A actriz sente-se culpada por ter permitido com o seu silêncio que o produtor pudesse fazer outras vítimas. Numa entrevista ao New York Times, critica ainda Quentin Tarantino por tê-la feito correr risco de vida em Kill Bill e revela ter sido violada aos 16 anos por um actor substancialmente mais velho.
Se antes do escândalo sexual Harvey Weinstein tinha como sinónimo cinematográfico imediato Quentin Tarantino, o rosto ainda mais visível dessa colaboração entre o produtor/distribuidor e um dos seus autores era o da actriz Uma Thurman. “Ela foi violada. Ela foi sexualmente agredida”, escreve agora a jornalista e crítica Maureen Dowd na edição deste sábado do New York Times, dando voz, pela primeira vez, a toda a história da actriz com o ex-patrão da Miramax e da Weinstein Company, mas também a um anterior episódio de violação, ocorrido quando tinha apenas 16 anos. Além disso, a jornalista conta também que Uma Thurman foi vítima de um acidente nas filmagens de Kill Bill, em que arriscou a vida – um incidente até agora desconhecido.
Em conversa com o jornal que publicou a primeira de muitas histórias sobre Harvey Weinstein (dando origem a um momento #MeToo e a um movimento Time’s Up), Thurman mostra-se perturbada com o papel que, dado o seu silêncio sobre o ataque de que foi alvo, terá tido na manutenção da imagem de Weinstein como um contribuinte activoPARA a causa do “empoderamento feminino”, com filmes como o influente Pulp Fiction. A actriz, que interpretou a fogosa Mia Wallace nessa obra, revela agora ter sido atacada por Weinstein num hotel em Londres, há mais de 15 anos.
“Eu sou uma das razões pelas quais uma jovem rapariga entraria sozinha no quarto dele, da mesma forma que eu o fiz", lamenta, explicando que “o sentimento complicado" que tem acerca do produtor se cruza com os remorsos em relação a "todas as mulheres que foram atacadas depois” dela.
Não tendo sido uma das alegadas vítimas que falaram sobre o produtor no contexto das investigações que vieram a público nos últimos meses, começou por manter o silêncio e depois fez declarações intempestivas – “Não mereces uma bala” – para “ganhar tempo”. Agora conta a história que terá ocorrido depois de Pulp Fiction (1994), o triunfo que lançou definitivamente Tarantino e que enriqueceu Weinstein.
“Conhecia-o bastante bem antes de ele me atacar.” Considerava-o o seu defensor, o seu ás, o representante daquilo que queria para a sua carreira. Primeiro, num hotel em Paris, uma reunião em que discutiam um guião transformou-se quando o já infame roupão de banho foi despido. “Não me senti ameaçada. Pensei que ele estava a ser superidiossincrático, como aquele tio excêntrico e doido.” Perante o seu ar intrigado, Weinstein terá recuado.
Noutro hotel em Londres, tempos depois, iria mais longe: "Ele prendeu-me. Tentou deitar-se sobre mim. Tentou mostrar-se nu. Fez todo o tipo de coisas desagradáveis”, conta, ressalvando que o produtor não chegaria a forçar o acto sexual. No dia seguinte, levou uma amiga consigo ao hotel para confrontar Weinstein, mas, encandeada pelos assistentes de que este se fazia rodear – personagens recorrentes nos relatos das suas alegadas vítimas –, acabou por encontrar-se com ele a sós. Avisou-o então que se fizesse o mesmo a outras pessoas perderia “a carreira, a reputação e a família”.
Um representante de Weinstein admite que a conversa possa ter existido. Thurman garante que terminou com ela “em desalinho” e uma ameaça de destruição da sua carreira. Weinstein defende-se dizendo ter percebido mal os sinais entre os dois e que, depois de se atirar a ela, “pediu desculpas imediatamente”.
A actriz que interpretou Beatrix Kiddo nos dois Kill Bill estabelece ainda um retrato que algumas investigações jornalísticas, nomeadamente do New York Times e da New Yorker, já têm delineado: o poder e a influência no meio de um homem possante sobre as carreiras das jovens que assediava, aliado à complacência, ou mesmo cumplicidade, da poderosa agência de talentos que representava actores como Thurman, a Creative Artists Agency, perante o seu comportamento predatório.
Thurman descreve que a sua relação profissional com Weinstein se tornou fria e distante após o incidente em Londres, mas queixa-se também de que afectou a outra relação profissional da sua carreira – com Quentin Tarantino, que se apercebeu da tensão entre ambos em 2001, antes de começarem a trabalhar no díptico Kill Bill. Tarantino já sabia do sucedido e a certa altura “confrontou Harvey”, diz Thurman. Weinstein ter-lhe-á pedido desculpas depois disso, mas a relação com Tarantino ficaria marcada por um incidente de segurança nas filmagens. O realizador, acusa, forçou-a a filmar uma cena com um carro (o descapotável com o qual quer matar a personagem de Bill) que não estaria em condições; uma cena que, alega, deveria ter sido feita por um duplo, mais protegido. Tarantino tinha-lhe garantido que tudo estava bem com o carro e com a estrada, mas tal não era verdade. O carro acabaria por despistar-se e embater numa palmeira, deixando-a quase encarcerada.
“O volante estava na minha barriga e as minhas pernas presas debaixo de mim”, conta, dizendo ter sentido que poderia ter ficado paralisada. Sofreu traumatismos e danos irreversíveis no pescoço e nos joelhos. “Quentin e eu tivemos uma enorme discussão, e acusei-o de me tentar matar”, algo que zangou o realizador, que mais tarde se mostraria visivelmente arrependido e pediria desculpas ao então marido de Thurman, o actor Ethan Hawke. O incidente, diz a actriz, revela até que ponto a “desumanização" no meio cinematográfico ia até ao ponto de pôr vidas em perigo; a decisão de o revelar tantos anos depois decorre do contexto de acerto de contas em curso em torno da violência contra as mulheres.
Numa conversa na sua casa, em Manhattan, e com os três filhos por perto, Thurman contou ainda ao diário nova-iorquino uma outra história de abuso. Aos 16 anos, um actor 20 anos mais velho coagiu-a a manter relações sexuais. “Tentei dizer não, chorei, fiz tudo o que podia”, mas não o suficiente, lamenta. Usa a palavra “complacente” várias vezes, culpando-se por não ter oferecido mais resistência.
“Harvey atacou-me [sexualmente] mas isso não me matou. O que me afectou mesmo quanto ao acidente”, diz sobre o despiste nas filmagens, "foi sentir que tinha sido agredida de tal forma que ficara vulnerável". “Quando somos meninas, somos condicionadas a acreditar que a crueldade e o amor têm de alguma maneira uma ligação e essa é a era [a partir] da qual temos de evoluir.
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