sábado, 3 de fevereiro de 2018

Polónia vs. Memória. Ou a História como arma do nacionalismo


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A expressão “campos de concentração polacos” é quase sempre utilizada como referência geográfica mas o partido Lei e Justiça, atualmente no poder na Polónia considera que essa referência é prejudicial à imagem do país já que dá a entender que os polacos tiveram envolvidos no massacre nazi de milhões de judeus. Para reverter esta situação, a Polónia passou uma lei que criminaliza o uso esta expressão e e a comunidade internacional uniu-se na sua condenação

O historiador norte-americano Timothy Snyder chama-lhes Terras Sangrentas. São os países onde a Segunda Guerra Mundial e as suas repercussões ainda inflamam os discursos políticos, onde as memórias ainda dividem os povos, onde a História ainda não é de cimento: está aberta à interpretação e, por isso, ao revisionismo. Polónia, Ucrânia, ou os Estados bálticos são alguns destes países. No dia 1 de fevereiro, o Senado da Polónia aprovou uma lei que prevê um máximo de três anos de prisão ou multas para quem utilize a expressão “campos da morte polacos” e para quem afirme qualquer cumplicidade dos polacos no massacre de milhões de judeus encetado pelo regime nazi durante a Segunda Guerra Mundial. A lei foi aprovada por 57 senadores, com os votos contra de 23 e tem agora que ser aprovada pelo Presidente da Polónia, Andrzej Duda, que é um forte defensor de um projeto que, na sua opinião, visa devolver aos polacos “o direito a defender a verdade histórica”.
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Ora a verdade que Duda procura defender é completamente oposta à que os israelitas conhecem e a fricção diplomática tornou-se, nas últimas horas, um caso sério. Vários membros do partido do partido de Benjamin Netanyahu, o Likud, já pediram que o embaixador polaco seja chamado a responder por esta decisão.
“A lógica do governo é a seguinte, e até certo ponto, é defensável: foram os nazis que invadiram a Polónia, a responsabilidade pelo Holocausto é dos alemães. Há pessoas que sabem a História e que por isso não veem a expressão ‘campos de concentração polacos’ como uma ofensa mas quem não conhece a História e ouve essa expressão pode achar que fomos aliados dos nazis, o que é muito danoso para a imagem da Polónia”, explica ao Expresso Remi Adekoya, polaco-nigeriano investigador na área de nacionalismo e extremismo na Europa na Universidade de Sheffield.
Além disso, estas preocupações com a “limpeza” das culpas polacas entram em outra linha de pensamento que tem vindo a dominar a vida política no país: a de que a Alemanha, agora através do peso da sua economia e do seu domínio nas instituições europeias continua, de alguma forma, a querer dominar os seus vizinhos. Do outro lado estão os sobreviventes do Holocausto e as suas famílias, que temem um branqueamento da História.
“Isto é mais uma lei nacionalista feita para o ‘mercado interno’, para a ‘direita dura’ que apoia o nacionalismo do Lei e Justiça’ porque um académico no Reino Unido ou no Brasil que escreva esta expressão não pode ser sancionado. Foi feita para demonstrar aos polacos que o governo se preocupa com o bom nome do país”, explica Adekoya que garante que ninguém no governo polaco estava à espera de uma reação tão forte nem de Israel nem dos Estados Unidos, aliados essenciais da Polónia, dois países com presidentes ideologicamente bem próximos do Lei e Justiça.
A história antissemita da Polónia é conhecida mas também é conhecida a bondade de muitos polacos que arriscaram as suas vidas durante o Holocausto para proteger os judeus. Há 7000 polacos distinguidos pelo Centro Yad Vashem para a Memória do Holocausto por este ato rebelde que foi o de proteger judeus nesse tempo.
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Em Israel a visão dominante entre académicos, porém, é que muitos polacos optaram por fingir que não viam o que estava a acontecer enquanto outros foram ativamente “pró-Holocausto”, ajudando os nazis denunciado os seus conterrâneos. É só abrir os jornais israelitas dos últimos três dias para entender o choque provocado por esta lei: as entrevistas com sobreviventes que dizem ter sido denunciados e mal-tratados por polacos estão em todo o lado. Jan Grabowski, historiador polaco que estudou a perseguição polaca aos judeus afirmou, em declarações à agência de notícias Associated Press, que mais de 200 mil judeus foram mortos, direta ou indiretamente, pelas ações de cidadãos polacos.
Para Grabowski, o maior risco desta lei é o seu potencial para “desencadear uma série de processos judiciais contra académicos ou grupos de cidadãos” e, assim, “fortalecer os ideais nacionalistas” de alguns membros do governo e das autoridades polacas. No Facebook, pediu que a comunidade internacional exerça toda a pressão possível sobre o governo da Polónia” para reverter aquilo que apelida de “zelo nacionalista”.
“Eu falei com alguns deputados do Lei e Justiça e com alguns estrategas afetos ao partido e eles estão com medo do que fizeram. A Polónia não tem medo da Europa, não tem medo de ofender os muçulmanos porque a Europa é um clube de cavalheiros que dificilmente tomará posições extremadas e os muçulmanos são alvos fáceis. Agora Israel e Estados Unidos são pesos pesados e ninguém os quer como inimigos diplomáticos, isto pode vir a ser francamente prejudicial para o país e o partido sabe-o”, acrescenta o académico.
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Também membros do governo israelita utilizaram as redes sociais para expressar a sua desilusão quanto à aprovação da lei: “Queridos polacos que me seguem aqui - o problema NÃO é os campos de concentração. Claro que não foram feitos pelos polacos. Esses campos eram alemães. O problema é criminalizar a legítima e essencial liberdade de expressão quanto ao envolvimento dos polacos no assassinato de judeus. Simples”, escreveu no Twitter Emmanuel Nahshon, porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Israel. Os Estados Unidos, históricos aliados de Israel, também reagiram. O Departamento do Estado, através da sua porta-voz Heather Nauert, disse que o país “entende que frases como ‘campos da morte polacos’ são pouco precisas, dolorosas e enganadoras” mas frisou que esta legislação pode “reduzir a liberdade de expressão e a pesquisa académica” deixando ainda um aviso sobre as potenciais consequências desta lei nas relações internacionais da Polónia, “incluindo com os Estados Unidos e Israel”.
O líder do partido centrista israelita Yesh Atid, Yair Lapid, enviou uma carta ao embaixador da União Europeia em Israel pedindo a condenação inequívoca da lei. “Não esquecemos e não perdoamos. De nenhuma nação se deve esperar que perdoe ou esqueça o assassinato de milhões dos seus filhos e filhas, incluindo o assassinato de 1,5 milhões de crianças. Não vamos aceitar o reescrever da História, não vamos aceitar a fuga à responsabilidade e o senhor também não o deveria fazer”, escreveu numa carta que divulgou à imprensa.
Como escreveu Timothy Snyder, os argumentos extremados são ainda “impossíveis de evitar” já que a Segunda Guerra Mundial e o terror que libertou “ajudou a forjar as identidades dessas tais Terras Sangrentas muito mais do que qualquer outro evento histórico”. Essas identidades, disse Snyder à Bloomberg, “não viajam bem entre fronteiras” mas, com este tipo de leis, “há cada vez menos hipóteses de que novas identidades possam nascer no lugar das antigas, como acontece na Alemanha de hoje”. Na opinião do historiador é “inútil pedir aos polacos, ucranianos, povos bálticos ou aos russos que parem de lutar uma guerra que terminou à 70 anos porque a história é facilmente transformada em arma de fogo e é difícil colocá-la dentro de um prisma de análise e introspeção”. 

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