XIPIKIRI
De cócoras, pose de gafanhoto, entre uma moita e a vedação em arame farpado, a figura do ano soltou o olhar como se dos olhos lhe saltassem dois pirilampos ansiosos, enamorando o escuro da noite. Era pré adolescente, com pouca idade mas muita história, a quem a vida vem empurrando para rumos opostos aos que sonha.
Entre as distrações, ia vigiando o escuro que o rodeava: os bichos, os xipocos e os guerrilheiros que nas sombras do mato se subentendia. Ignorou o medo, por hábito ou falta de alternativa. Continuou de cócoras.
Passou a mão pelos fios frios da vedação como quem acaricia as cordas femininas de uma guitarra. Imaginou a música que seria dedilhar aqueles fios, numa viola com cordas em arame farpado, a castigar-lhe as falanges. Se quisesse música ali teria de sangrar. Sangue. Guerra. Maldita guerra! Virou-se para vigiar o escuro, com medo que um cano espreitasse da penumbra do mato e cuspisse, com desprezo, o fogo da guerrilha. Voltou a olhar para as farpas enroladas no arame da vedação. Viu-se no lugar daquelas farpas: parecia-lhe gente num espeto condenado ao fogo.
Nos pés curtos, mas de longa quilometragem, sentiu uma leve carícia, quase cócega. Olhou sem sobressalto. Quem atravessou os labirintos da guerrilha não se assusta com coisas rasteiras. Eram escaravelhos a precipitarem-se para a refeição quente. Continuou de cócoras.
As nuvens dispersavam a luz do céu. O vento parecia cansado de ter andado o ano todo a soprar, engonhava como um funcionário que se arrasta pelas repartições a resmungar pelo décimo terceiro. Soprou levemente, como se quisesse esvoaçar a última página de um calendário. O tempo deu a cambalhota para o ano novo. O vento calou-se. De resto só se ouvia o silêncio. No mato o silêncio tem a voz dos insectos estridentes, algumas aves nocturnas, um mosquito a passear pelo pavilhão do ouvido e a vegetação a tiritar quando o vento quer.
Os sons distantes do fogo-de-artifício, em celebração do ano novo, lembravam disparos e reavivaram os traumas da guerra. Assustado, higienizou-se às pressas, deslizando pelo chão. Esfregou-se primeiro no capim e depois na areia. Puxou os calções ao mesmo tempo que se levantava num salto. Não cobriu as fezes em respeito aos chifufununos, os escaravelhos. Regressou à tenda de acampamento dos refugiados, movido pela ilusão de quanto mais próximo dos outros, mais seguro estaria.
Na tenda um mosquito resmungava, aos zumbidos. Alguém com as vísceras cansadas, tosssia. Uma criança sem lágrimas chorava, mastigando um seio em estiagem. Um rádio forçava quatro pilhas recarregadas ao sol. Uma voz no noticiário anunciaria, mais tarde, que um simples telefonema bastou para pôr tréguas na guerrilha que anos de conversações não resolvem.
Começou a chover, os pingos salpicaram como se Tom Jobim e Elsa Mangue, num dueto de amolecer corações, espalhassem notas musicais pelo chão. A chuva deslizou pela tenda do acampamento adentro, onde as camas são o chão, e empapou a todos. Ninguém viria acudi-los porque, como falaram na rádio, não existem refugiados. A figura do ano sentou-se encostado ao enorme pilar da tenda. Sentiu na face a água que lhe molhava os calções e percebeu que a chuva é uma enorme lágrima de deus.
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