caso foi o número anormal de livros comprados, mas também a frequência de refeições pagas com os cartões que estavam atribuídos a Conde Rodrigues. A acusação vinca mesmo a diferença face ao que acontecia noutros ministérios.
Muitas destas aquisições acabaram mesmo por ser consideradas ilícitas pelo Ministério Público, nomeadamente a compra de revistas (da especialidade mas não só) e livros (técnicos, mas outros muito além disso). A acusação contabilizou a compra de 729 publicações, num valor total de 13.657 mil euros, que não se enquadravam no âmbito das funções do secretário de Estado e, mesmos as que estavam aí enquadradas, não reverteram a favor do Estado quando José Conde Rodrigues terminou o mandato nessa pasta, em outubro de 2009. Entre essas publicações estão inúmeros livros relacionados com a sua área de governação, mas que não estão no Ministério da Justiça, como deviam estar.
No caso da compra de livros técnicos, por exemplo, o Ministério Público entende que até podiam ser justificados como tendo por fim questões relativas ao serviço, mas também diz que se isso assim foi deviam estar no ministério e não estão. E também nota que a compra de publicações periódicas da especialidade (a revista do próprio Ministério Público, por exemplo) era desnecessária, uma vez que essas revistas estavam disponíveis para o governante consultar no Centro de Documentação do Ministério. A acusação não encontrou, por tudo isto, nada que justificasse a compra de artigos desse género e acabou por concluir que as aquisições foram feitas para proveito de Conde Rodrigues.
O mesmo acontece com outras publicações que o secretário de Estado comprou com o cartão do ministério em museus no estrangeiro e que, de acordo com os registos, se trata de obras sobre arte ou de clássicos de literatura. No descritivo das mais de 700 publicações está, por exemplo, um livro intitulado “Andy Warhol”, o maior representante da Pop Art, ou outro livro sobre Dali, ou outro ainda sobre a artista plástica Louise Bourg.
Também há registo de centenas de livros relacionados com Justiça, mas entre uma extensa lista onde também é possível encontrar muitas obras mais ou menos clássicas, como “As travessuras da menina má” de Vargas Llosa, a “A Ronda da Noite” de Agustina Bessa-Luís, a“Ilíada”, a biografia de Lenine, o “Livro do Desassossego” de Fernando Pessoa,”As Farpas” de Eça de Queiroz, “Anna Karenina”de Leo Tolstoy, “O Homem Lento” de J.M. Coetzee. Ou ainda o livro do Papa Bento XVI, “Jesus de Nazaré”, uma publicação com o Top 10 de Creta, quatro livros sobre Kant no mesmo dia de janeiro de 2008, “Os Anos Sócrates — O grande jogo da política portuguesa”, que reúne as crónicas de Fernando Sobral publicadas no Jornal de Negócios e uma publicação sobre “Escutas Telefónicas”, comprada com desconto.
Houve um só dia, 1 de outubro de 2007, em que gastou 244 euros com a compra de 13 livros, com o cartão do ministério. São sobretudo livros de Ciência Política, comprados em libras. Há vários livro de Filosofia, um“Dicionário de Hegel”, o “Convite à Ética”, vários sobre economia e também sobre Direito. Licenciado nesta área pela faculdade de Direito da Universidade de Lisboa em 1987, Conde Rodrigues chegou a comprar, por duas vezes, livros com o título “Introdução ao Direito”(um a 8 de outubro de 2008 e outro a 16 de outubro de 2010).
No interrogatório feito por um magistrado, Conde Rodrigues justificou a compra daqueles livros com o enriquecimento pessoal ou com necessidades de preparar discursos como secretário de Estado, mas os argumentos não foram suficientes para evitar a acusação. O Observador contactou o ex-secretário de Estado, mas Conde Rodrigues mostrou-se indisponível para falar do caso, argumentando que o que tem a dizer já disse às autoridades.
Além dos livros, o cartão de crédito era também usado para comprar jornais e revistas de atualidade, o que o Ministério Público considera que possam ser aceites como despesas de função, mesmo que sejam adquiridas durante os fins de semana ou em tempo de férias. Mas houve uma compra específica que mereceu o reparo na acusação a Conde Rodrigues e foi considerada ilícita. Num sábado de outubro de 2007, Conde Rodrigues comprou com o cartão de crédito do Governo arevista “Caras”. Na capa da revista dessa semana estavam “Matilde e José Mourinho em clima romântico”, mas também a visita a Portugal dos então príncipes de Espanha, Felipe e Letizia, e a “cumplicidade” com Cavaco Silva (era o Presidente da República nessa data) e a sua mulher. A acusação entendeu que o carácter social da revista não a enquadra como uma publicação que fizesse falta ao secretário de Estado para cumprir a sua função e entendeu injustificada a sua compra com recurso a dinheiro público.
No final, o Ministério Público condenou o ex-secretário de Estado da Justiça a pagar ao Estado uma quantia de 13.657 mil euros, acusando-o de peculato. Quando foi contactado pelo Observador, José Conde Rodrigues não quis sequer dizer se vai pedir abertura de instrução (tem 20 dias para o fazer, a contar da notificação do MP).
O despacho de acusação consultado mostra que também houve dúvidas e alertas sobre o uso de cartão de crédito para pagar refeições, ainda que o Ministério Público tenha considerado que não tinha sido possível tirar a limpo se se trataram de despesas em serviço. E aqui, a suspeita de mau uso do cartão de crédito recaiu também sobre o chefe de gabinete de Conde Rodrigues, Pedro Duarte Silva. O Ministério Público sublinha que nenhum dos plafonds mensais foi ultrapassado, mas constata que o uso deste cartão para pagar esse tipo de gastos era quase diário. No caso do antigo secretário de Estado, o Ministério Público nota que se for considerada individualmente cada fatura há várias refeições pagas para duas pessoas e que há mesmo dias em que foram pagos almoço e jantar no mesmo dia e semanas com 5 refeições pagas, incluindo convidados, e em estações de serviço.
Tanto Conde Rodrigues, como Pedro Duarte Silva, justificaram este recurso frequente aos cartões do Estado para pagar refeições com a intensidade do ritmo de trabalho no gabinete. No interrogatório, o antigo secretário de Estado argumentou ainda com o âmbito do cargo que ocupava já que, como Adjunto, tinha de substituir o ministro muitas vezes. Também falou nas reformas legislativas importantes que existiram na área da Justiça e o volume e intensidade de trabalho que isso fazia acumular. O Ministério Público não conseguiu dissipar as dúvidas que tinha, sobre se foram ou não despesas de serviço, por isso, neste capítulo, não houve acusação.
Yoga, jantares à porta de casa e uma noite na pousada da vila
O caso do outro secretário de Estado constituído arguido é diferente. Os valores considerados são menores. José Magalhães, ex-secretário de Estado da Justiça e da Modernização Judiciária teve direito a um cartão de crédito com um plafond mensal de 4 mil euros, como secretário de Estado da Justiça do ministro Alberto Martins. Entre novembro de 2009 e junho de 2011, período em que exerceu essas funções, Magalhães gastou pouco mais de 15 mil euros em refeições, estadias, material informático, livros e revistas. Na acusação, o Ministério Público considera que Magalhães usou esse cartão em benefício próprio. Estão em causa cerca de 400 euros usados para comprar livros e revistas que não ficaram no ministério.
Na lista de produtos comprados com o cartão de crédito do Estado constam livros técnicos e romances, como “A Era do Imprevisto” (16 euros), “Corrupção e os Portugueses” (16,51 euros) ou o packAdolfo Bioy Casares (20 euros). Embora pudessem ser considerados material útil para as funções desempenhadas pelo ex-secretário de Estado, terão sido levados por José Magalhães quando saiu do Governo. É essa a sustentação do Ministério Público para avançar com a acusação de peculato contra o ex-governante, uma vez que a investigação admite que algumas das aquisições até poderiam enquadrar-se nas funções desempenhadas – teriam, no entanto, de permanecer no ministério e reverter a favor do Estado.
Depois, há casos como o da revista Yoga Magazine que, em fevereiro de 2010, custou 6,5 euros. É outro dos 25 exemplos de produtos comprados pelo ex-secretário de Estado e de que os serviços do Ministério da Justiça não encontraram vestígio depois de o Governo de José Sócrates ter perdido as eleições, em junho de 2011. O Ministério Público defende que, a partir do momento em que teve acesso ao seu próprio cartão, José Magalhães comprou revistas e livros que não tinham uma relação direta com as funções que exercia na secretaria de Estado da Justiça.
Durante a investigação, José Magalhães recusou prestar quaisquer esclarecimentos relativamente aos seus gastos em locais como Lisboa, Vila Nova de Gaia, Madrid, Bruxelas, Salvador da Baía ou Brejos de Azeitão. Mas, além das revistas e livros, o Ministério Público manifestou dúvidas sobre gastos em refeições e estadias que também não contaram com o esclarecimento do ex-secretário de Estado. Alguns dos almoços e jantares aconteceram ao fim de semana e, também em certos casos, apenas uma pessoa esteve sentada à mesa.
Depois, há outro dado que saltou à vista a investigação: a localização dos restaurantes onde o secretário de Estado almoçava e jantava. Setúbal, Palmela e Quinta do Anjo surgem nos registos e cruzavam-se, notou o Ministério Público, com a zona de residência de Magalhães em 2009 e 2010 — Palmela. E há ainda um gasto com uma noite na pousada daquela vila, no valor de 142,2 euros, em julho de 2010. Valores que levaram o Ministério Público a questionar-se sobre a adequação e necessidade daqueles gastos.
É, no entanto, o próprio Ministério Público quem, ouvidos o ex-chefe de gabinete e a ex-assessora de José Magalhães, concede que ritmo de trabalho daquele gabinete pudesse justificar gastos à primeira vista menos óbvios — e justificáveis — para a investigação.
É essa razão que leva a que o Ministério Público se tenha limitado a deduzir acusação pelos pouco mais de 400 euros de gastossem justificação aparente. Relativamente aos outros casos detetados na análise de gastos com cartão de crédito feitos pelo ex-governante, o Ministério Público não avançou com uma acusação por falta de elementos claros que demonstrassem estar em causa gastos em proveito próprio do ex-secretário de Estado da Justiça e da Modernização Judiciária. José Magalhães já fez saber ao jornal Público que não pedirá abertura de instrução, pretendendo avançar diretamente para julgamento.
O Ministério da Justiça colaborou na investigação e diz que a responsabilidade é dos governantes que praticaram os atos
A denúncia que desencadeou a investigação do Departamento de Investigação e Ação Penal veio da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, mas as dúvidas levantadas diziam respeito ao segundo Governo de José Sócrates. A investigação foi além do período sobre o qual incidia a denúncia, e acabou por encontrar irregularidades nesse Executivo, no gabinete do secretários de Estado da Justiça, José Conde Rodrigues, mas também no Governo seguinte, no mesmo gabinete, mas o secretário de Estado já era José Magalhães. Curiosamente, estes dois nomes trocaram praticamente de posto entre os dois Governos: Conde passou para a Administração Interna e José Magalhães para a Justiça.
Confrontado pelo Observador com esta coincidência de irregularidades no mesmo gabinete ministerial o Ministério da Justiça diz que “desconhece o factos que estão na base desta coincidência”. Sobre a responsabilidade do ministério na fiscalização de uso dos cartões naquele período, uma fonte oficial explica que “os cartões de crédito que existiam na altura eram distintos dos atuais”. Neste momento, no Ministério da Justiça, “apenas existem cartões base do IGCP e para execução do fundo de maneio, nos termos das regras de movimentação das contas de fundo de maneio do IGCP”.
No que se refere aos casos investigados, o Ministério da Justiça “não se pode pronunciar”, na medida em que “só a investigação poderá revelar as circunstâncias exatas em que os factos ocorreram”, diz fonte do gabinete da ministra ao Observador. “No plano geral, é ao membro do Governo que cabe, em primeira linha, a responsabilidadepelo exato cumprimentos das normas legais e regulamentares no âmbito da contratação pública e pela utilização dos meios de pagamento que lhe estão afetos”.
A análise do Ministério Público começou em 2007 e estendeu-se até 2013, apanhando parte do primeiro Governo de José Sócrates, a totalidade do segundo e ainda a primeira metade do Executivo liderado por Pedro Passos Coelho, que tomou posse em 2011. Houve uma novidade neste último período: os membros do Governo não tiveramdireito a cartão de crédito, por decisão do Executivo. O argumento, adiantado pelo então ministro Adjunto e dos Assuntos Parlamentares Miguel Relvas, era que “assim, fica tudo mais claro” nas contas dos vários gabinetes. “Quando os governantes fazem uma despesa em nome do ministério, pagam do seu bolso e a despesa é depois ressarcida”, defendia o então ministro. Era uma resposta aos tempos de crise económica e financeira, mas sobretudo a uma polémica sobre suplementos salariais dos gabinetes de ministros e secretários de Estado.
Depois de uma auditoria, em 2007, a esses gabinetes, o Tribunal de Contas apontou como fragilidade a inexistência de regulamentação do uso dos cartões de crédito do Estado. Na altura em que Relvas fez aquelas declarações, o Supremo Tribunal Administrativo tinha condenado 11 ministérios a entregarem a informação que estava a ser pedida precisamente pela autora da denúncia que levou à investigação do DIAP, a ASJP. Mas depois pouco ou nada foi feito para criar um quadro legal que introduzisse regras para o uso dos cartões.
Como tem funcionado o uso dos cartões?
Os membros do Governo têm um vencimento mensal e ainda um abono, no valor de 35% da remuneração, para despesas de representação. Além disso, nos dois governos do PS analisados, foram atribuídos cartões de crédito, de contas da Caixa Geral de Depósitos, para serem utilizados em despesas de representação dos serviços (necessidades não previstas). Mas essas despesas estavam inseridas no Fundo de Maneio de cada gabinete. E estes, sim, têm regulamentação e são definidos anualmente nos orçamentos do Estado.
As despesas são autorizadas por quem fica responsável pelos fundos (a competência final é sempre dos ministros) e têm de verificar requisitos concretos, como “o da conformidade legal, da regularidade financeira e da economia, eficiência e eficácia”, segundo o decreto que regulamenta os fundo de maneio. Ora, o Ministério Público reconhece que a lei também permite despesas com livros técnicos ou de alguma forma relacionados com as funções desempenhadas, mas no despacho de acusação consultado pelo Observador sublinha que os fundos de maneio se destinam a despesas de pequeno montante.
Em 2002, era Durão Barroso como primeiro-ministro, o Governo aprovou uma deliberação, que nunca chegou a ser publicada, para “disciplinar” a atribuição de cartões de crédito. Assim, as regras são definidas de acordo com as do Fundo de Maneio. Na auditoria de 2007, o Tribunal de Contas identificou deficiências nos critérios de atribuição destes suplementos e argumentava mesmo com a necessidade de “eliminar situações de desigualdade e de eventual aumento de despesa”. Mas nada foi alterado entretanto.
Só existe uma base legal mínima para o “cartão do Tesouro Português” desde 2013 (portanto, já depois do período analisado). Essa legislação define que este cartão “deve ser o meio de pagamento utilizado sempre que tal utilização resulte na aquisição de bens ou serviços em condições mais favoráveis” e pode ser usado pelos titulares, ou por funcionários devidamente autorizados.
Neste momento, e de acordo com informação disponibilizada pelo Ministério da Justiça, “existem cartões base do IGCP e para execução do Fundo de Maneio, nos termos das regras de movimentação das contas de fundo de maneio do IGCP – Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública”. O mesmo Ministério acrescenta que “todos os documentos de despesa do Fundo de Maneio são escrupulosamente verificados pelos respetivos chefes de gabinete, sendo remetidos para a secretaria-geral do ministério para efeitos de pagamento”.
As compras de Ana Jorge no El Corte Inglés e o livro devolvido por Santos Silva
A partir dos períodos governativos que o Ministério Público passou em revista — 2007 a 2013 — é possível perceber a forma como os governantes usaram o cartão de crédito a que tiveram acesso enquanto estiveram em funções. E também as dúvidas que, ao longo destes anos, foram sendo levantadas. A prática mais comum mostra que os ministros, secretários de Estados e chefes de gabinete usavam este cartão para pagar refeições em Portugal e no estrangeiro e também algumas despesas relativas a deslocações.
Quando António Costa passou pela Administração Interna, por exemplo, fez um uso limitado do cartão de crédito que tinha atribuído. Dos registos a que o Ministério Público teve acesso, constam algumas refeições, entre fevereiro e maio de 2007, e foi precisamente neste último mês — em que saiu do Governo para se candidatar à Câmara de Lisboa — que Costa mais gastou: sete refeições num valor total de 961,20 euros pagas com o cartão do ministério. O seu sucessor na pasta, Rui Pereira, teve o seu gasto mais elevado entre novembro e dezembro de 2007, mais de 2500 euros — mas incluíram despesas fora do país, em deslocações a Bruxelas e Washington.
No gabinete do primeiro-ministro José Sócrates, os cartões para despesas de serviço estavam entregues ao secretário de Estado Adjunto ou aos chefes de gabinete. Quando se soube que o Ministério Público estava a investigar os gabinetes dos governos de Sócrates, o próprio veio garantir: “Acontece que, enquanto fui primeiro-ministro, nunca tive nenhum cartão de crédito do Governo. Nunca tive”. Na auditoria feita em 2007 pelo Tribunal de Contas pode ler-se que o tribunal foi “informado de que o gabinete do PM ‘não atribui aos seus membros os benefícios suplementares de uso de viatura, cartão de crédito e pagamento de despesas com telefone móvel e fixo. O uso de cartão de crédito, para pagamento de despesas exclusivamente oficiais, é restrito ao chefe de gabinete e ao assessor administrativo, no quadro das competências delegadas para autorização de despesas, nos termos regulamentares aprovados pelo Ministério das Finanças’”. O uso dos cartões do Estado naquele período de tempo não fugiu muito à norma do que se passava noutros gabinetes.
O assessor administrativo do primeiro-ministro, Fernando Soto Almeida, era um dos titulares de um cartão para despesas naquele gabinete, Tinha um limite de crédito de 4 mil euros e o valor máximo gasto foi em julho de 2007: 2.086 euros. Não era o único cartão de que era titular, já que também usava outro partilhado com o chefe de gabinete do primeiro Governo de Sócrates, Pedro Lourtie. No extrato conjunto dos meses de outubro e novembro de 2007, foram registadas duas refeições que chegaram a 2.294 euros. No despacho de acusação não há dados sobre, por exemplo, o número de pessoas de cada uma das refeições, remete para apensos a que o Observador não teve acesso. Já o secretário de Estado Adjunto do primeiro-ministro Filipe Batista teve dois cartões atribuídos que usou para pagar sobretudo refeições em Portugal. Entre janeiro e setembro de 2007, o montante máximo que gastou foram 1.440 euros.
Do Governo de Passos Coelho, apenas o primeiro-ministro e o ministro dos Negócios Estrangeiros podiam usar cartões de crédito, ainda que “para utilização exclusiva no estrangeiro”, de acordo com uma decisão do Conselho de Ministros de julho de 2011. Paulo Portas usou-o unicamente para pagar despesas com refeições e também algumas deslocações de táxi no estrangeiro, diz o Ministério Público, que identificou como valor mais alto gasto com o cartão do ministro o de1.946 euros, no mês de outubro de 2011, com refeições em Caracas, Nova Iorque e Bruxelas. Sucedeu-lhe na pasta, em 2013, Rui Machete,que teve apenas uma despesa registada com o cartão de crédito do ministério: uma refeição no valor de 188 euros.
No primeiro Governo de José Sócrates, no Ministério de Saúde, Correia de Campos teve, no tempo em que foi ministro naquele Governo (2005-2008), 9 mil euros como limite mensal de crédito e o valor mais alto que gastou com o cartão do Estado foi de pouco mais de mil euros, em julho de 2007, em deslocações ao estrangeiro. Já a sua sucessora, Ana Jorge (assumiu o cargo em janeiro de 2008 e, nesse Governo, foi até 2009), tinha um crédito mensal de 5 mil euros, mas neste caso, o Ministério Público teve dúvidas. E isto porque as despesas encontradas saíam da norma dos outros gabinetes e chegaram mesmo a ser consideradas injustificadas. A ex-ministra foi ouvida no inquérito e explica ao Observador que justificou as despesas que suscitaram dúvidas com a necessidade de, por vezes, ter de comprar ofertas para as entidades com quem se encontrava, em algumas visitas feitas no desempenho das suas funções. E também admite ter demonstrado “ingenuidade”.
Em causa estão gastos menos comuns — quando comparados com os outros extratos analisados pelo MP — como a “prenda/embaixada” que Ana Jorge anotou no verso da fatura da loja de roupa Stefanel, em Praga. “Acho que era um lenço”, recorda, garantindo que muitas vezes, em visitas do ministério, havia “troca de ofertas”. “Foi alguma ingenuidade da minha parte… como era para ser comprado pelo ministério e era urgente resolver, usava o cartão”. Porque fala em ingenuidade? “Porque nunca imaginei que pudesse haver interpretação diferente. Se fosse hoje, não queria ter cartão atribuído, para não estar sujeita a estes processos de intenção”, responde. É também nesta medida que justifica a compra de um artigo numa ourivesaria, no valor de 450 euros, também referente a uma “oferta”. Ana Jorge diz que não se recorda de que presente foi esse. A ex-ministra foi ouvida pelo Ministério Público e, na altura, diz que teve a indicação de que, em princípio, não havia qualquer problema.
Ainda assim, o texto da acusação realça as falhas na organização das despesas do seu ministério que, na maioria das vezes, ou não tinha descritivo ou a fatura não era percetível. Algumas das faturas eram da própria ministra, como é o caso de cinco aquisições no El Corte Inglés, com valores que vão dos 19 euros aos 570 euros, mas cujos artigos nunca são descriminados. No caso de Ana Jorge, o MP registou ainda um lapso: um pagamento que foi feito com o cartão do Estado, de 490 euros, mas que o valor foi devolvido por cheque, pela própria ministra, ao ministério.
Ainda na Saúde, o então secretário de Estado Manuel Pizarro (entre 2008 e 2011), também tem má nota do MP em termos de rigor na utilização do cartão de crédito do Estado. Enquanto esteve no Governo, com os cartões que tinha do Ministério, pagou 24 refeições no Galeto. Outras duas, no restaurante Pescaria e no Diamantino, referiam-se a almoços fora de horas ou jantares. Em todos estes casos havia apenas um comensal, nota o MP que, neste caso, também fez saber que notou falhas no enquadramento da despesa, que devia estar sempre claramente justificada.
Nas Finanças , no primeiro mandato de Teixeira dos Santos como ministro, a despesa mais elevada que realizou com o cartão do ministério foi para pagar cerca de cinco mil euros em despesas de refeição e de alojamento suas e de dois membros do seu gabinete, numa deslocação em serviço a Washington. De resto, o ministro registou apenas pagamentos pontuais de despesas com refeições, em que o gasto mais elevado, em 2009, por exemplo, foi na ordem dos 240 euros.
Mas no ministério de Teixeira dos Santos houve dúvidas fortes sobre o homem que foi chefe de gabinete do ministro entre 2005 e 2008 e, depois disto, seu secretário de Estado da Administração Pública (até 2011). Gonçalo Castilho dos Santos chegou a ser um caso autonomizado pelo Ministério Público por ter comprado 41 publicações com o cartão do Estado que lhe estava atribuído, gastando 1.421 euros. São todos livros técnicos, como o Código Penal ou o Código de Processo Penal, um livro sobre o “Uso e porte de arma”, ou códigos tributários. Mas os livros não ficaram no ministério.
Castilho dos Santos foi constituído arguido e, no interrogatório, explicou que tinha comprado aqueles livros para preparar legislação. O sobre o porte de arma, por exemplo, justificou com a necessidade de estudar se os motoristas de serviços podiam andar armados quando a questão foi levantada. Em sua defesa, chegou mesmo a apresentar outras faturas de compras suas, na mesma livraria e no mesmo dia em que tinha comprado livros para o ministério, mas para as quais usou o seu cartão pessoal. A secretaria-geral do ministério acabou por enviar o registo da existência no gabinete de 12 dos livros comprados. O arguido garantia ter deixado todos no gabinete e testemunhas do ministério argumentaram que esse controlo não é, muitas vezes, feito. Muitos dos livros são deixados em estantes sem um registo formal. Assim, o Ministério Público acabou por entender não haver motivo para acusar Gonçalo Castilho dos Santos por usar indevidamente o que era público.
Na Defesa, no período investigado, o MP teve o registo de cartões do tempo em que o ministro era Augusto Santos Silva. O governante tinha um plafond mensal de 10 mil euros no cartão, usado apenas para pagar refeições e nunca mais do que cinco por mês. O valor mais alto registado foi o de uma refeição na ordem dos 300 euros. E em fevereiro de 2011, numa livraria no Brasil, Santos Silva comprou um livro, mas pagou essa despesa, mais tarde, ao ministério.
Na Justiça (aquele que acabou por ser o ministério onde houve ex-governantes acusados), os ministros que por lá passaram no período em análise tiveram usos dos cartões de crédito muito semelhantes aos dos seus colegas de outros ministérios. Alberto Costa, entre 2007 e 2009, teve um cartão com plafond mensal de 4 mil euros usado para refeições e deslocações, tendo sido o valor máximo registado o de 1.913 euros, incluindo despesas numa deslocação a Bruxelas. Quase o mesmo que o seu sucessor, Alberto Martins, cujo montante mais elevado pago com o cartão do Ministério foi de 1.700 euros, nos quais se incluem despesas com uma deslocação à Suíça.
Nem só no Governo de Passos houve ministérios sem cartões atribuídos, também nos dois executivos socialistas investigados houve casos destes. Nos ministérios da Economia, da Solidariedade e Segurança Social e no da Educação e Ciência, no período em análise, não há registos de cartões atribuídos. Na Cultura, o caso é outro: como não remeteram ao Ministério Público todos os elementos, o caso vai ser apreciado num inquérito autónomo.
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