sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

As seis letras do nosso infortúnio: E de Explicar

 



O mundo tem que fazer sentido. O nosso também. Sem isso é difícil andar por aí. É só imaginarem: acordarmos de manhã e não sabermos porque a mesa do pequeno almoço não tem nada, porque devemos ir ao serviço, à escola ou à universidade ou não sabermos onde vamos bater à porta para vermos este ou aquele problema resolvido. Não dava, seria uma vida muito complicada e neurótica. É verdade que há diferenças no tipo de questões que se levantam e precisam dum esclarecimento antes de nos declararmos psicologicamente sãos. Para algumas questões não há respostas, por muito que tentemos. Por exemplo, muito provavelmente nunca saberemos o que aconteceria se toda a gente no mundo com autoclismo na casa de banho resolvesse pressionar o mecanismo no mesmo instante. Quem sabe se o dilúvio bíblico não tem essa origem, com outros mecanismos, claro? Ou quem quiser um exemplo bizarro, nunca saberemos o que falhou na nossa luta pela independência e dignidade humana para que moçambicanos sãos, décadas após o fim do colonialismo, congestionassem as avenidas das suas cidades celebrando o fim do campeonato português de futebol.

Só que precisamos de explicações. Portanto, mesmo que não tenhamos uma boa explicação, uma má também serve e, com ela metida no sovaco, vamos gerindo o nosso quotidiano. O nosso maior problema, contudo, não é dependermos, por vezes, de má explicações para conferirmos sentido às nossas vidas. Isso era o menos. O nosso problema é a nossa recusa em aceitar que haja de facto várias explicações para as coisas da vida e que em resultado disso uma das coisas que definem a vida seja a importância aliada à necessidade de escolhermos uma explicação. Isto é mais fácil dito do que feito, pois para escolhermos precisamos de matéria, matéria essa que é difícil de encontrar num país a abarrotar de opiniões. Este é o (angolanamente) proverbial problema que estamos com ele. Como escolher sem matéria? Aqui já tenho que abrir o jogo em relação aos “sequestros” e dizer porque me custa aceitar que tenham ocorrido.

Antes de fazer isso devo esclarecer um problema semântico-filosófico. Quando duvido da ocorrência dos sequestros não quero dizer que ninguém tenha raptado alguém, ninguém tenha sido raptado ou que nenhuma família tenha sido obrigada a pagar um resgate. Duvido da ideia geral que qualquer indivíduo sensato forma dum sequestro, nomeadamente a ideia de que alguém pega numa outra pessoa, detém-na num esconderijo qualquer contra a sua vontade e exige um resgate à família como condição de libertação. Sequestro é isso mesmo, mas o pouco que sabemos sobre o assunto torna plausíveis outras definições do sequestro. O problema da ideia geral do sequestro é ser auto-suficiente, assim estilo furto, isto é alguém entrar numa loja, fazer desaparecer um artigo qualquer no seu cesto e escapulir-se. Curiosamente, as outras definições de sequestro que se insinuam – na minha cabeça obviamente – têm a ver com o que não sabemos. O que sabemos é o que nos tem sido dito, nomeadamente que pessoas de origem asiática desapareceram da circulação e que as pessoas que as fizeram desaparecer exigem o pagamento de valores que vão de 500.000 a 10 milhões de dólares americanos como condição para que os desaparecidos reapareçam.

Não sabemos em que tipo de negócios é preciso estar metido em Moçambique para se acumular esse tipo de riqueza. E não precisam de ser ilegais se é que alguém está a pensar o mesmo que eu. Não sabemos como esses negócios são normalmente “protegidos”. É lícito, contudo, pensar que não seja com feitiço, nem mesmo asiático. Não sabemos que redes de protecção funcionam no nosso país e garantem que certas pessoas possam acumular riqueza com negócios (lícitos) ao ponto de estarem em condições de pagar resgates tão chorudos como estes. Não sabemos onde é guardado esse dinheiro e, se for mesmo no banco, se há razões para fazer viajar uma parte desse dinheiro sem passar pela atrapalhice da expatriação de divisas. E como para além das famílias mais ninguém falou com os sequestrados (por razões de segurança perfeitamente plausíveis) também não temos uma ideia do tipo de pessoas que esses raptores são que se permitem o luxo de colocar em liberdade gente que os possa identificar ou, com o seu depoimento, permitir à polícia que os apanhe. Sem estas informações todas é também plausível pensar que os sequestros possam ser “sequestros”, isto é um esquema qualquer de protecção que perdeu autoridade ou um esquema de (re)patriamento de divisas. Como dizia o grande Sherlock Holmes: depois de se eliminar o que é impossível o que sobra, por mais improvável que seja, é a verdade. E se, por acaso estiver enganado, deixem a minha família em paz!
Estes textos foram escritos há várias semanas e publicados no jornal Notícias. Entretanto, de lá para cá aconteceu muita coisa. Por exemplo, a polícia prendeu um grupo de malfeitores acusados de terem feito os sequestros por conta de alguém. Como é que fica a hipótese destes textos de que se trata de “sequestros” e não sequestros? Mantém-se. Tudo indica que o sucesso da polícia ocorreu porque o grupo de malfeitores agiu por conta própria, portanto à revelia dos mandantes dos “sequestros”, e foi raptar uma jovem com o perfil “errado”. Essa jovem e sua família colaboraram com a polícia, violando um preceito central destes “sequestros”. Logo a seguir à detenção desse grupo houve outros raptos, uns porque a moda talvez pegou, outros decididamente correspondendo ao perfil “sequestros” numa situação, no mínimo, completamente confusa.
Colaboração: Elísio Macamo, Sociólogo.

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