Itália:
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A culpa só pode ser do macaco, perdão, da zona euro. E da UE. Quanto mais acreditarmos nisso, mais avança a onda anti-europeia. E, com ela, o regresso a um nacionalismo estrito e identitário.
Tornou-se recorrente considerar que qualquer coisa que suceda na Europa é da responsabilidade da zona euro em particular e da União Europeia (UE) em geral; e que qualquer coisa que suceda na Europa tem como consequência o fim da zona euro em primeiro lugar e da UE a seguir.
O chumbo do referendo convocado por Matteo Renzi para alterar o sistema eleitoral – e o bicamaralismo (quase) perfeito vigente no país – e tornar mais estável a governação foi chumbado? A culpa é da zona euro, causa da instabilidade italiana, explicou a oposição eurocéptica. E o líder do Movimento 5 Estrelas, Beppe Grillo, com o apoio da Lega Nord, quer referendar a pertença da Itália à zona euro; isso basta, preconizam os inimigos da moeda única, para garantir a saída da Itália do euro e levar ao fim inevitável da UE.
Não há qualquer dúvida que a pergunta do “referendum constituzionale” era sobre o euro. Veja-se: “Aprova o texto da lei constitucional relativa às ‘Disposições para a superação do bicamaralismo partidário, a redução do número dos parlamentares, a contenção dos custos de funcionamento das instituições, a supressão da CNEL e a revisão do título V da parte II da Constituição’, aprovado pelo Parlamento e publicado na Gazzetta Ufficiale n.88 de 15 de Abril 2016?” Os italianos discordam da supressão da CNEL? Da diminuição dos parlamentares? Que importa tudo isso, se o referendo foi sem dúvida sobre a UE? E sobre o euro?
Também Marine Le Pen, insuspeita de preconceitos contra a União, a Europa e o euro, o afirma: “os italianos contradisseram a UE e Renzi. Há que escutar esta sede de liberdade e protecção das nações”. A instabilidade é culpa do euro. Que interessa se a Itália teve 67 governos em 70 anos antes de existir sequer União Europeia e muito menos o euro? E também não importa que os partidos que querem a saída do euro tenham de conquistar uma maioria confortável nas eleições, já em 2017 se o Presidente Sergio Mattarella convocar eleições antecipadas, ou em 2018 se promover um novo governo de coligação; ou que precisem de alterar a Constituição por 2/3 dos votos para que um referendo seja possível; e que tenham de conseguir maioria na Câmara e Senado para o poder convocar; e que o voto popular favoreça a saída do euro. Mas em que é que essas exigências beliscam sequer a certeza quase absoluta de que o euro caminha para o seu fim?
Não pode haver dúvidas quando os defensores do Brexit não as têm. Eis um tweet oficial do “Leave EU” da madrugada de ontem: “A onda do poder popular espalhou-se a Itália, com os votantes a forçar a resignação do PM Renzi. Próximo passo: sair do euro!”. De facto não interessa muito que Renzi tenha, como Cameron antes dele, feito um erro de cálculo, tornando inevitável este desfecho ao ameaçar demitir-se em caso de derrota, o que não precisava de fazer: a culpa, indiscutível, clara, planetária, é do euro. Sem sombra de dúvida.
Já na Áustria, a vitória de Alexander Van der Bellen, septuagenário ex-líder dos ecologistas, sobre Norbert Hofe, do Partido da Liberdade (FPÖ) defensor das raízes nacionalistas identitárias dos austríacos, foi recebida como uma boa notícia para a Europa. Talvez seja primeiro uma boa notícia para a Áustria, mas a verdade é que milhões votaram por Hofe com eleições legislativas no horizonte. Marine Le Pen está atenta: “Parabéns ao FPÖ, que se bateu com coragem. As próximas legislativas serão as da sua vitória! ». E a culpa, de novo, será da zona euro, da UE e da Europa liberal no seu todo. Claro.
É fácil criticar a UE, um projecto de liberdade e paz que provou à saciedade a sua eficácia ao longo de quase 70 anos. Houve erros, períodos mais difíceis, sem dúvida, mas a integração europeia é um indiscutível sucesso. E é fácil criticá-la, desviando as atenções das lideranças tradicionais dos países que a constituem, das promessas incumpridas, da corrupção das elites económicas, financeiras – a banca? – e políticas, da apropriação por parte de uns (poucos) quantos da riqueza criadas pelos (muitos) muitos cidadãos comuns. Alguém imagina (ou ouviu?) um líder nacional aceitar responsabilidade pela insatisfação dos eleitores, quando é fácil imputar a culpa ao euro? À UE? À Europa livre, democrática e cooperante? Um conveniente bode expiatório, que tudo tem de expiar, mesmo as culpas alheias.
E contudo, a União Europeia, projecto sem par na História da Humanidade, baseado na livre circulação das pessoas, produtos, serviços e capitais, na cooperação entre os povos europeus, em valores como a democracia, direitos humanos e tolerância para com os outros, garantiu o maior período de paz de sempre no continente e contribuiu para uma prosperidade sem precedentes. Contra ele erguem-se agora as mesmas forças que, no passado, contribuíram para a guerra; para a miséria do corpo e da alma dos europeus; para a destruição e a morte. É preciso ter medo de o dizer com medo de ser apontado a dedo pelos inimigos da União? Pois que alguém o diga porque alguém tem de o fazer e quantos mais o fizerem melhor.
Liberdade, pede Marine Le Pen, liberdade, lembra o nome do Partido do holandês Geert Wilders, liberdade, clamou Farage na noite célebre do Brexit: mas liberdade para quê? Liberdade para acabar com as grilhetas de uma União de que se pode sair sem obstáculos, como os britânicos acabam de provar (coisa diferente é assumir responsabilidades ou querer manter benefícios sem aceitar os custos inerentes)? Ou para acabar com a liberdade de circulação das pessoas em geral, e não só de imigrantes de outras paragens como muitos parecem pensar? Ou ainda para repor barreiras à entrada de produtos estrangeiros? Para proibir, para proteger (“sede de protecção”), para limitar, para acabar? Liberdade?
Só se for Liberdade para escrever a palavra Fim no princípio de um belo sonho.
Proponho uma reflexão seminal, com uma premissa provocadora: os europeus, como os ocidentais em geral, tomaram por garantida a prosperidade eterna, sempre crescente e segura; acreditam na paz perpétua, crêem que nada voltará a fazer das searas e planícies campos de batalha sangrentos. E por isso, também por isso, desvalorizam a importância da democracia e da verdadeira liberdade. Desvalorizam os direitos humanos, como refere a notícia neste jornal sobre a tortura (sondagem demonstra que mais de metade da população de 16 países aceita hoje o recurso à tortura nos conflitos); e um estudo de um investigador de Harvard a publicar no início do próximo ano parece demonstrar que os “millenials” valorizam cada vez menos a democracia e até a defesa dos direitos humanos.
O voto em Itália parece a Nigel Farage “mais sobre o euro do que sobre mudanças constitucionais”? Deve ter razão, pois uma sondagem do mês passado revela que 15,2% dos italianos defendem a saída do euro contra “apenas” 67,4% crentes na moeda única. Mas o que é que isso interessa? A culpa só pode ser do macaco, perdão, da zona euro. E da UE. Quanto mais acreditarmos nisso, mais avança a onda anti-europeia. E, com ela, o regresso a um nacionalismo estrito e identitário, anti-globalização e securitário, baseado em princípios que, no fundo, desconhecemos.
Mas não faz mal; adaptando Groucho Marx, se não gostarmos desses princípios, mesmo que não existam, arranjam-se outros. Importa é acreditarmos neles.
O chumbo do referendo convocado por Matteo Renzi para alterar o sistema eleitoral – e o bicamaralismo (quase) perfeito vigente no país – e tornar mais estável a governação foi chumbado? A culpa é da zona euro, causa da instabilidade italiana, explicou a oposição eurocéptica. E o líder do Movimento 5 Estrelas, Beppe Grillo, com o apoio da Lega Nord, quer referendar a pertença da Itália à zona euro; isso basta, preconizam os inimigos da moeda única, para garantir a saída da Itália do euro e levar ao fim inevitável da UE.
Não há qualquer dúvida que a pergunta do “referendum constituzionale” era sobre o euro. Veja-se: “Aprova o texto da lei constitucional relativa às ‘Disposições para a superação do bicamaralismo partidário, a redução do número dos parlamentares, a contenção dos custos de funcionamento das instituições, a supressão da CNEL e a revisão do título V da parte II da Constituição’, aprovado pelo Parlamento e publicado na Gazzetta Ufficiale n.88 de 15 de Abril 2016?” Os italianos discordam da supressão da CNEL? Da diminuição dos parlamentares? Que importa tudo isso, se o referendo foi sem dúvida sobre a UE? E sobre o euro?
Também Marine Le Pen, insuspeita de preconceitos contra a União, a Europa e o euro, o afirma: “os italianos contradisseram a UE e Renzi. Há que escutar esta sede de liberdade e protecção das nações”. A instabilidade é culpa do euro. Que interessa se a Itália teve 67 governos em 70 anos antes de existir sequer União Europeia e muito menos o euro? E também não importa que os partidos que querem a saída do euro tenham de conquistar uma maioria confortável nas eleições, já em 2017 se o Presidente Sergio Mattarella convocar eleições antecipadas, ou em 2018 se promover um novo governo de coligação; ou que precisem de alterar a Constituição por 2/3 dos votos para que um referendo seja possível; e que tenham de conseguir maioria na Câmara e Senado para o poder convocar; e que o voto popular favoreça a saída do euro. Mas em que é que essas exigências beliscam sequer a certeza quase absoluta de que o euro caminha para o seu fim?
Não pode haver dúvidas quando os defensores do Brexit não as têm. Eis um tweet oficial do “Leave EU” da madrugada de ontem: “A onda do poder popular espalhou-se a Itália, com os votantes a forçar a resignação do PM Renzi. Próximo passo: sair do euro!”. De facto não interessa muito que Renzi tenha, como Cameron antes dele, feito um erro de cálculo, tornando inevitável este desfecho ao ameaçar demitir-se em caso de derrota, o que não precisava de fazer: a culpa, indiscutível, clara, planetária, é do euro. Sem sombra de dúvida.
Já na Áustria, a vitória de Alexander Van der Bellen, septuagenário ex-líder dos ecologistas, sobre Norbert Hofe, do Partido da Liberdade (FPÖ) defensor das raízes nacionalistas identitárias dos austríacos, foi recebida como uma boa notícia para a Europa. Talvez seja primeiro uma boa notícia para a Áustria, mas a verdade é que milhões votaram por Hofe com eleições legislativas no horizonte. Marine Le Pen está atenta: “Parabéns ao FPÖ, que se bateu com coragem. As próximas legislativas serão as da sua vitória! ». E a culpa, de novo, será da zona euro, da UE e da Europa liberal no seu todo. Claro.
É fácil criticar a UE, um projecto de liberdade e paz que provou à saciedade a sua eficácia ao longo de quase 70 anos. Houve erros, períodos mais difíceis, sem dúvida, mas a integração europeia é um indiscutível sucesso. E é fácil criticá-la, desviando as atenções das lideranças tradicionais dos países que a constituem, das promessas incumpridas, da corrupção das elites económicas, financeiras – a banca? – e políticas, da apropriação por parte de uns (poucos) quantos da riqueza criadas pelos (muitos) muitos cidadãos comuns. Alguém imagina (ou ouviu?) um líder nacional aceitar responsabilidade pela insatisfação dos eleitores, quando é fácil imputar a culpa ao euro? À UE? À Europa livre, democrática e cooperante? Um conveniente bode expiatório, que tudo tem de expiar, mesmo as culpas alheias.
E contudo, a União Europeia, projecto sem par na História da Humanidade, baseado na livre circulação das pessoas, produtos, serviços e capitais, na cooperação entre os povos europeus, em valores como a democracia, direitos humanos e tolerância para com os outros, garantiu o maior período de paz de sempre no continente e contribuiu para uma prosperidade sem precedentes. Contra ele erguem-se agora as mesmas forças que, no passado, contribuíram para a guerra; para a miséria do corpo e da alma dos europeus; para a destruição e a morte. É preciso ter medo de o dizer com medo de ser apontado a dedo pelos inimigos da União? Pois que alguém o diga porque alguém tem de o fazer e quantos mais o fizerem melhor.
Liberdade, pede Marine Le Pen, liberdade, lembra o nome do Partido do holandês Geert Wilders, liberdade, clamou Farage na noite célebre do Brexit: mas liberdade para quê? Liberdade para acabar com as grilhetas de uma União de que se pode sair sem obstáculos, como os britânicos acabam de provar (coisa diferente é assumir responsabilidades ou querer manter benefícios sem aceitar os custos inerentes)? Ou para acabar com a liberdade de circulação das pessoas em geral, e não só de imigrantes de outras paragens como muitos parecem pensar? Ou ainda para repor barreiras à entrada de produtos estrangeiros? Para proibir, para proteger (“sede de protecção”), para limitar, para acabar? Liberdade?
Só se for Liberdade para escrever a palavra Fim no princípio de um belo sonho.
Proponho uma reflexão seminal, com uma premissa provocadora: os europeus, como os ocidentais em geral, tomaram por garantida a prosperidade eterna, sempre crescente e segura; acreditam na paz perpétua, crêem que nada voltará a fazer das searas e planícies campos de batalha sangrentos. E por isso, também por isso, desvalorizam a importância da democracia e da verdadeira liberdade. Desvalorizam os direitos humanos, como refere a notícia neste jornal sobre a tortura (sondagem demonstra que mais de metade da população de 16 países aceita hoje o recurso à tortura nos conflitos); e um estudo de um investigador de Harvard a publicar no início do próximo ano parece demonstrar que os “millenials” valorizam cada vez menos a democracia e até a defesa dos direitos humanos.
O voto em Itália parece a Nigel Farage “mais sobre o euro do que sobre mudanças constitucionais”? Deve ter razão, pois uma sondagem do mês passado revela que 15,2% dos italianos defendem a saída do euro contra “apenas” 67,4% crentes na moeda única. Mas o que é que isso interessa? A culpa só pode ser do macaco, perdão, da zona euro. E da UE. Quanto mais acreditarmos nisso, mais avança a onda anti-europeia. E, com ela, o regresso a um nacionalismo estrito e identitário, anti-globalização e securitário, baseado em princípios que, no fundo, desconhecemos.
Mas não faz mal; adaptando Groucho Marx, se não gostarmos desses princípios, mesmo que não existam, arranjam-se outros. Importa é acreditarmos neles.
EXPLICADOR
E agora, Itália? Che cosa fai?
- O referendo em Itália era para decidir o quê?
- Quais foram os resultados? E a participação eleitoral?
- Quem foram os maiores derrotados e maiores vencedores deste referendo? E como reagiram?
- E, agora, quais são os próximos passos?
- Quem pode suceder a Matteo Renzi no cargo de primeiro-ministro?
- A Itália vai sair do euro?
- Como é que os mercados reagiram ao resultado do referendo?
- Como é que foi a reação internacional à vitória do "Não"?
- As sondagens voltaram a estar enganadas ou desta vez acertaram no resultado?
E, agora, quais são os próximos passos?
Pergunta 4 de 9
O primeiro passo será dado por Matteo Renzi, que na manhã desta segunda-feira irá reunir-se com o Presidente, Sergio Mattarella, para lhe entregar a demissão. Perante a clareza dos resultados (a derrota do “Sim” ronda os 20 pontos percentuais) e a firmeza do primeiro-ministro em seguir este rumo numa eventualidade de uma vitória do “Não”, o mais provável é que o Presidente aceite a demissão de Matteo Renzi.
Após aceitar a demissão de Matteo Renzi, o Presidente poderá dissolver o parlamento e convocar eleições antecipadas ou tentar reunir as condições para que seja formado um novo Governo de coligação. Este último cenário é o mais provável, uma vez que a realização imediata de eleições pode ser tecnicamente impossível — o Tribunal Constitucional está a dias de se pronunciar sobre a Italicum, a lei eleitoral vigente que deverá declarar inconstitucional.
Assim que for encontrada uma solução de Governo, uma das prioridades do executivo terá de ser chegar a um consenso relativamente à Italicum. Mesmo que não haja eleições antecipadas, os ponteiros do relógio continuarão a avançar. As eleições serão, o mais tardar, em 2018.
Enquanto isso, a oposição vai estar atenta a estes desenvolvimentos. De forma mais ativa — até agressiva — estará o Movimento Cinco Estrelas e a Lega Nord, ambos defensores da realização de eleições antecipadas com a atual lei eleitoral. Depois, está a Forza Italia, de Silvio Berlusconi. Da parte do ex-primeiro-ministro, o desejo é que o Partido Democrático forme um Governo sem Renzi e que o novo executivo arranje uma solução para uma nova lei eleitoral.