Nasceu no sul da Tunísia. Aos 15 anos, foi apanhado a roubar e o pai expulsou-o de casa. Antes da maioridade, já tinha acumulado denúncias por abuso de álcool e drogas. O percurso de Anis Amri.
Reportagem em Berlim
Um grupo de oito homens corpulentos aglomera-se diante da associação islâmica Hassanein, em Perleberg Strasse, no bairro berlinense de Moabi, às 21h00 de quinta-feira. A entrada é interdita: “Morreu-nos um familiar”, explica, num inglês irrepreensível, um rapaz com pouco mais de 20 anos mas já de barba longa e rija. “Ninguém vai falar consigo”.Na madrugada anterior, a polícia tinha entrado de rompante naquela e noutra associação islâmica vizinha, o Fussilet 33 e.v., três prédios ao lado, para efectuar buscas no âmbito da perseguição ao tunisino Anis Amri, a monte desde que escapou do camião com que acabara de atropelar mortalmente 12 pessoas e de ferir mais de 40 num mercado de Natal de Berlim, na noite de segunda-feira. Segundo a polícia, da operação não resultou qualquer detenção.
No mesmo prédio da mesquita, a menos de um metro, está um bar. É especializado em coktails e videojogos: duas coisas classificadas como pecaminosas pelo Islão radical. “Talvez seja por isso que nunca vi nenhum deles entrar aqui”, diz Carlos, o dono do estabelecimento, que prepara um gin tónico atrás do balcão. É autóctone de Berlim e não sabe ao certo as origens do seu nome latino: a mãe diz-lhe que entrou em trabalho de parto quando estava a ver uma exposição sobre Karl Marx, o pai diz que foi em homenagem a Chacal, o terrorista.
Ali, paredes meias com o bar de Carlos, onde adolescentes jogam matraquilhos, Playstation e às setas, e diante da super-esquadra da polícia de Westhafen, era colectado financiamento para a jihad na Síria.
Não foi o primeiro a ser detido. As actividades da Hassanein e do Fussilet 33 e.v. estão há muito debaixo dos radares dos serviços secretos. Ali, paredes meias com o bar de Carlos, onde adolescentes jogam matraquilhos, Playstation e às setas, e diante da super-esquadra da polícia de Westhafen, era colectado financiamento para a jihad na Síria e, ao que agora tudo indica, planeavam-se atentados terroristas em solo europeu.
Em Outubro de 2015, as autoridades prenderam o cérebro da Fussilet 33, o russo originário do Daguestão Gadghimurad K,, de 30 anos, que operava debaixo do pseudónimo Murad Atajev, com as acusações de, através da internet, recrutar jovens muçulmanos para o Estado Islâmico, compra e posse de armas e material de guerra destinado a grupos islamitas no Iraque e na Síria e angariação de dinheiro para o financiamento da “guerra santa”. Já o anterior presidente da célula, Ismet D., de 41 anos, e o seu braço direito Emin F., de 40, tinham ido parar atrás das grades em Janeiro de 2015, sob suspeita de angariarem guerreiros para o grupo fundamentalista Junud al-Sham e de patrocinarem um ataque com camião-bomba na Síria.
Atendendo ao facto de ambas as associações continuarem funcionais em Perleberg Strasse, supor-se-ia que as suas actividades criminosas tivessem cessado com a captura dos seus líderes. Horas depois, às 2h00 da manhã, a estação televisiva RBB colocava isso em causa, divulgando que uma câmara de videovigilância tinha captado Anis Amri diante do edifício da Fussilet 33, virado para a sede da polícia, oito horas após o ataque ao mercado de Natal.
De acordo com a RBB, a mesma câmara também terá captado o terrorista no local nos dias 14 e 15 de Dezembro, quatro dias antes da matança. A confirmarem-se, as provas indiciam que as mesquitas de Moabi podem ter sido usadas não só na preparação do crime, mas também como abrigo de Amri antes da sua fuga para Itália. “O quê? Aqui? Têm a certeza? É estranho pensar que estávamos todos aqui dentro a beber cerveja enquanto um terrorista acabado de matar 12 pessoas passava à porta”, diz Carlos, respondendo ao meu telefonema no meio da madrugada.
Anis nasceu num contexto de extrema pobreza na pequena aldeia de Weslatia, região de Kerwan, no sul da Tunísia. O pai, inválido, deixou de poder trabalhar, sendo abandonado pela mãe.
Talvez nem ele soubesse, àquela hora, que, do outro lado dos Alpes, em Milão, a fuga de Amri, que teve aquela rua como presumível ponto de partida, tinha chegado ao fim. Uma história que começou há 24 anos, numa aldeia do sul da Tunísia.
Um terrorista predestinado
Anis nasceu num contexto de extrema pobreza na pequena aldeia de Weslatia, região de Kerwan, no sul da Tunísia. O pai, inválido, deixou de poder trabalhar, sendo abandonado pela mãe. Os oito filhos do casal – cinco raparigas e três rapazes – cresceram no limite da subsistência. Anis foi desde sempre um tipo revoltado. Aos 15 anos, foi apanhado a roubar e o pai expulsou-o de casa. Antes da maioridade, tinha já uma mão cheia de denúncias relacionadas com abuso de álcool e drogas e pequenos delitos.As sementes do seu posterior radicalismo vêm da infância – o sul da Tunísia, com um território pouco maior do que o Alentejo, é hoje o principal abastecedor de mão-de-obra para o Estado Islâmico, com a grande maioria dos 3.000 tunisinos no grupo terrorista provenientes dessa zona. “Longe da capital, Tunes, as pessoas são pobres, ingénuas e, consequentemente, com pouca formação. As infra-estruturas são quase inexistentes”, diz Yahya Chaker, engenheiro informático e activista social tunisino, de 25 anos.
Anis Amri cruzou-se nas celas com membros tunisinos do grupo islamita Ansar al-Sharia e, num curto espaço de tempo, as autoridades penintenciárias já o identificavam como o líder da juventude islamita na prisão.
Mas isso Anis já não viu. A sua nova terra era Lampedusa e dali, por ser clandestino, não o deixavam sair. Vai daí, com a ajuda de outro refugiado, deu azo à sua raiva incendiando a Casa Fraternidade, um centro de asilo, colocando em risco a vida de dezenas de jovens que, como ele, atravessaram o Mediterrâneo com o sonho de uma melhor vida na Europa.
A soma deste crime com o de ofensa às autoridades e comportamento violento, conduziram-no a um encarceramento de quatro anos nas prisões sicilianas de Catania, Enna e Palermo. Segundo avança o jornal italiano La Repubblica, cruzou-se nas celas com membros tunisinos do grupo islamita Ansar al-Sharia e, num curto espaço de tempo, as autoridades penintenciárias já o identificavam como o líder da juventude islamita na prisão. Festejava ataques terroristas, era radical e violento, ao ponto de numa briga com um presidiário cristão o ter ameaçado: “Vou cortar-te a cabeça”, documentam os seus registos em Itália.
Por esta altura, já todas as agências de segurança italianas – a Direcção de Administração Penitenciária, a Unidade de Contra-Terrorismo e os serviços secretos – estavam a par do perigo que Amri representava. Por isso, antes da sua libertação, o seu ficheiro foi comunicado ao SIS (Serviço de Inteligência Schegen) e emitida uma ordem de deportação, que não foi concretizada porque no período de tempo (seis meses, no caso de Anis) destinado à detenção provisória pré-deportação, a Tunísia não o reconheceu como seu cidadão. Então, o magrebino seguiu o seu caminho como clandestino, partindo em Julho de 2015 para a Alemanha, já na posse dos nomes e moradas dos fundamentalistas que podiam prosseguir a sua formação como terrorista.
Anis vai, assim, parar às redes islamitas comandadas por Abou Walla, “o imã sem rosto” que tinha contactos com o Estado Islâmico e com Boban S., líder salafista de Dortmund, também recrutador de guerreiros-mártir. Em Berlim, começa a frequentar o vespeiro de Westhafen. Devido ao seu currículo criminal no SIS, as autoridades alemãs tomam conhecimento da sua presença no país e começam a monitorizá-lo. Segundo o Der Spiegel, os radares da espionagem germânica apanham-no em tentativas de compra de armas e até numa conversa telefónica, realizada em linguagem codificada, a oferecer-se como bombista suicida. Em Junho, é identificado numa rixa num bar relacionada com drogas (um hábito muito pouco religioso), mas usa um dos seus seis documentos falsos de identidade – alguns dos quais com registo de nacionalidade libanesa e egípcia.
Quando, em Abril, requer asilo na Alemanha, é precisamente o documento egípcio que apresenta. No entanto, no interrogatório formal que é obrigado a fazer para o processo, nem consegue localizar no mapa o Cairo, capital do país. Dois meses depois, o pedido é recusado. Finalmente, a 30 de Julho, as autoridades têm o seu último encontro com Amri, quando o apanham com documentação falsa na localidade de Friedrichhafen, conhecida pela presença de várias empresas de engenharia de ponta em armamento, junto às fronteiras com a Áustria e a Suíça. É detido e o tribunal local emite a ordem de expulsão. Mais uma vez, a Tunísia não o reconhece como seu cidadão. Seis dias depois, sai do centro de detenção temporária em liberdade. É 7 de Agosto, pouco mais de três meses para assaltar um camião e o conduzir contra uma multidão.
O tunisino volta a surgir ao volante do Scania que arrebatou das mãos do camionista polaco Lukasz Urban. Este, tudo fez até ao último instante para travar os ímpetos do terrorista.
Porém, uma fonte anónima dos serviços de inteligência deu à estação televisiva ZDF outra explicação: não há meios humanos para seguir tantos salafistas radicais na Alemanha. São 550 indivíduos sinalizados, muitos deles tidos como altamente perigosos. “Para controlarmos todos estes suspeitos 24 horas por dia, precisávamos de 14 mil homens”, disse o agente, que acredita que por não ter registado comportamentos suspeitos nos últimos meses de monitorização, Anis deixou de ser prioritário para a unidade.
O tunisino volta a surgir, com o aparato que se conhece, ao volante do Scania. Terá tido a ajuda de dois cúmplices kosovares no resgate do veículo que arrebatou das mãos do camionista polaco Lukasz Urban, que tudo fez até ao último instante para travar os ímpetos do terrorista. Acabou assassinado pelo seu sequestrador, como outras 12 pessoas. A sangrar da face, o assassino saltou da cabina do camião e escapou. Como a polícia perdeu várias horas com a detenção equivocada de um paquistanês, teve tempo para se pôr a milhas de distância. No caminho, poderá ter voltado a Westhafen, para receber apoio. Se assim foi, a menos de 100 metros os agentes da esquadra local voltaram a tê-lo debaixo do nariz sem lhe conseguir sentir o cheiro.
A fuga
Sexta-feira, 3h00 da manhã. O homem mais procurado da Europa, com informações sobre o seu paradeiro premiadas com 100 mil euros pelas autoridades alemãs, sai de um comboio suburbano em Sesto San Giovanni, nos arredores de Milão. À saída da estação, é abordado por dois agentes numa patrulha de rotina: Cristian Movio, de 36 anos, e Luca Scatà, de 29, com apenas três meses de distintivo ao peito, que lhe pedem a identificação. Mas, desta vez, Anis não tinha passaportes falsos. A sua única identificação, talvez a única que tenha tido na vida, era o revólver, guardado na mala, que puxou prontamente para disparar sobre Movio, atingindo-o no ombro. Os agentes responderam e uma das balas disparadas por Luca penetrou letalmente nas costas do tunisino.Os bilhetes encontrados nos bolsos do seu casaco permitiram reconstituir os passos da sua fuga. De Berlim, conseguiu chegar, de forma ainda desconhecida, a Chambery, na província francesa de Saboia, perto da raia alemã, de onde apanhou um comboio para Turim, onde terá feito uma escala de três horas. Entrou num novo comboio para a estação central de Milão, saltando depois para um suburbano com destino a Sesto, a sua derradeira paragem.
Os investigadores tentam agora saber quem o ajudou a chegar tão longe e se alguém o aguardava nas cercanias de Milão para o ajudar a prosseguir com a fuga. E Anis não iria longe sem apoio – não tinha telemóvel e restavam-lhe meia dúzia de cêntimos, um canivete e a pistola, que ainda se desconhece ser a mesma que utilizou na noite do atentado para matar o camionista polaco. “Era como um fantasma”, disse Antonio de Iesu, investigador principal do caso em Milão. “Podia ter feito outro atentado, era um raio louco, um perigo latente”.