Opinião
“Vão desejar ter-me de volta”. É perturbador acolher esta premonição
[de Saddam Hussein], expressa como foi por um tirano implacável com
tanto sangue nas mãos.
Numa sexta-feira há 10 anos, às seis horas da manhã, hora de Bagdad,
Saddam Hussein foi levado por um lance de escadas na antiga sede dos
seus serviços secretos, no bairro de Kadhimiyah, na capital iraquiana. O
espaço tinha servido, segundo alguns rumores, para abrigar salas de
tortura onde alegados “inimigos do Estado” sofreram durante o regime.
Oficiais de rosto tapado conduziram o antigo Presidente em direcção a um
grande alçapão. Ele seguiu-os obedientemente, sem qualquer medo
aparente, recusando-se a usar um capuz. Enquanto palavras de ordem
pró-xiita de “Muqtada, Muqtada, Muqtada” rompiam a quietude mórbida, as
câmaras giravam e encadeavam, criando uma aura espectral.
Uma voz gritou: “Vai para o inferno.”
Saddam respondeu: “O inferno que é o Iraque?”
A meio da sua recitação da chahada, a profissão de fé do Islão, o piso cedeu por baixo de Saddam, com um estrondo audível ecoando no espaço semelhante a um armazém, enquanto o pescoço se partia. Pouco depois, estava morto.
Num comunicado emitido na sequência da execução, o presidente norte-americano George W. Bush afirmou que, embora este facto não fosse pôr um fim imediato à violência sectária que já estava a despedaçar o Iraque, marcaria “um importante marco no caminho do Iraque em direcção a uma democracia” que pudesse “governar, sustentar e defender-se a si própria, e ser um aliado na guerra contra o terrorismo.” Esperava-se que a morte de Saddam desse início a uma nova era no Iraque e na região.
Mas essa nova era nem durou cinco minutos. Uma pequena multidão de xiitas celebrou efusivamente ao lado do corpo de Saddam, criando a sensação de um linchamento indisciplinado em vez de uma operação calculada e liderada pelo Estado. Em poucas horas, pelo menos 75 pessoas foram mortas em ataques bombistas pelo país, naquilo que terão sido provavelmente ataques sunitas de retaliação com os xiitas como alvo. Os militares dos Estados Unidos, entretanto, anunciaram a morte de seis soldados, transformando aquele Dezembro no mês mais violento para as forças norte-americanas em dois anos.
Fumo crescente turva o nascer do sol nas cidades pelo Médio Oriente dez anos depois da execução de Saddam, e 13 anos depois da promessa de Bush de que um “Iraque livre terá um efeito extraordinariamente positivo na sua vizinhança.” A vizinhança é agora um jazigo.
Na altura da execução, a Primavera Árabe ainda não se tinha inflamado – nem sido impiedosamente extinta. Embora a Síria e a Líbia continuassem a ser ditaduras repressivas, as relações com a Líbia estavam no melhor ponto em décadas, com a administração Bush a retomar por completo as suas relações diplomáticas com o regime de Khadafi. Também o Egipto aparentava uma confiável estabilidade, embora os críticos de Hosni Mubarak permanecessem descontentes com o alcance e o ritmo das reformas limitadas com que tinha concordado avançar. O sempre volátil Iémen continuava sob controlo do corrupto autocrata Ali Abdullah Saleh, que, numa frase que ficou célebre, se referiu ao desafio de unir aquele país fraccionado como “dançar em cima de cabeças de serpentes”. As brasas da violência no Iraque, a incandescerem numa sangria sectária que piorava de dia para dia, ainda não tinham deflagrado num incêndio que se espalharia para além das suas fronteiras.
Mas acabaria por acontecer, no entanto. As ditaduras da região provariam ser uma caixa de fósforos que, depois de acesa, consumiria a vida de mais de 400 mil pessoas na Síria, milhares no Egipto, Líbia e Iémen, e eventualmente entre 200 mil e 500 mil no próprio Iraque. Milhões seriam desalojados, provocando uma crise humanitária para a qual o mundo não estava minimamente preparado. Em alguns anos, os refugiados tornar-se-iam uma ameaça ao tecido social europeu e nasceria uma nova organização terrorista, chamada Estado Islâmico, ainda mais letal e bárbara do que a Al-Qaeda.
Com o inimigo sunita do Irão e Saddam eliminado, a teocracia xiita tornou-se predominante, exercendo uma poderosa influência sobre o novo governo iraquiano, expandindo o seu alcance até ao Iémen com os rebeldes houthi a tomarem a capital, e posicionando-se para contribuir para a vitória de Bashar al-Assad na Síria.
Quem consegue esquecer a declaração de Donald Rumsfeld – marcada pela inabalável confiança que caracterizou a sua liderança – de que a guerra no Iraque poderia durar “cinco dias ou cinco semanas ou cinco meses, mas que certamente não iria durar mais do que isso”? Como se veio a revelar, o actual esforço para libertar Mossul – pela terceira vez, desta vez de uma organização terrorista, o Estado Islâmico, que nem sequer existia quando Saddam foi morto – prevê-se que dure mais do que aquilo que Rumsfeld assegurou que iria durar toda a guerra. Só esta semana, 1700 soldados da 82.ª Divisão aerotransportada do Exército norte-americano despediram-se dos seus ente-queridos antes de serem destacados para o Iraque. Os mais novos tinham apenas cinco anos quando os Estados Unidos iniciaram a invasão para derrubar Saddam.
Pergunta-se como é que alguém, sobretudo os arquitectos da guerra, se pode agarrar à ideia de que encaminhar Saddam para o enforcamento valia milhares de milhões de dólares, já para não mencionar os 4500 oficiais em serviço mortos, os mais de 30 mil feridos, ou as centenas de milhares de mortes violentas que ocorreram pela região desde o seu derrube. Sem contar com os milhões que foram forçados a fugir da violência com pouco mais do que a roupa que tinham no corpo, ou as ameaças terroristas que agora são habituais nos cenários americano e europeu. Nenhum dos legisladores americanos responsáveis por isto foram responsabilizados tal como os seus homólogos britânicos foram no condenatório Relatório Chilcot.
Tudo isso me lembra algo que aprendi enquanto trabalhava no meu livro sobre o Iraque. Saddam expressou repetidamente o mesmo sentimento a algumas das pessoas responsáveis por ele durante os seus três anos de prisão: “Vão desejar ter-me de volta”. É perturbador acolher esta premonição, expressa como foi por um tirano implacável com tanto sangue nas mãos. É especialmente perturbador quando penso em amigos corajosos e soldados cuja crença na sua missão nunca definhou, alguns deles derrubados no melhor tempo das suas vidas. No entanto, quando interpretadas em relação à cadeia sísmica de eventos desencadeada pela guerra para o remover do poder, as palavras de Saddam Hussein parecem perversamente proféticas.
Will Bardenwerper é escritor e foi militar da Infantaria no Exército dos Estados Unidos e, mais recentemente, trabalhou como funcionário público no gabinete do Secretário da Defesa.
Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post
Uma voz gritou: “Vai para o inferno.”
Saddam respondeu: “O inferno que é o Iraque?”
A meio da sua recitação da chahada, a profissão de fé do Islão, o piso cedeu por baixo de Saddam, com um estrondo audível ecoando no espaço semelhante a um armazém, enquanto o pescoço se partia. Pouco depois, estava morto.
Num comunicado emitido na sequência da execução, o presidente norte-americano George W. Bush afirmou que, embora este facto não fosse pôr um fim imediato à violência sectária que já estava a despedaçar o Iraque, marcaria “um importante marco no caminho do Iraque em direcção a uma democracia” que pudesse “governar, sustentar e defender-se a si própria, e ser um aliado na guerra contra o terrorismo.” Esperava-se que a morte de Saddam desse início a uma nova era no Iraque e na região.
Mas essa nova era nem durou cinco minutos. Uma pequena multidão de xiitas celebrou efusivamente ao lado do corpo de Saddam, criando a sensação de um linchamento indisciplinado em vez de uma operação calculada e liderada pelo Estado. Em poucas horas, pelo menos 75 pessoas foram mortas em ataques bombistas pelo país, naquilo que terão sido provavelmente ataques sunitas de retaliação com os xiitas como alvo. Os militares dos Estados Unidos, entretanto, anunciaram a morte de seis soldados, transformando aquele Dezembro no mês mais violento para as forças norte-americanas em dois anos.
Fumo crescente turva o nascer do sol nas cidades pelo Médio Oriente dez anos depois da execução de Saddam, e 13 anos depois da promessa de Bush de que um “Iraque livre terá um efeito extraordinariamente positivo na sua vizinhança.” A vizinhança é agora um jazigo.
Na altura da execução, a Primavera Árabe ainda não se tinha inflamado – nem sido impiedosamente extinta. Embora a Síria e a Líbia continuassem a ser ditaduras repressivas, as relações com a Líbia estavam no melhor ponto em décadas, com a administração Bush a retomar por completo as suas relações diplomáticas com o regime de Khadafi. Também o Egipto aparentava uma confiável estabilidade, embora os críticos de Hosni Mubarak permanecessem descontentes com o alcance e o ritmo das reformas limitadas com que tinha concordado avançar. O sempre volátil Iémen continuava sob controlo do corrupto autocrata Ali Abdullah Saleh, que, numa frase que ficou célebre, se referiu ao desafio de unir aquele país fraccionado como “dançar em cima de cabeças de serpentes”. As brasas da violência no Iraque, a incandescerem numa sangria sectária que piorava de dia para dia, ainda não tinham deflagrado num incêndio que se espalharia para além das suas fronteiras.
Mas acabaria por acontecer, no entanto. As ditaduras da região provariam ser uma caixa de fósforos que, depois de acesa, consumiria a vida de mais de 400 mil pessoas na Síria, milhares no Egipto, Líbia e Iémen, e eventualmente entre 200 mil e 500 mil no próprio Iraque. Milhões seriam desalojados, provocando uma crise humanitária para a qual o mundo não estava minimamente preparado. Em alguns anos, os refugiados tornar-se-iam uma ameaça ao tecido social europeu e nasceria uma nova organização terrorista, chamada Estado Islâmico, ainda mais letal e bárbara do que a Al-Qaeda.
Com o inimigo sunita do Irão e Saddam eliminado, a teocracia xiita tornou-se predominante, exercendo uma poderosa influência sobre o novo governo iraquiano, expandindo o seu alcance até ao Iémen com os rebeldes houthi a tomarem a capital, e posicionando-se para contribuir para a vitória de Bashar al-Assad na Síria.
Quem consegue esquecer a declaração de Donald Rumsfeld – marcada pela inabalável confiança que caracterizou a sua liderança – de que a guerra no Iraque poderia durar “cinco dias ou cinco semanas ou cinco meses, mas que certamente não iria durar mais do que isso”? Como se veio a revelar, o actual esforço para libertar Mossul – pela terceira vez, desta vez de uma organização terrorista, o Estado Islâmico, que nem sequer existia quando Saddam foi morto – prevê-se que dure mais do que aquilo que Rumsfeld assegurou que iria durar toda a guerra. Só esta semana, 1700 soldados da 82.ª Divisão aerotransportada do Exército norte-americano despediram-se dos seus ente-queridos antes de serem destacados para o Iraque. Os mais novos tinham apenas cinco anos quando os Estados Unidos iniciaram a invasão para derrubar Saddam.
Pergunta-se como é que alguém, sobretudo os arquitectos da guerra, se pode agarrar à ideia de que encaminhar Saddam para o enforcamento valia milhares de milhões de dólares, já para não mencionar os 4500 oficiais em serviço mortos, os mais de 30 mil feridos, ou as centenas de milhares de mortes violentas que ocorreram pela região desde o seu derrube. Sem contar com os milhões que foram forçados a fugir da violência com pouco mais do que a roupa que tinham no corpo, ou as ameaças terroristas que agora são habituais nos cenários americano e europeu. Nenhum dos legisladores americanos responsáveis por isto foram responsabilizados tal como os seus homólogos britânicos foram no condenatório Relatório Chilcot.
Tudo isso me lembra algo que aprendi enquanto trabalhava no meu livro sobre o Iraque. Saddam expressou repetidamente o mesmo sentimento a algumas das pessoas responsáveis por ele durante os seus três anos de prisão: “Vão desejar ter-me de volta”. É perturbador acolher esta premonição, expressa como foi por um tirano implacável com tanto sangue nas mãos. É especialmente perturbador quando penso em amigos corajosos e soldados cuja crença na sua missão nunca definhou, alguns deles derrubados no melhor tempo das suas vidas. No entanto, quando interpretadas em relação à cadeia sísmica de eventos desencadeada pela guerra para o remover do poder, as palavras de Saddam Hussein parecem perversamente proféticas.
Will Bardenwerper é escritor e foi militar da Infantaria no Exército dos Estados Unidos e, mais recentemente, trabalhou como funcionário público no gabinete do Secretário da Defesa.
Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post
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