Algumas discussões
Vi recentemente uma discussão curiosa, mas típicamente moçambicana. Foi suscitada por um reparo feito por Antonio A. S. Kawaria no seu mural. Ele insurgiu-se contra uma afirmação atribuída a Joaquim Chissano numa entrevista que ele concedeu à AIM. Atribui-se a Chissano a afirmação segundo a qual “[M]uita gente da Renamo orgulha-se de ter feito curso superior, mas estudou em universidades do Estado e mesmo as universidades privadas existentes no país foram possibilitadas pela governação existente no país, mas eles se esquecem disso”. Houve um verdadeiro “shit-storm” contra estas palavras e até contra a pessoa. O autor do post perguntou, estranhamente, se Chissano deve alguma coisa ao regime colonial (uma questão que não foi levantada por Chissano) e outros afirmaram de forma peremptória que ninguém tem nada a agradecer ao Estado porque disponibilizar educação é sua função.
Achei a discussão “moçambicana” por duas razões. Primeiro, o comentário irado que não se informa bem antes de atacar ou discordar. Segundo, a ideia de Estado que algumas pessoas têm. Vamos por partes. Não sei quando, entre nós, vai se enraizar o hábito de nunca discutir afirmações sem conhecimento do contexto em que foram feitas. Discutir e tirar conclusões. A entrevista em questão nem é própriamente entrevista. É o relato do que Joaquim Chissano aparentemente disse, portanto, afirmações arrancadas do contexto em que foram feitas. Curiosamente, antes de Chissano ter feito esta afirmação teceu considerações sobre o que considerou como sendo o hábito da Renamo de fazer ameaças sempre que quiser alcançar objectivos políticos referindo-se especificamente ao seu não-desarmamento e, acima de tudo, à instabilidade militar que se instalou no país na sequência da violência dos seus homens armados. Nesse contexto Chissano afirmou que “... o desejo dos moçambicanos é evitar quaisquer baixas entre a população ou em propriedades, porque afinal a propriedade do Estado é da população e quando a Renamo destrói coisas não se lembra disso, que são os impostos das pessoas que contribuíram e construíram os bens aos (sic) seus próprios filhos”. Posso estar a ler mal. Mas acho que isto muda muita coisa. Quando Chissano diz que alguém estudou numa universidade do Estado está a dizer, seguindo o raciocínio apresentado nesse depoimento, que alguém deve respeitar o que os impostos pagos pelas pessoas construíram. Não está a dizer que as pessoas devem ficar em dívida com a Frelimo. Há muita diferença, creio, uma diferença que um pequeno trabalho de contextualização ajuda a estabelecer. Aqui não censuro quem postou o comentário. Censuro quem o leu e comentou irado sem o contextualizar.
Segundo, não é a primeira vez que leio comentários de pessoas que dizem que ninguém deve agradecer nada ao Estado porque tudo quanto ele faz fá-lo no cumprimento das suas obrigações. Eu não concordo com esta afirmação por uma razão que até vai irritar algumas pessoas. É que não faz parte da natureza do Estado disponibilizar seja o que for ao povo. Quando o Estado faz isso fá-lo em resultado duma história específica – na Europa ocidental, por exemplo, uma história de lutas sindicais – que, podendo ser diferente, vai produzir outro tipo de Estado. É por isso que nos Estados Unidos não ocorreria a ninguém reclamar a educação como um direito que se traduz em obrigação para o Estado. Pode fazê-lo como parte da luta política que procura angariar votos, mas ao fazer isso não está a dizer que esteja a interpretar as obrigações do Estado. Está a constituir essas obrigações. E eis a razão irritante: em Moçambique a ideia de que o Estado tem este tipo de obrigações em relação ao povo é resultado directo da cultura política da Frelimo. Se não tivesse sido a interpretação marxista da luta anti-colonial talvez a Frelimo nunca teria pensado o Estado como o pensou e, quem sabe, talvez muitos de nós nunca teríamos beneficiado de formação superior. Eu pelo menos devo a minha formação à Frelimo, sobretudo à Frelimo que menos me atrai, nomeadamente à Frelimo revoluccionária. É verdade que qualquer outro partido sensato teria feito o mesmo. E essa é, curiosamente, mais uma razão para dar graças a essa Frelimo: por ter sido sensata.
Enfim, só para implicar com algumas pessoas. Faz bem de vez em quando.
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