25.04.2017 às 8h00
O pássaro que nasce livre não sabe o que é cativeiro. Hoje é o dia 25 de Abril. Ou ontem. Ou amanhã. Não interessa. As pessoas fizeram planos para o intervalo sem trabalho. O tempo estará bom? Um areal na Grécia ou no Brasil, uma escapada, como lhe chamam os operadores turísticos, a Roma ou a Londres, uma viagem à Ásia compensada por uns dias de férias, uma semana numa pousada ou nas termas, uns dias na praia
Não deveria estar a escrever sobre a liberdade e a revolução? O cravo vermelho? A grilheta rebentada pelos militares de que ninguém se lembra a não ser eles mesmos e o grupo de saudosistas e esquerdistas que desfila pela Avenida da Liberdade com a lágrima seca no olho? Um jovem pensa na data de 25 de Abril e pensa em lazer, em noitada, em alegria sem horário, que são componentes químicos da liberdade. Um dia, esta data, e todas as datas são uma abstração, algarismos sem pertença, será igual à de 1640, valorosamente intitulada da Restauração. E um dia, quando o mundo contemporâneo desta data de 1974 estiver morto e enterrado há várias gerações, alguém dará a sugestão. A data deve deixar de ser feriado porque ninguém precisa de feriados para nada. Isto no caso do planeta ainda ser vivo. Portugal terá outras preocupações. O mundo terá outras preocupações. À velocidade acelerada a que caminhamos, muitas das coisas que agora nos parecem sólidas serão gasosas, diáfanas como a fantasia. Nesse dia, quando ninguém precisar de desfilar para lembrar o 25 de Abril, quando ninguém conseguir imaginar a esterilidade do passado, o colonialismo, a guerra, o salazarismo, a prisão política, a tortura da dissidência, a resistência à ditadura, nesse dia em que ninguém se lembre a que cheira o mofo, nesse dia o 25 de Abril terá cumprido a missão e poderá desaparecer como símbolo dos dias de veraneio que precedem a semana do primeiro de Maio.
Ou pode acontecer o contrário. Pode correr mal. Pode ser que a democracia deixe de ser um cravo e passe a ser uma carcaça, pode ser que os prisioneiros políticos regressem às celas, pode ser que novas guerras empestem o ambiente, pode ser que passemos a frequentar a liberdade na forma de saudade, que parece letra de fado faduncho. Pode ser, enfim, que outro pássaro nasça na gaiola.
Em todo o caso, o nome é importante. Deixemos a data de lado e lembremos o nome, é um bom nome. Eu, por exemplo, passei anos sem indagar quem era o Lourenço Marques. Devem ter-me dito na escola, o Lourenço Marques era um grande explorador português que no século XVI comandou as expedições na costa de Moçambique e que chegou ao rio Limpopo, onde tratou com os indígenas a que hoje chamaríamos moçambicanos. Maputo era nome de rio e na baía do mesmo nome se instalou o colono, dedicado ao cobre e ao marfim segundo relato de D. João de Castro (e este quem é?). O senhor dos territórios acabou por dar o nome aos territórios. Por ordem de D. João III, rei de Portugal, a baía ficou de Lourenço Marques em homenagem ao dono e daí nasceu a capital de Moçambique colonial. No continente, as crianças aprendiam o nome da cidade mas não ligavam, como todas as crianças, ao explorador que dera o nome à cidade e que era, na versão verdadeira e não empolada da realidade, um verdadeiro explorador, no pior e mais colonial sentido do termo. Se há um colonialismo que nos deve envergonhar é o dessa terra e desse povo de Moçambique, tão suave e sofrido. Coisas da História, e a História em Portugal tem má reputação.
Temos tendência a ignorar o passado, qualquer versão do passado, e a substituí-lo rapidamente. O 25 de Abril, uma revolução rápida e sem sangue, substituiu um regime por outro, e deu aos portugueses a oportunidade de fecharem as portas de um império anacrónico que no tempo em que por ele ou contra ele se combatia, se desconhecia. Salazar preferia o calor da manta e do fogareiro ao dos trópicos onde não punha os pés. Os do continente nada sabiam sobre as colónias e os das colónias achavam o continente estreito e com falta de horizonte. A fissura nunca foi resolvida nem tinha de ser. As terras largas de África não nos pertenciam na segunda metade do século XX e tínhamos que as devolver aos donos legítimos. Na segunda metade do século XX, os indígenas já não eram indígenas em nenhum lugar civilizado do mundo ocidental. Alguns frequentavam as universidades de Lisboa. Foi também para isto, para deixarmos de ser o último império e o último opressor de povos, os das colónias e o do continente, que se fez o 25 de Abril. Os militares estavam cansados de uma guerra incompreensível. Não importa que não saibamos quem era Lourenço Marques desde que os Lourenços Marques deixem de ser os donos de terras e gentes que não são suas, nomeando-as para sempre. Ninguém é dono de ninguém.
Viver num país onde ninguém é dono de ninguém e onde não somos obrigados a ser donos do que quer que seja significa viver longe da tirania. Imaginem um país coberto por um sudário ao som dos tiros de espingarda. Era isso Portugal nas décadas que precederam a revolução. O Portugal onde ninguém sabia quem era Lourenço Marques. Da ditadura ficou-nos a mania do eufemismo, de que ainda não nos libertámos.
E a culpa não é do 25 de Abril.
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