Em „Guerra e Paz“ o grande escritor russo escreveu: „[Q]uando a maçã está madura e cai, porque cai? Porque foi puxada pela terra? Porque a sua haste secou? A polpa ficou quebradiça? Porque a maçã ficou muito pesada? Porque o vento a abanou? Ou porque o rapazinho lá em baixo a queria comer? Nenhuma destas coisas é a causa, mas sim todas elas juntas é que são a causa…”. O livro foi publicado em 1869, quando Tolstoi tinha 41 anos. Não podia ter estado em Moçambique. Em 1869 os portugueses estavam a entrar em acordo com a República do Transvaal para a construção da estrada até Maputo – que viria a ser concluída em 1871 – e contra a vontade dos ingleses. O Visconde Serpa Pinto andava lá nas suas campanhas de “pacificação” dos indígenas pelo Vale do Zambeze. Quem sabe, se Tolstoi tivesse visitado Moçambique nessa altura, ao invés de se ocupar da sua grande obra, talvez tivesse tido aquela experiência divina que o levou a escrever aquela obra “O Reino de Deus está dentro de si” que teve tanta influência em Martin Luther King, Jr. e Gandhi… quem sabe?
Agora que tenho a sua atenção: Quero passar o ano moçambicano em revista, mas do lado que mais me interessa, nomeadamente do lado da cultura de debate. E a pergunta que interessa é saber se houve progressos. A minha inclinação é mais para o não. Os maus hábitos continuam bem vivos e com as eleições se calhar até ficaram mais robustos, já que o que não mata engorda. Curiosa e ironicamente há uma razão que parece explicar a ausência de progresso. É a tendência contra a qual argumenta Leo Tolstoi de procurar a todo o custo identificar uma única causa para um problema. Já se vê porque digo “curiosa e ironicamente”… Na verdade, a preocupação com uma só causa faz parte dum feixe de fatores que tornam o debate de ideias muito difícil na Pérola do Índico. Esse feixe inclui a extrema politização do debate, o forte viés de confirmação e uma relação conflituosa com a leitura. Estes fatores todos concorrem para promover a identificação da única causa como forma de poupar esforços na reflexão que se impõe sobre os assuntos. O resultado é um debate que pouco contribui para a viabilização de Moçambique.
As manifestações mais visíveis da única causa estão patentes em toda a intervenção que reduz todo o problema ao Guebuza, Dhlakama, Frelimo, Renamo, mão externa, etc. Também, confesso, não resisto a isto. Mas justamente por estar ciente disso tento libertar-me ponderando outras razões antes de emitir a minha opinião, avaliando o seu peso na criação da situação em causa e, sempre que achar prudente, rever a minha posição. Choveu muito em Maputo e, ao que tudo indica, muita gente perdeu abrigo, as estradas cederam, a vida complicou-se. Já vi comentários no Facebook que reduzem isto à incompetência das autoridades, incompetência essa que é típica da má governação africana. Pode ser, claro. Mas desde há alguns dias que neva na Europa central. Os comboios já de si completamente ineficientes da Alemanha ficaram quase paralisados. Mesmo na Suíça, onde funcionam muito melhor, houve atrasos. Para ir a Zurique ontem levei mais tempo do que o habitual. Não é nada comparado com o que aconteceu em Moçambique, claro, mas mesmo aqui podemos perguntar porque países tão desenvolvidos como estes não conseguem estar suficientemente prevenidos para algo tão natural, e normal, como neve. Só essa perguntinha daria para contextualizar melhor a maneira como olhamos para os nossos problemas. Não é preciso ilibar as autoridades, mas apenas contextualizar melhor a explicação convocando mais fatores.
Agora, a atração irresistível exercida pela única causa é exacerbada pela politização do debate. Continuamos a não discutir ideias. Defendemos posições. Quando responsabilizo as autoridades pela má qualidade das infraestruturas não estou necessariamente interessado em perceber porque essa qualidade é má, o que a torna possível, o que posso fazer para que se observe qualidade ou que se procure por alternativas de solução dos problemas para os quais essas infraestruturas são uma solução. Nada disso. Responsabilizo as autoridades porque é importante para mim mostrar que elas são incompetentes, corruptas, narcisas e indiferentes. Nessas circunstâncias, se aparece alguém a colocar estas perguntas o mais provável é que seja acusado de estar a defender as autoridades. Curiosamente, a motivação para colocar essas perguntas vai ser influenciada pela necessidade de defender as autoridades… E é assim que nascem estrelas do Facebook. Basta postar um texto, sim, um texto, com o seguinte teor “Será que o Ministro das Obras Públicas pensa mesmo que aquilo é estrada?” para receber 168 “likes” em 5 minutos e 89 comentários corroborativos no mesmo período de tempo, todos eles de gente que tem contas a ajustar com as autoridades, não gente que se interesse realmente em perceber o problema. A haver discussão nesse “post” vai ser sobre as motivações de quem defende ou acusa, nunca sobre os méritos da questão. E para fechar o ciclo haverá, em algum momento, uma peça de “jornalismo investigativo” que vai arrolar todos os casos de corrupção que são conhecidos nesse ministério. A mim cansa.
Concorre para cimentar a única causa o viés de confirmação de que muitos de nós padecemos. Na avaliação de argumentos a nossa principal preocupação é de confirmar o nosso palpite inicial. Não estamos interessados em saber aquilo que nos poderia fazer mudar de opinião. Não perguntamos “que outras razões concorrem para a má qualidade das infraestruturas e que podem minimizar a responsabilidade das autoridades?”. Não. Nós vamos à procura de tudo quanto nos ajude a reforçar a posição inicial. E é daí que conta a opinião de todos quantos estão de acordo connosco. Quanto mais gente nos apoia (não importa se pensou seriamente no assunto, se tem autoridade para emitir opinião sobre o assunto, nem mesmo se sabe do que se trata) mais forte fica a nossa convicção de que acertamos em cheio. Se Salomão Moiana, só para dar um exemplo caricato, membro do Conselho Nacional de Eleições e um dos filhos primogénitos da luta pela paridade empreendida pelos progenitores da democracia, vota contra a vontade de quem lá o colocou, vai ser festejado como grande patriota pelos outros e vaiado como traidor pelos seus. E se na votação seguinte “mudar de ideias” as reações vão também inverter-se. E com o mesmo vocabulário. Se eu, outro exemplo, um dia escrever, como é hábito, um longo texto a dizer que Guebuza foi o pior presidente que o país teve (pouco provável), esse texto vai ser compartilhado por todos aqueles que hoje me consideram sociólogo vaidoso e sem nada na cabeça com títulos do tipo “grande Elísio Macamo!”. Enquanto isso, todos aqueles que vinham concordando com a minha avaliação positiva de Guebuza vão encher o meu “inbox” querendo saber o que se passa e os grupos de choque no Facebook vão se indagar em voz alta se me pagaram alguma coisa para dizer isso. Tudo menos a discussão dos méritos da questão que teria levantado nesse texto. Cansa muito.
Finalmente, a única causa também vive da difícil relação que algumas pessoas têm com a leitura. Esta relação é complexa e manifesta-se de várias maneiras. A mais simples consiste em não ler pelas razões sobejamente conhecidas: o acesso aos livros é difícil. Tudo bem. Só que sem leituras é difícil citar coisas do “Wikipedia” numa discussão. O que vem lá escrito sobre Voltaire, sem a devida contextualização temperada pela leitura dos debates em torno do seu pensamento e sua aplicação é pouco útil numa discussão. Vezes sem conta vejo-me confrontado com intervenções de pessoas que claramente leram muito pouco para saberem fazer uso adequado das referências que fazem. A segunda maneira consiste em ler e concordar imediatamente se a coisa estiver em sintonia de onda com o que eu sinto. Tem acontecido muito sobretudo com relatórios internacionais que avaliam a posição do país nisto e mais naquilo. Se a avaliação é negativa, quem acha que isso é merecido, grita de júbilo. Os outros discordam. Nenhum, contudo, lê o relatório com atenção, avalia bem os critérios e tenta formar uma opinião independente. Não estou a dizer que todos deviam fazer isto. Só que quem não fez isso não devia emitir opinião. Devia ficar calado para não viciar o debate. Mas isso é pedir demais num país onde a liberdade de pensar é também reclamada por quem não quer pensar.
Por último, a terceira maneira como se manifesta a relação com a leitura é através da citação fora do contexto. É a mais terrível sobretudo pelo número de pessoas que comenta esse tipo de citações sem o mínimo de preocupação em verificar o contexto. Suponhamos que o ex-Presidente da República, Joaquim Chissano, é citado nos seguintes moldes numa notícia:
“Desta feita, o governo deve manter a sua atitude, mesmo sabendo destas coisas todas, porque o desejo dos moçambicanos é evitar quaisquer baixas entre a população ou em propriedades, porque afinal a propriedade do Estado é da população e a Renamo quando destrói coisas não se lembra disso, que são os impostos das pessoas que contribuíram e construíram os bens. Muita gente da Renamo orgulha-se de ter feito curso superior, mas estudou em universidades do Estado e mesmo as universidades privadas existentes no país foram possibilitadas pela governação existente no país, mas eles se esquecem disso”, sublinhou Chissano. O ex-presidente disse ainda que “eles comem porque há camponeses que produzem, mas são esses camponeses que eles matam”. Existem no país camionistas que transportam produtos de um lado para o outro, desde o material de construção, até de estradas que muitas vezes, segundo Chissano, ficam paralisadas porque há ataques e no fim os prejuízos recaem sobre a população.”.
Depois aparece alguém no Facebook com a seguinte pergunta: “Chissano deve alguma coisa ao governo colonial?” numa clara descontextualização da citação, mas uma descontextualização que não vai impedir ninguém de comentar com profundo conhecimento de causa sobre o estado psíquico do ex-estadista. Não inventei o caso. Aconteceu aqui no Facebook e valeu-me muitos insultos por ter chamado atenção a isso. Não culpo quem citou mal. Culpo quem não teve a preocupação de procurar conhecer o contexto em que essa afirmação foi feita antes de emitir opinião a favor ou contra.
Tinha que terminar o ano com um texto longo. E para o número de coisas que ainda teria por dizer é bem curto. Gostaria de ter escrito um texto a lamentar a escolha de “figura do ano” pelo jornal Savana, uma autêntica afronta à paz e à democracia, mas profundamente reveladora do fenómeno da única causa: como a causa de todos os nossos problemas é a Frelimo tudo o que irritar a Frelimo vale, nem que com isso se dê corda aos piores instintos políticos. Gostaria de ter escrito um texto sobre aqueles compatriotas que acham que acham serem meros espectadores, tipo que se batam eles que eu estou aqui na plateia para ver. Gostaria de ter incluindo tanta coisa, mas não dá, claro, é preciso tentar ser conciso (faz parte da cultura de debate…). Eu acho que continuamos mal. Os meus votos para o ano que vem é que haja mais gente com espírito de Tolstoi na nossa esfera pública. Não o Tolstoi religioso que essa é uma forma de fanatismo que mata o debate, mas sim o Tolstoi hostil a única causa. Gostaria de ver no Facebook, pelo menos no meu mural, mais comentários que revelam o esforço dos seus autores de evitarem o conforto da única causa, menos ideológicos e mais contextualizados. Sempre tenho dito que desenvolvimento é a melhoria da nossa competência no debate. E que isso é cidadania. Competência no debate.
Como teria dito a Frelimo gloriosa “Façamos de 2015 o ano da conquista da competência no debate!”.
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