sábado, 31 de dezembro de 2016

Uma leitura alternativa quanto ao “décimo terceiro”


Ericino de Salema


Tem sido, nos últimos três dias, motivo de uma ‘natural reacção’ a decisão do Governo segundo a qual o décimo terceiro vencimento relativo a 2016 só será pago em 50% e somente àqueles funcionários e agentes do Estado que não exerçam cargos de chefia ou de direcção, membros do próprio Governo e vice-ministros inclusos. Detalhes dessa decisão governamental podem ser vistos no Decreto número 65/2016, de 27 de Dezembro.
Apesar de ser verídico que, nos termos legais – parte final do número 1 do artigo 43 do Regulamento do Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado (REGFAE), aprovado pelo Decreto número 62/2009, de 08 de Setembro –, o pagamento do décimo terceiro vencimento acha-se condicionado à existência de disponibilidade financeira, julgamos haver espaço para a feitura de alguns comentários à decisão governamental, em jeito de leitura alternativa.
Alguns pontos:
1. O ministro da Economia e Finanças, Adriano Maleiane, disse, em meados de Outubro deste ano (‘Notícias’ e ‘O País’ de 17 de Outubro de 2016), que o Governo estava em condições de pagar salários aos seus funcionários e agentes pelo menos até o fim de 2016. Nessas declarações, que as fez quando a propósito foi interpelado por jornalistas, Maleiane frisou: “O que posso garantir neste momento, apesar de a nossa economia não estar a atravessar momentos bons, é que ainda temos liquidez que garanta o pagamento de salários até ao mês de Dezembro”;
2. Todo o funcionário e agente do Estado, enquanto tal e enquanto cidadão, tem o direito de beneficiar do princípio da certeza jurídica, termos em que com as declarações do ministro da Economia e Finanças, há pouco mais de dois meses, não seria exagerado que emergisse, seguramente, essa certeza de que estava tudo quite pelo menos até o fim de 2016, em termos salariais, décimo terceiro vencimento incluso;
3. No plano da certeza jurídica, o tema objecto destas notas discute-se melhor, parece-me, no plano da tutela de confiança, no âmbito, por exemplo, da chamada culpa no acto de contratação. Mas este não é necessariamente o assunto neste momento. O certo é que os funcionários e agentes do Estado têm o direito, senão mesmo o dever, de confiar no ministro da Economia e Finanças, de tê-lo como pessoa responsável, de assumir o que ele disse como uma declaração séria;
4. As declarações de Maleiane, reitero, criaram um estado de convicção nos funcionários e agentes do Estado de que aquela afirmação incluía o décimo terceiro vencimento. Pode-se arguir que o décimo terceiro é sempre pago em Janeiro do ano seguinte (primeira ou segunda semana), mas o mesmo é referente ao ano precedente, e não àquele em que é comumente pago;
5. Com o diploma legal de há três dias, por via do qual o Governo comunica ou o pagamento parcial ou o não pagamento do décimo terceiro vencimento em 2016, achao que se viola o princípio da tutela da confiança, na sua vertente de dever de informação, sobretudo no que tange ao dever de lealdade. “Grave est fidem fallere” (é grave trair a confiança ou faltar à palavra), diziam os romanos;
6. Nas palavras do Prof. Moura Vicente, a tutela da confiança revela-se, prima facie, como um princípio concretizador do Estado de Direito, uma exigência de resto indispensável à segurança do tráfico jurídico e uma vida colectiva pacífica e de cooperação. “O equilíbrio social e a paz jurídica assentam largamente na permanência das posições jurídicas e na realização das legítimas expectativas geradas nas relações entre privados e entre estes e o Estado” (VICENTE, Dário Moura; Da Responsabilidade Pré-Contratual em Direito Internacional Privado; Colecção Teses; Almedina; 2001; pág. 42);
7. Já com o auxílio do Prof. Menezes Cordeiro, de resto com larga elaboração em torno do princípio da tutela (expressa, por exemplo, na obra Manual de Direito do Trabalho), a questão que me suscita a redigir estas breves notas pode ser expandida para o âmbito do princípio da boa fé, de capital importância em todas as relações contratuais. Diz ele que, nas suas manifestações subjectiva e objectiva, a boa fé está ligada à confiança. Os deveres de protecção, de informação e de lealdade são, pois, mais do que essenciais;
8. Apesar de o REGFAE dar cobertura ao acto administrativo do Governo, embora, a nosso ver, ferido, chamemos-lhe assim, do vício de extemporaniedade, noutro plano esta discussão pode ser expandida e alargada, chegando-se, até, ao âmago do próprio pluralismo jurídico, que tem as “práticas reiteradas” como parte das fontes do Direito. Já agora, o saudoso Prof. Gilles Cistac elaborou por demais sobre “a prática administrativa como fonte do Direito”.
Bem, já não dá para “esticar mais”!
GFG




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Comentários


Cândido Langa "Grave est fidem fallere"
Gosto · 1 · 14 h


Ezra Chambal Nhampoca Era uma vez um governo sério, de palavra, em Moçambique. Triste
Gosto · 14 h


Osvaldo Jocitala Só uma perguntinha, oh Salema: juridicamente há espaço ou não de o servidor público exigir que se lhe seja pago o 13 na ordem de 100% usando como arma para a tal exigência as declarações do Ministro Maleiane (considere-se empregador no caso)?
Gosto · 2 · 14 h


Pio Cassicasse Nem mais... Talvez se lhe questionasse a esta altura o ministro Maleiane, chamando-o a razão as Declarações por ele feitas sobre a garantia de pagamentos de salários.
Gosto · 11 min

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