domingo, 4 de dezembro de 2016

“O professor Oliveira Salazar não era um fascista”

Rui Salazar de Mello. “O professor Oliveira Salazar não era um fascista”

04 Dezembro 2016
É o último dos herdeiros de Oliveira Salazar. O sobrinho-neto diz-se "perseguido pela democracia" após o 25 de Abril. E nega que o Estado Novo tenha sido uma ditadura e o tio-avô um fascista.
Não era avô. Mas Rui Salazar de Mello tinha-o como sendo um. António de Oliveira Salazar era o irmão da avó materna. E padrinho da mãe. O pai de Rui foi médico de Salazar, “que sofria muito da garganta”. A separá-los, uma vida. Ou quase. Na infância de Rui, Oliveira Salazar presidia ao Conselho, durante o Estado Novo. Visitou muitas vezes o tio-avô em São Bento. E encontravam-se os dois no Vimieiro, a terra onde Salazar nasceu, ora nas férias da escola, ora no aniversário do homem mais ilustre da terra, a 28 de abril.
Diz do tio-avô que era “terno” com ele. E guarda ainda consigo o primeiro presente que este lhe ofereceu. “O meu avô materno morreu cedo e mal o conheci. Então, tinha o professor Oliveira Salazar como um. Mas nunca o tratei por avô. Tinha-lhe muito respeito e tratava-o por professor. Ele sempre foi um homem terno comigo. Certo dia, e como ele sabia que eu gostava de animais – e ele também –, ofereceu-me uma perdiz. Não era verdadeira. Era só uma estátua. Mas como eu era criança, acreditava que sim, que era mesmo uma perdiz. Tinha uns olhinhos de vidro. Ainda a tenho em casa”, recorda.
Rui Salazar de Mello cresceu e viveu parte da vida em Coimbra. Estudaria em Lisboa. Hoje vive no Vimieiro, em Santa Comba Dão, na casa que fora dos pais de Salazar e onde este passava férias. À avenida (de poucas casas e pouca ou nenhuma gente na rua, uma pacatez que só os carros desassossegam de quanto em quando) foi atribuído o nome do ditador. Tudo nela, e não apenas no n.º 46 onde Rui vive, evoca Salazar: há o lugar onde este nasceu em 1889, recuperado e onde à entrada se lê que é a casa de um “senhor que governou e nada roubou”; há a escola onde estudou e à qual foi igualmente atribuído o nome de Salazar; há um armazém (do sobrinho-neto Rui) onde se amontoa a mobília da casa onde Salazar vivia quando estudava em Coimbra.
"O professor Oliveira Salazar era um homem religioso. Muito religioso. Mas praticava a religião longe dos olhos do mundo. Ele sempre deu muitas esmolas a gente que precisava."
A vinha que fora de Oliveira Salazar ainda lá está, hoje a produzir menos (ou quase nada) do que outrora. “Quando é que você nasceu? Talvez tenha por aqui uma garrafinha do seu ano e depois envio-lha pelo correio. Ora escreva-me aí o seu endereço”, começou por atirar Rui Salazar de Mello, sentado na sala de casa, num velho sofá onde se lhe afunda o corpo, ao lado de um “altar” sobre o qual estão pousadas figuras religiosas, Jesus Cristo, a Virgem Maria, lado a lado com um busto de Salazar. “Olhe aqui! Sabe o que é isto?”, pergunta Rui, enquanto folheia documentos antigos, de papel algo amarelado, visivelmente gasto, até corroído, mas legível ainda. E, então, lê. Quase telegraficamente: “Federação de Vinicultores do Dão. 1 de novembro de 1944. António de Oliveira Salazar. Branco: 260 litros. Tinto: 3.150 litros.”
A velha casa guarda ainda as histórias de quem lá viveu um dia. Sobretudo as de Salazar. O sobrinho-neto conta-as. Nas paredes da sala, por exemplo, estão pendurados três quatros, religiosos, e envolve-os uma moldura em madeira, escura, trabalhada e fina. Destoam. Eram de Oliveira Salazar, como quase tudo. E vieram diretamente de São Bento, após a morte do presidente do Conselho. “Representam a Santíssima Trindade. Olhe com atenção: estão assinados pelo próprio cardeal Cerejeira. Foram oferecidos para dar proteção à casa do presidente do Conselho. O professor Oliveira Salazar era um homem religioso. Muito religioso. Mas praticava a religião longe dos olhos do mundo. Ele sempre deu muitas esmolas a gente que precisava. Tinha princípios morais. Foi o Marcello Caetano que ligou para os herdeiros quando ele morreu e disse-lhes para retirarem de São Bento os bens. E vieram para a casa do Vimieiro”, conta.

O peso de um apelido maldito. Sobretudo após a revolução

António de Oliveira Salazar morreria em 1970. O sobrinho-neto guarda o jornal O Século de 27 de julho, o dia do seu falecimento. Adolescente, Rui esteve presente no velório em Lisboa e, mais tarde, no enterro em Vimieiro. “Senti uma pena imensa. Naquele dia morreu mais do que o professor Oliveira Salazar: morreu o meu avô. Mas tenho a certeza que ele, onde quer que esteja, continua a zelar por mim. E por Portugal também”, explica.
À morte do ditador seguir-se-ia, anos depois, a revolução do 25 de Abril. O apelido que Rui ostentava, persegui-lo-ia então. Ainda persegue. “Fui perseguido, sim. Fui marginalizado. E posso até dizer que sou uma vítima da democracia que chegou depois do 25 de Abril.” À época, era universitário em Lisboa. “Nós tínhamos que fazer trabalhos de grupo e os colegas recusavam-se a trabalhar comigo”, conta. Não temia pela vida. Temer, só temeu anos mais tarde, no Vimieiro, na casa onde vive.
Mal se entra na sala, e olhando em redor, o que salta à vista é um gradeamento, negro, de aço, que envolve toda a porta. É quase como se se entrasse num cofre-forte. Durante a noite o gradeamento é fechado à chave. Rui Salazar de Mello fá-lo para se proteger. “Certo dia, à noite, entraram-me dois homens em casa. Rebentaram a fechadura e entraram. Estiveram nesta sala onde estamos agora a conversar. E cheguei a ouvi-los dizer um para o outro: “Ele está cá, ele está cá!” Continuei no quatro, deitado, aqui mesmo ao lado. Eles vinham para me fazer mal. Tenho a certeza. Por sorte, um carro fez barulho na rua, eles assustaram-se e fugiram. Depois disso, tive que mandar pôr as grades na porta.”
MICHAEL M. MATIAS / OBSERVADOR
Rui Salazar de Mello adotou três crianças, hoje adultos. Não herdaram os apelidos Oliveira e Salazar. A “perseguição” não chegaria a eles. “Não, eles não têm os apelidos. Mas estudaram e, estudando, tiveram oportunidade de tirar as conclusões que tinham a tirar [sobre quem foi Salazar e a ditadura]. As conclusões reais! Não as conclusões que se contam nos livros de história e na escola. Eles têm orgulho de pertencer à família dele [Oliveira Salazar]”, garante.

“Morria mais gente nas estradas do que na Guerra Colonial. Foi por causa disso que se fez o 25 de Abril?”

A pergunta é delicada. Ou melhor, fazê-la ao sobrinho-neto de Salazar pode torná-la delicada. “Quer perguntar, pergunte. Vai-me perguntar se ele foi um ditador? Um fascista? Eu respondo-lhe: não foi.” Porquê? “O fascismo foi em Itália. Nunca chegou cá a Portugal.” Mais fascista ou menos fascista do que em Itália, o Estado Novo tinha uma polícia, a PIDE, a qual usou politicamente durante toda a ditadura, uma PIDE que prendia e torturava, que matou, que silenciou pelo medo, que desprezava a liberdade individual e os direitos fundamentais. E isso é ditatorial. Não? “Não. Claro que não é verdade. Eu sempre ouvi dizer que Portugal era uma ditadura e que a PIDE fazia mal às pessoas. Mas isso está mal contado. Não acredito que a PIDE tenha feito tudo o que dizem que fez. Cheguei a ter conversas com gente que trabalhou na PIDE. Eles contavam-se que o que faziam era dizer às pessoas que as maltratavam se elas não dissessem o que tinham a dizer. Não acredito em torturas. Nunca torturaram ninguém”, defende.
O tema “ditadura” é desconfortável a Rui Salazar de Mello. Mas contrapõe sempre. Do analfabetismo, com uma das taxas (acima de 75% para as mulheres e 70% para os homens) mais altas na Europa à época, diz que foi “uma escolha”. E explica: “Havia muito analfabetismo durante o Estado Novo? Sim, havia. Mas o regime não tinha culpa nenhuma. O regime fez escolas. Todas as aldeias tinham escolas. Aqui no Vimieiro até havia mais do que uma. As crianças não iam à escola por causa das famílias, que não queriam. A escolha é das famílias.”
"O professor Oliveira Salazar bem avisou: quando perdêssemos as colónias, estávamos perdidos economicamente. O resultado está à vista de todos. Se ele estivesse vivo, o 25 de Abril nunca tinha acontecido."
– Você sabe porque é que se fez o 25 de Abril? Diga lá a razão… [Pausa] Foi para acabar com a Guerra Colonial? – pergunta, retoricamente e de chofre, Rui.
O sobrinho-neto de Oliveira Salazar não aceita a razão. Para ele, o 25 de Abril “foi mau” para Portugal. “Você sabe que durante o Estado Novo a economia crescia 7% todos os anos em Portugal? O 25 de Abril veio acabar com isso. A maior parte dos políticos a seguir ao 25 de Abril são uns traidores! Os mortos durante a Guerra Colonial não são razão para se fazer o que se fez. Durante esse período [1961-1974], houve mais mortos nas estradas portuguesas do que na guerra. O professor Oliveira Salazar bem avisou: quando perdêssemos as colónias, estávamos perdidos economicamente. O resultado está à vista de todos. Se ele estivesse vivo, o 25 de Abril nunca tinha acontecido”, explica.

A herança do ditador em tribunal. O sobrinho-neto exige uma renda para ter “uma velhice com dignidade”

MICHAEL M. MATIAS / OBSERVADOR
Quando Rui Salazar de Mello morrer, morre o últimos dos herdeiros de Salazar. Tem hoje 63 anos. Sobrevive com uma pensão de invalidez, “menos do que um salário mínimo”, que recebe mensalmente das Forças Armadas. Também por isso, pela pobreza em que vive – “Só como uma vez por dia!”, conta – e por querer que a memória (e o espólio) de Salazar não desapareça ao morrer, levou a Câmara Municipal de Santa Comba Dão a tribunal. Exige-lhe uma pensão mensal e vitalícia, “para ter uma velhice com dignidade”.
Mas a história é antiga. E envolve a doação da herança (parte dela foi depositada e não doada) do ditador à autarquia. E enumera: “É sobretudo material filatélico, numismático, medalhístico, objetos, revistas, jornais, documentos, mapas e livros. Tudo do professor Oliveira Salazar. Valerá, pelas minhas contas, 324 mil euros. E o que peço é uma contrapartida por esse depósito e essa doação.”
Quando recebeu a herança de Salazar, o sobrinho-neto dividiu-a em três quinhões. “E pensei: um deles há-de ser para a Câmara Municipal de Santa Comba Dão. Afinal, o professor Oliveira Salazar é de Santa Comba Dão, nasceu no Vimieiro, e um quinhão tinha que ser para o concelho. Nessa altura fiz uma doação. Outro quinhão dei-o à Universidade Católica de Viseu — essencialmente livros e correspondência. O terceiro quinhão ficou comigo.” Mais tarde, Rui depositaria na Câmara mais herança. “Entreguei seis depósitos à Câmara. Dois em 2007, dois em 2008 e outros dois em 2009. Depositei-os de boa fé”, garante.
Em tribunal, a Câmara Municipal de Santa Comba Dão garantiu que as caixas entregues por Rui Salazar de Mello não chegaram a ser abertas. Mas acatou a decisão da juíza. Até ao começo do ano, terá que avaliar o conteúdo — “com um valor histórico para Portugal”, assim foi definido no Tribunal de Viseu — destas e, seguidamente, definir uma renda a pagar mensalmente a Rui. “Sinto-me feliz com a decisão da juíza. Mas eles [Câmara Municipal] não pensem que vão avaliar mal. Não aceitarei que me paguem uns tarecos por aquilo. Eu quero estar presente — com a advogada — na avaliação às caixas”, lembrou.
"Tenho aí umas condecorações que ele [Salazar] recebeu. Mas essas hei-de doá-las ao Museu da Presidência. Tenho a certeza que o Marcelo Rebelo de Sousa as vai querer lá."
— Para que é que lhe vai servir esta renda?
— A primeira coisa que vou fazer é mandar arranjar os dentes. E quero um dia poder ir para um lar.

Uma coisa é certa: em Santa Comba Dão não avançará o Centro de Estudos do Estado Novo. “Quando fiz a doação à Câmara, o presidente da altura disse-me que o Centro de Estudos avançaria — foi também isso que me convenceu a fazer os depósitos mais tarde. Isto em 2006. Esse presidente chegou a dizer que me pagaria 2.000 euros por mês de renda. Agora já só peço mil. Vamos lá a ver… Mas nunca se fez nada. O atual presidente ainda disse que seria em 2017, mas não há dinheiro. É sempre isso que dizem: que não há dinheiro. O que eu penso é que não há vontade de se fazer nada. Têm medo…” Medo? Rui Salazar de Mello explica, revoltado: “Sim. É que quando se falou do Centro de Estudos, apareceram anti-fascistas em Santa Comba Dão a protestar. Então, os presidentes, com medo, vão sacudindo o capote. Mas esses indivíduos que se dizem anti-fascistas nem são de cá. Porque é que não vão fazer barulho lá para a casa deles, lá para a terra deles, e não deixam a memória do professor Oliveira Salazar em paz?”
Durante a entrevista, as mãos trémulas de Rui vão folheando os documentos que guarda do tio-avô. Volta e meia pára e começa a lê-los, vagarosamente, . “Olhe aqui: é uma carta enviada ao presidente do Conselho. Foi escrita por presos. E termina assim: ‘Que Deus abençoe o bem que espalhais. Respeitosamente beijamos vossas mãos!’ O professor Oliveira Salazar foi um homem respeitado por todos, até presos. Tenho aí umas condecorações que ele recebeu. Mas essas hei-de doá-las ao Museu da Presidência. Tenho a certeza que o Marcelo [Rebelo de Sousa] as vai querer lá — o pai dele foi Governador-Geral de Moçambique durante o Estado Novo. À Câmara não entregarei mais nada. ”
Rui Salazar de Mello fecha o dossier onde arquivou os documentos que herdou do tio-avô.
– Que horas são? Quase uma da tarde?! O melhor é irmos almoçar ao Típico, se não depois não há tacho!
Almoça no restaurante — não muito longe de casa — todos os dias. É dele a mesa que está reservada no canto. “A cozinheira é que escolhe o que eu vou comer. Hoje vai ser peixinho cozido.” É a primeira e única refeição do dia.
Texto de Tiago Palma, fotografia de Michael Matias.

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