Em muitos países, os cidadãos devem registarse para poderem exercer o seu direito de voto. Esse registo, conhecido como recenseamento eleitoral, é fundamental para o decurso de todo o processo eleitoral. Ao circunscrever o universo de eleitores, o recenseamento eleitoral é a base para a distribuição de assembleias de voto, para além de que, em sistemas de representação proporcional, determina o número de mandatos por cada círculo eleitoral. Os governantes, os partidos políticos, os investigadores, entre outros actores, também usam a informação recolhida durante o recenseamento. Os investigadores, por exemplo, produzem estudos, fazem simulações e sondagens. Os partidos políticos servem-se dessa informação para prepararem as suas actividades políticas, incluindo as campanhas eleitorais, enquanto, em determinados contextos, como os que conciliam dados do registo civil com os do registo eleitoral, os governantes planificam a alocação e a distribuição de bens e serviços públicos. Por estas razões, um bom recenseamento eleitoral contribui para a integridade do sufrágio e, com ela, para a legitimidade da democracia e a estabilidade política de um país. Pelo contrário, um recenseamento defeituoso não só descredibiliza os órgãos de gestão eleitoral, mas todo o processo eleitoral, criando condições para eventuais focos de tensão político-eleitoral, tal como sucede em Moçambique. Em Moçambique, é precisamente na fase do recenseamento que começam os problemas do processo eleitoral, muitos dos quais têm sido sistematicamente reportados em relatórios de organizações da sociedade civil nacionais e internacionais e nos acórdãos do Conselho Constitucional. Nas notas que se seguem retomamos parte desses problemas, destacando os que foram recorrentemente abordados aquando da realização do trabalho de campo no âmbito da pesquisa sobre a abstenção em Moçambique1.
Problemas que persistem Desde a abertura do país à democracia multipartidária, no inicio da década de 1990, já se realizaram cinco eleições legislativas e
presidenciais, duas eleições provinciais, e quatro eleições autárquicas. No mesmo período, ocorreram vários recenseamentos supostamente de raiz, com actualizações regulares para cada ciclo eleitoral. Contudo, a credibilidade desses processos é sempre posta em causa, sobretudo pela Renamo e por parte das organizações da sociedade civil. Os recenseamentos são frequentemente descritos como sendo pouco abrangentes, dado que, segundo aqueles, marginalizam eleitores das zonas com maior influência da Renamo. A Renamo alega que os problemas reportados nos seus “bastiões” enquadram-se numa estratégia política do partido no poder que, através dos órgãos de gestão eleitoral, procura obstruir a participação dos seus eleitores no processo de votação e, dessa forma, limitar a eleição dos seus candidatos. Porém, apesar de existirem algumas evidências de parcialidade na actuação dos órgãos de gestão eleitoral2, nem todos os problemas que ocorrem durante o recenseamento têm um cunho político. Parte significativa resulta de questões organizacionais e técnicas, que também se verificam nas zonas de maior influência da Frelimo. Mas, dada a grande polarização e tensão política, às quais se agrega a desconfiança nas instituições do Estado, estas questões são negativamente politizadas, manchando os diferentes sufrágios.
Questões organizacionais e técnicas Em Moçambique, há locais que permanecem dias e, por vezes, semanas, sem que se efectue o recenseamento eleitoral, apesar do inicio oficial do processo em todo o pais. A disponibilização tardia dos kits do recenseamento é parte das causas desta “exclusão”. Outros factores incluem a falta de energia eléctrica e de painéis solares, as avarias dos geradores e do material informático, para além da fraca capacidade de manuseamento destes materiais por parte dos brigadistas. Alguns brigadistas, sobretudo dos distritos mais recônditos do país, enfrentam grandes dificuldades na execução de tarefas aparentemente simples, como é o caso da
digitação dos nomes dos eleitores e impressão dos cartões, chegando a duplicar estes últimos, por vezes com erros. Segundo um ex-funcionário do STAE em Manjacaze, alguns brigadistas não conseguem sequer retirar um papel encravado numa impressora e, por causa disso, interrompem as actividades de recenseamento por períodos relativamente longos, alegando deficiências no funcionamento do material. De acordo com aquele ex-funcionário, a interrupção dura até que chegue um técnico proveniente de Manjacaze, ou da cidade de Xai-Xai, que “ tem que percorrer até cerca de 40km só para retirar um papel da impressora”3. Os eleitores, que chegam a percorrer mais de 15km para chegar aos postos de recenseamento, são surpreendidos com a paralisação do processo e frequentemente retornando para casa sem se recensear. Há registo de eleitores que só conseguiram recensear-se depois de se dirigirem aos postos de recenseamento mais de três vezes. Há outros que, depois de duas ou três tentativas frustradas, optaram por desistir do processo, e, dada a comunicação que existia entre eles e outros cidadãos, repassaram a informação sobre a paralisação, o que desincentivou os outros. Mas os constrangimentos também se devem a factores associados à questão da calendarização do processo.
O calendário eleitoral Durante as primeiras etapas do ciclo eleitoral, os órgãos de gestão eleitoral são submetidos a uma enorme pressão, dado que, num espaço de tempo relativamente curto, devem executar simultaneamente um conjunto de actividades, que vão desde a distribuição dos equipamentos e materiais para o registo eleitoral, a formação do pessoal, a realização de campanhas de educação cívica, até à produção e disponibilização dos cadernos eleitorais. A ocorrência de erros é inevitável nesta fase, mas poderia ser minimizada através de uma planificação mais realista e tendo em conta as especificidades de cada contexto. A qualidade do pessoal é uma das componentes mais afectadas pelo facto de o calendário
Egídio Chaimite
IESE - Instituto de Estudos Sociais e Económicos; Av. Tomas Nduda Nº1375, Maputo, Moçambique Tel: +258 21 486043; Email: iese@iese.ac.mz; http://www.iese.ac.mz Isento de Registo nos termos do artigo 24 da Lei nº 18/91 de 10 de Agosto
eleitoral ser compacto. Nestas circunstâncias, a formação é intensiva, havendo situações em que não vai para além de uma semana, tal como sucede com os agentes de educação cívica. No caso dos brigadistas, este problema é particularmente preocupante, pois parte deles é recrutado sem que tenha experiência no manuseamento de computadores, o que faz com iniciem as actividades sem que estejam devidamente habilitados, decorrendo daí os inúmeros problemas que mencionamos anteriormente. Outro aspecto a ter em conta é o da época em que algumas actividades são agendadas. Nas eleições de 2014, o recenseamento eleitoral estava marcado para o período de Janeiro a fim de Abril, coincidindo, portanto, com o período de pico das chuvas, que normalmente ocorre nos primeiros três meses do ano. Nesses períodos, as vias de acesso de algumas regiões do país encontram-se bloqueadas, obrigando as autoridades eleitorais a encontrar meios alternativos para a distribuição dos kits de recenseamento, o que muitas vezes é mais oneroso e nem sempre é eficaz. Este foi o caso, por exemplo, nos distritos de Machaze e Mossurize na província de Manica, onde, por causa da intransitabilidade das estradas, as brigadas só chegaram a entrar em funcionamento uma semana depois do arranque do recenseamento.
Brigadas móveis As brigadas móveis são uma solução que se transformou em problema. Com elas pretendia-se responder à questão das longas distâncias que os eleitores têm percorrido para se recensear, mas, por vezes, essas brigadas geram confusão entre a população, incluindo nos bastiões da Frelimo, como é o caso da província de Gaza. Nesta província, mais concretamente no distrito de Manjacaze, notou-se que a necessidade de cumprimento das metas tem forçado os brigadistas a se deslocarem de forma improvisada para locais onde consideram existir eleitores ainda não recenseados. Noutras circunstâncias, a movimentação das brigadas de recenseamento é solicitada pelas lideranças locais, ou pelas populações, sem, contudo, estarem previamente planificadas, o que contraria as alegações da direcção do STAE no distrito segundo as quais há uma pré-definição dos locais de “fixação” daquelas brigadas. No “novo local”, as brigadas móveis permanecem até dois dias, e, normalmente, acabam abrangendo um número considerável de eleitores que, sem essa aproximação, fica excluída dos registos dada as dificuldades de deslocação dos
idosos e doentes e/ou a desmotivação, sobretudo dos jovens, que se sentem pouco atraídos pelos processos eleitorais. Entretanto, apesar dessa abrangência, a desmotivação dos ”últimos recenseados”, como alguns se intitulam, prevalece, mesmos depois da obtenção dos cartões de eleitor. Alguns destes, recenseiam-se porque precisam dos cartões como alternativas ao Bilhete de Identidade, que consideram caro e inacessível. Ora, parte significativa dos eleitores recenseados nestas circunstâncias acaba não aderindo ao processo de votação, pois, se por um lado a sua abrangência só é possível com a deslocação das brigadas móveis, o que já não sucede no dia do sufrágio, por outro, durante o recenseamento, alguns não são devidamente informados sobre o local onde devem proceder à votação. Esta confusão é ilustrada pelo facto de que, já no dia de votação, alguns eleitores se aglomeram desde as primeiras horas nos locais onde anteriormente se fixaram as brigadas móveis e, portanto, fizeram o seu registo. As populações permanecem nesses locais durante horas, até que, finalmente, recebem a informação da não existência de mesas de votação, geralmente por um membro da liderança local. Há casos em que os próprios líderes locais não têm informação prévia sobre a localização das mesas e, por isso, tal como os demais eleitores recenseados nas brigadas móveis, permanecem nesses locais até que outras entidades os esclareçam sobre a situação. Mas há ainda situações em que a informação sobre a indisponibilidade de mesas só é dada aos líderes no dia anterior ao da votação, tal como aconteceu em Baule, povoação pertencente ao posto administrativo de Chidenguele, em Manjacaze. Tal como nos outros casos, os líderes são incapazes de canalizar essa informação a todos os eleitores a tempo de evitar problemas no dia de votação.
Que alternativas? Apesar destes problemas, o balanço dos recenseamentos desde 1994 é sempre positivo, pelo menos no concernente ao alcance das metas, que se situam sempre acima dos 80%. Contudo, o “optimismo das metas” esvai-se pouco depois da realização do processo de votação, que, à excepção das primeiras eleições gerais, é sempre marcado por elevados níveis de abstenção. Como melhorar a qualidade do recenseamento? Paralelamente, como fazer com que os eleitores recenseados adiram, de facto, ao processo de votação? A resposta passa pela credibilização dos processos e dos órgãos de gestão eleitoral, o que implica um maior envolvimento das comunidades
locais, dos partidos políticos e dos demais actores em todas as etapas dos processos eleitorais. Como já foi amplamente abordado, importa investir mais na formação dos brigadistas e dos agentes de educação cívica e adoptar práticas de gestão mais transparentes, incluindo, para o caso dos recenseamentos, a disponibilização atempada das listas eleitorais, a auditoria independente dos sistemas informáticos e a divulgação dos respectivos relatórios e a regulamentação do processo de observação eleitoral. Igualmente, já se referiu a importância do alargamento do calendário eleitoral e, com ele, do período do recenseamento eleitoral. Nestas notas, insistimos nos dois últimos aspectos e propomos que o recenseamento seja permanente, com actualizações periódicas. Ou seja, os eleitores passam a recensear-se em brigadas fixas, em qualquer época do ano, fora e durante o período eleitoral, podendo assim verificar e corrigir eventuais erros com mais tempo e facilidade, sem as grandes pressões típicas dos períodos eleitorais. Esta situação implicaria a eliminação da sazonalidade do STAE nos distritos, que poderia funcionar com um número de brigadistas bastante reduzido, mas com melhor formação e experiência e, se necessário, acrescentar outros, especificamente contratados para os períodos eleitorais. Para o caso dos brigadistas contratados, pode-se recorrer a professores e outros funcionários e agentes do Estado, como forma de paliar o défice de pessoal qualificado nalguns distritos e garantir que se tenha sempre disponíveis quadros com experiência. Obviamente, o que se propõe extravasa as competências dos órgãos de gestão eleitoral e pressupõe a intervenção de outras instituições, como é o caso do Parlamento, ao qual cabe, entre outras funções, a aprovação da lei eleitoral. Desta instituição, espera-se mais celeridade no debate, harmonização e aprovação da legislação eleitoral, dado que, até ao presente, a falta de consensos entre os principais partidos nele representados atrasa a disponibilização daqueles importantes instrumentos normativos, o que impacta sobremaneira na programação das actividades eleitorais e no desempenho dos órgãos de gestão eleitoral. Ainda no âmbito da articulação inter-institucional, urge que se aprofunde a reflexão sobre a possibilidade de fusão do registo eleitoral com o registo civil e se oficialize o que, de facto, os cartões de eleitor já são nos distritos: documentos de identificação, que até são exigidos em instituições do Estado para o acesso a certos serviços públicos.
1.A pesquisa sobre a abstenção foi desenvolvida pelo IESE, entre meados de 2014 e finais de 2015, e procurou compreender os factores que influem na decisão de participação ou abstenção eleitoral no país, tendo em conta a relação entre o Estado e o cidadão. 2.Ver “Revisão da legislação eleitoral: algumas propostas para o debate”, In Brito, L., et al (2011). Desafios para Moçambique 2011. Maputo: IESE, pp. 91-107. 3.Entrevista com Jonas, ex-funcionário do STAE distrital de Manjacaze. Manjacaze, 30 de Junho de 2015.
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