Ericino de Salema
Tem sido, nos últimos três dias, motivo de uma ‘natural reacção’ a decisão do Governo segundo a qual o décimo terceiro vencimento relativo a 2016 só será pago em 50% e somente àqueles funcionários e agentes do Estado que não exerçam cargos de chefia ou de direcção, membros do próprio Governo e vice-ministros inclusos. Detalhes dessa decisão governamental podem ser vistos no Decreto número 65/2016, de 27 de Dezembro.
Apesar de ser verídico que, nos termos legais – parte final do número 1 do artigo 43 do Regulamento do Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado (REGFAE), aprovado pelo Decreto número 62/2009, de 08 de Setembro –, o pagamento do décimo terceiro vencimento acha-se condicionado à existência de disponibilidade financeira, julgamos haver espaço para a feitura de alguns comentários à decisão governamental, em jeito de leitura alternativa.
Alguns pontos:
1. O ministro da Economia e Finanças, Adriano Maleiane, disse, em meados de Outubro deste ano (‘Notícias’ e ‘O País’ de 17 de Outubro de 2016), que o Governo estava em condições de pagar salários aos seus funcionários e agentes pelo menos até o fim de 2016. Nessas declarações, que as fez quando a propósito foi interpelado por jornalistas, Maleiane frisou: “O que posso garantir neste momento, apesar de a nossa economia não estar a atravessar momentos bons, é que ainda temos liquidez que garanta o pagamento de salários até ao mês de Dezembro”;
2. Todo o funcionário e agente do Estado, enquanto tal e enquanto cidadão, tem o direito de beneficiar do princípio da certeza jurídica, termos em que com as declarações do ministro da Economia e Finanças, há pouco mais de dois meses, não seria exagerado que emergisse, seguramente, essa certeza de que estava tudo quite pelo menos até o fim de 2016, em termos salariais, décimo terceiro vencimento incluso;
3. No plano da certeza jurídica, o tema objecto destas notas discute-se melhor, parece-me, no plano da tutela de confiança, no âmbito, por exemplo, da chamada culpa no acto de contratação. Mas este não é necessariamente o assunto neste momento. O certo é que os funcionários e agentes do Estado têm o direito, senão mesmo o dever, de confiar no ministro da Economia e Finanças, de tê-lo como pessoa responsável, de assumir o que ele disse como uma declaração séria;
4. As declarações de Maleiane, reitero, criaram um estado de convicção nos funcionários e agentes do Estado de que aquela afirmação incluía o décimo terceiro vencimento. Pode-se arguir que o décimo terceiro é sempre pago em Janeiro do ano seguinte (primeira ou segunda semana), mas o mesmo é referente ao ano precedente, e não àquele em que é comumente pago;
5. Com o diploma legal de há três dias, por via do qual o Governo comunica ou o pagamento parcial ou o não pagamento do décimo terceiro vencimento em 2016, achao que se viola o princípio da tutela da confiança, na sua vertente de dever de informação, sobretudo no que tange ao dever de lealdade. “Grave est fidem fallere” (é grave trair a confiança ou faltar à palavra), diziam os romanos;
6. Nas palavras do Prof. Moura Vicente, a tutela da confiança revela-se, prima facie, como um princípio concretizador do Estado de Direito, uma exigência de resto indispensável à segurança do tráfico jurídico e uma vida colectiva pacífica e de cooperação. “O equilíbrio social e a paz jurídica assentam largamente na permanência das posições jurídicas e na realização das legítimas expectativas geradas nas relações entre privados e entre estes e o Estado” (VICENTE, Dário Moura; Da Responsabilidade Pré-Contratual em Direito Internacional Privado; Colecção Teses; Almedina; 2001; pág. 42);
7. Já com o auxílio do Prof. Menezes Cordeiro, de resto com larga elaboração em torno do princípio da tutela (expressa, por exemplo, na obra Manual de Direito do Trabalho), a questão que me suscita a redigir estas breves notas pode ser expandida para o âmbito do princípio da boa fé, de capital importância em todas as relações contratuais. Diz ele que, nas suas manifestações subjectiva e objectiva, a boa fé está ligada à confiança. Os deveres de protecção, de informação e de lealdade são, pois, mais do que essenciais;
8. Apesar de o REGFAE dar cobertura ao acto administrativo do Governo, embora, a nosso ver, ferido, chamemos-lhe assim, do vício de extemporaniedade, noutro plano esta discussão pode ser expandida e alargada, chegando-se, até, ao âmago do próprio pluralismo jurídico, que tem as “práticas reiteradas” como parte das fontes do Direito. Já agora, o saudoso Prof. Gilles Cistac elaborou por demais sobre “a prática administrativa como fonte do Direito”.
Bem, já não dá para “esticar mais”!
GFG
GostoMostrar mais reações
Partilhar
3535
Comentários
Cândido Langa "Grave est fidem fallere"
Gosto · 1 · 14 h
Ezra Chambal Nhampoca Era uma vez um governo sério, de palavra, em Moçambique. Triste
Gosto · 14 h
Osvaldo Jocitala Só uma perguntinha, oh Salema: juridicamente há espaço ou não de o servidor público exigir que se lhe seja pago o 13 na ordem de 100% usando como arma para a tal exigência as declarações do Ministro Maleiane (considere-se empregador no caso)?
Gosto · 2 · 14 h
Pio Cassicasse Nem mais... Talvez se lhe questionasse a esta altura o ministro Maleiane, chamando-o a razão as Declarações por ele feitas sobre a garantia de pagamentos de salários.
Gosto · 11 min
Sem comentários:
Enviar um comentário