Começaram a ser dados os primeiros passos para o estabelecimento das autarquias locais em Angola. Contudo, como veremos, não se trata verdadeiramente de passos, mas sim de passes de ilusionismo que apenas levam à criação de autarquias-fantasma.
O pacote autárquico apresentado pelo Executivo é composto por um Memorando sobre a Estratégia de Implementação das Autarquias Locais e várias propostas de lei (neste momento, conhecemos seis, mas afigura-se que serão adicionadas mais algumas).
Os elementos essenciais do pacote autárquico constam na Proposta de Lei sobre a Institucionalização das Autarquias Locais, designadamente nos seus artigos 3.º e 9.º. A primeira destas normas estabelece um quadro confuso e arbitrário, em termos territoriais, de escolha faseada dos municípios onde serão institucionalizadas as autarquias locais. Resulta da mesma norma, em conjugação com o artigo 4.º, que competirá à maioria actualmente existente na Assembleia Nacional (i.e. ao MPLA) decidir os municípios onde serão criadas autarquias eleitas pela população.
A segunda norma-chave (artigo 9.º) determina que “o processo de implementação das autarquias locais em todos os municípios do País deve ser concluído num período não superior a 15 anos, após a realização das primeiras eleições autárquicas”. Quer isto dizer que, considerando a previsão de existência das primeiras eleições autárquicas em 2020, o processo estará concluído em 2035.
Em resumo, nuns lugares existirão autarquias locais, noutros demorará mais tempo, competindo à maioria do MPLA definir onde e quando surgirão as autarquias locais. Acresce que este processo de criação de autarquias locais poderá demorar 17 anos e terminar apenas em 2035.
Abstraindo-nos de considerações políticas, há que dizer que esta estruturação jurídica viola a Constituição da República de Angola (CRA) em vários momentos.
Não há gradualismo territorial, mas sim gradualismo nas atribuições
Em primeiro lugar, desconsidera a definição de gradualismo constante do artigo 242.º da CRA. Como já se escreveu, o artigo 242.º contém uma densificação jurídica do conceito de gradualismo, não o deixando como conceito aberto para completo preenchimento por parte do legislador ordinário. Isto significa que a norma constitucional aponta caminhos para o gradualismo, e esses caminhos têm de ser respeitados. O gradualismo, de acordo com a definição constitucional angolana, é composto por quatro elementos:
i) a oportunidade de criação das autarquias;
ii) o alargamento gradual das suas atribuições;
iii) o doseamento da tutela de mérito;
iv) a transitoriedade entre a administração local do Estado e as autarquias locais.
ii) o alargamento gradual das suas atribuições;
iii) o doseamento da tutela de mérito;
iv) a transitoriedade entre a administração local do Estado e as autarquias locais.
Qualquer proposta de lei tem de respeitar estes elementos.
Da sua leitura, verifica-se que o gradualismo permite que a lei determine a oportunidade de criação das autarquias, i.e. quando são criadas as autarquias, mas não permite o alargamento gradual da sua abrangência territorial. Apenas é aceite o alargamento gradual das suas atribuições.
Isto quer dizer que o modelo constitucional impõe que a criação das autarquias seja feita de um modo predeterminado, em que se escolhe o momento da sua criação. Contudo, nesse momento, todas têm de ser criadas. A partir daí, o gradualismo apenas se verifica nas suas atribuições, isto é, naquilo que as autarquias fazem. Como já se escreveu na nota acima mencionada, a CRA não se refere à institucionalização efectiva “de autarquias”, mas “das autarquias” [artigo 242.º, n.º 1]. Nestes termos, a interpretação consonante com a letra da Constituição é de que a criação das autarquias é una. Não há a possibilidade constitucional de criação avulsa de autarquias, mas sim das autarquias. De acordo com esta análise, a CRA obriga a que a lei crie de uma vez cada tipo de autarquias. Se a lei determina que é oportuno criar uma autarquia, então criam-se todas as autarquias em termos territoriais. Não existe a possibilidade de criar umas e não outras.
Obviamente, esta interpretação relaciona-se com o segundo elemento, que prevê o alargamento gradual das atribuições das autarquias. Quer isto dizer que a lei obriga a criar toda uma categoria de autarquias (por exemplo, municípios) e depois pode ir estendendo as suas competências (primeiro saúde, depois transportes, etc.).
A CRA faz distinção relativamente ao alargamento gradual das atribuições das competências, mas não faz distinção relativamente ao alargamento gradual do território de implementação autárquica.
Seguindo a velha norma romana de interpretação “ubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemus”. Onde a lei não distingue, não devemos nós distinguir. A contrario, onde distingue, devemos fazê-lo.
Ora, a CRA não distingue autarquias em termos de criação territorial, apenas distingue e define a possibilidade de se ir paulatinamente cedendo competências do Estado central para o poder local. Se é assim, não pode o legislador ordinário “inventar” distinções e criar procedimentos não previstos na CRA.
Assim, o gradualismo territorial é inconstitucional, uma vez que não está previsto na definição constitucional de gradualismo. Apenas está prevista a decisão legal da oportunidade da criação global das autarquias e o gradualismo na extensão das atribuições.
Concluindo, o comando constitucional sobre o gradualismo está razoavelmente fechado e determinado em termos hermenêuticos, criando no legislador ordinário um caminho de obrigatória concretização que permite a concessão faseada de poderes aos municípios, mas não o seu faseamento territorial. E é isso que tem de ser cumprido.
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