quinta-feira, 9 de maio de 2019

Sobre a ontologia do juiz: o poder da consciência e a consciência do poder


Resumo
Nesta comunicação procuro estabelecer nexos entre o conceito de ontologia e a a acção do juiz. Partindo do pressuposto de que o conceito de ontologia faz referência a coisas que nos fazem seres comuns, problematizo a acção do juiz, vis a vis a acção dos cidadãos que somos numa mesma República. Concluo que tanto o juiz quão qualquer outro cidadão temos uma mesma luta: enveredar, ou pelo menos advogar por uma atitude que preconiza ter em conta o poder da consciência através da consciência do poder que possuímos como cidadãos que somos, em princípio, probos.

Nota prévia
Ocorrem-me cinco axiomas introdutórios.
 O primeiro é que, tal como o clássico sociólogo francês (Durkheim), trato os facto sociais como coisas.
O segundo, e que vem na sequência do primeiro, problematizo tudo. Aqui o Elísio Macamo vai ficar muito contente, tipo tem seguidor acérrimo com todo efes e erres.
Terceiro, sou fã do Stuart Hall, um estudioso da teoria da cultura que diz que ser pós moderno significa virar a situação ao contrário, como se de um saco se tratasse, e  começar a ver um a um os objectivos que daí caiem.
Quarto, não me farto de dizer isto, vem de Cardinal Arns que diz mais ou menos o seguinte: Temos que ser subversivos. Ser subversivo significa virar a situação ao contrário e olhar para ela a partir do ponto de vista, da perspectiva daqueles que têm que morrer para que o sistema se mantenha intacto, isto é, continue.
Quinto e último. Já que vocês juízes e magistrados falam muito de positivismo, eu sou fã da teoria crítica: todo esse positivismo, no meu entender deve ser visto com algum relativismo. A razão cartesiana não responde a tudo, tal como o direito (common law ou o continental) não nos dão respostas cabais sobre a nossa situação concreta, daqui a pertinência de Montesquieu, no seu “O Espírito da Lei”. Há muita lei comportamento costumeiro (consuetudinário) que não cabe no direito positivo, tal como Descarte não explica muitas coisas nossas. Voilá!
Julgamento quase teórico
 Agradeço o convite, embora me sinta um intruso entre gente das leis e das barras de tribunais.
Sociólogo que sou é expectável da vossa parte que eu problematize o ponto que me proponho discutir, aliás, característica basilar do mister da sociologia. Por isso, farei uma tentativa de discorrer sobre este assunto que mexe com a nossa sociedade: A ontologia do ser juiz.
Para tal, tentei arranjar nexos entre o conceito de ontologia e as práticas dos juízes, vis a vis a noção de pertença a esta sociedade da qual fazemos parte todos nós. Parto do pressuposto de que temos a mesma valência, entanto que cidadãos moçambicanos, diferentes que sejam as nossas matizes, credos, extractos ou segmentos sociais, ou missões.
 Levanto algumas linhas de reflexão sem contudo fechar a questão, pois, isso é função de consultores, o que não é o meu caso aqui.
Comecemos do princípio.
No dicionário Aurélio, Ontologia é definida como (…) “o ser concebido como tendo uma natureza comum, inerente a todos e a cada um dos seres”.
Resulta óbvio que é uma definição que emana da metafísica. Portanto, feitas as contas, esta definição revela-nos que as pessoas, juízes ou não, têm pontos de intersecção, pontos em comum que, na falta de melhor formulação, chamemos-lhes de razoabilidade. Assim sendo, é esperado que na sua acção, juízes ou não, almejem o desejado equilíbrio que deve resultar da probidade, esta tida como integridade de carácter, honestidade, retidão, honradez, bondade, que tanto juízes como qualquer cidadão, “naturalmente” por eles lutaria, ou deveria lutar, ainda que tais virtudes apresentem-se em forma de utopias reminiscentes.
Quer dizer que estamos a falar da consciência no sentido de interioridade, faculdade de estabelecer julgamentos sobre os actos realizados, uma espécie de “prova dos nove” do nosso senso de responsabilidade para com a nossa acção quotidiana, probidade e consciência de si, portanto, auto consciência, tendo em conta o sentido do justo e da justiça que perseguimos.
 A justiça e o senso do justo não ocorrem sem apelarmos à cultura, aqueles aspectos da sociedade humana que são antes apreendidos do que herdados, quer dizer, socialmente construídos.
 Assim sendo, aludimos à noção de consciência colectiva, esse conjunto de representações, de sentimentos mais ou menos aceites que corroboram no sentido da harmonia e da coesão da nossa sociedade.
E tal como nos assevera Durkheim, em todas as sociedades a anomia (doença de que padecem as sociedades, disfuncionalidades, como por exemplo o crime ou a delinquência no seu todo), fazem parte das mesmas, ainda que sejam a revelação de um desvio patológico. Todavia, a pergunta que se nos interpõe soa bem mais alto: haverá uma utopia militada por um grupo de indivíduos que se constitui como reserva moral, capaz de lutar contra essa distopia, a imoralidade, o culto do dinheiro indevido e de outras coisas improbas que corporizam tal desvio patológico?
O dicionário Houaiss acrescenta à definição de ontologia uma dimensão da medicina, ao longo de cuja história defini-a como sendo a doutrina que estuda o ser da doença, como se a enfermidade existisse em conformidade a um tipo bem definido, a uma existência ontológica.
Teremos, deste modo, duas acepções que se engancham num mesmo pilar, isto é, a definição da ontologia entanto que ser das coisas.
 A primeira acepção, define a ontologia como aquilo que trata do ser ele próprio (as coisas que nos são comuns entanto que entes, pessoas, indivíduos, cidadãos).
E, a segunda que provém da medicina e faz referência ao ser das doenças, aponta para qualquer coisa que faz com que a doença se efective e se torne esse ser que reputamos maléfico, já que corporiza uma disfunção.
  1. Qual seria, então, a natureza comum entre os juízes e os não juízes, isto é, quais são (ou seriam) os denominadores comuns entre eles (vocês) e os outros (nós), tão cidadãos da República quanto todos e cada um de nós?
  2. E qual seria, já agora, a génese da doença que faz com que esta ocorra e se enraíze como patológica no corpo do nosso jurado, a ponto de estarmos perante uma crise quase generalizada?
  3. Como não faço ponto sem nó, aqui está: será que a sociedade ela própria padece, tipicamente, de uma disfuncionalidade, anomia patológica que atinge até os que têm por dever dividir o queijo, os juízes?
I-O poder do juiz: a consciência individual
Tenho bem presente a figura do João Ratão. Personagem dum texto inserido no meu livro de leitura creio que da minha segunda classe, João Ratão deveria dividir, em partes iguais, um queijo, que seria partilhado por dois contendores. Portanto, ele era apenas o juiz, o fiel da balança. Vai daí que, para acertar o peso, e abusando do facto de ter a faca e o queijo na mão, João Ratão foi comendo o queijo depositado nos dois pratos da balança, segundo ele, à procura do equilíbrio, tentando almejar a igual e justa medida. Moral da estória: À procura do “justo”, João Ratão acabou comendo o queijo dos dois lados da balança, deixando os legítimos donos sem o seu. Aqui o adágio “ o seu a seu dono”, “a Cristo o que é de Cristo, e a César o que é de César” “des-funcionou”. Quer dizer que, João Ratão enveredou por uma justiça injusta, imiscuindo-se ele próprio, negativamente, na questão.
 João Ratão exerceu o poder não para resolver o problema, como diria o governador do nosso Banco Central (Rogério Zandamela), mas, para se servir, aumentando por isso achas à fogueira e instigando, por isso, a contenda. Usou do poder para abusar da confiança dos que, clamando por justiça, nele fizeram fé.
Infelizmente, esta fábula é a alegoria e a imagem que me ocorre quando penso sobre os nossos juízes. Óbvio, salvas as devidas excepções, querendo com isso dizer que o sistema é bimodal: uns muitos bons, e, uns poucos maus que mancham todo o sistema, qual nódoa entornada no pano branco da justiça.
 Juízes há que, ao tentarem equilibrar, fazer justiça, ficam com o queijo em disputa, quando nem sequer faziam parte da querela, a não ser como simples administradores da justiça, meros fiéis da balança.
Somos postos perante um problema de consciência, uma vez que a doutrina reza que “o juiz decide conforme a sua consciência e em respeito estrito pela Lei.”
E se a consciência do juiz não for proba? E se a consciência do juiz for comprada?
E se o juiz manipular a lei, enrolando-a naquela linguagem latinizada e hermeticamente fechada, a dos habeas corpus e outros quejandos, puxando a brasa à sua sardinha, a das improbidades?
A conclusão é simples: faz-se uma justiça injusta, salvaguarda-se o bandido a troco de dinheiros, sabe lá o diabo porquê, e fica, provavelmente, detido, ou pelo menos prejudicado, o inocente. Ou, mesmo não sendo inocente, a justiça afigura-se-nos uma mão dura e implacável para os chamados pilha galinhas, deixando incólumes os tubarões, ladrões de grande calibre, particularmente os de colarinho branco. Impera, assim, a improbidade, isto é, a corrupção.
Samora falava do combate à corrupção em todas as frentes. Severino Ngoenha fala de “changuismos” como moda estruturante da sociedade actual.
Finalmente, numa espécie de golpe de misericórdia, Tomás Viera Mário assevera-nos que (…) “a corrupção deixa de ser conduta desviante, para se assumir como uma norma do próprio Estado”.
Será esta a sociedade que queremos legar aos nossos netos?
Será isto que queremos, uma sociedade cuja normalidade é uma enfermidade patológica, viral?
O que é que temos que fazer para reverter este statu quo?
II-Consciência colectiva como utopia e fórmula resolvente
Perseguindo aquilo que deve ser feito para a reversão do statu quo penso que a resposta deve ser holística. E já que estamos em ano Eduardo Mondlane, proponho que consideremos que a primeira resposta a este desiderato esteja no título do livro do fundador de Frente de Libertação de Moçambique:Lutar por Moçambique.
Lutar por Moçambique para os juízes significa em rigor a escolha minuciosa e acertada dos candidatos a magistrados. Significa, por outro lado, uma revolução cultural que procure enraizar no ethos dos juízes, e não só, a noção de coisa pública, do servir como missão. Significa, em última instância que ao se escolher a profissão de juiz estejamos bem claros sobre o que é virtude e o que é ser justo. Significa, portanto, que os candidatos a juízes têm que estar bem claros sobre a utopia que rege a Rés Pública, lutando para que a justiça e a probidade que devem caracterizar a nossa acção, em prol da nação, ganhem corpo. Quer dizer, temos que pensar, antes de tudo, na viabilização e normalização do funcionamento das nossas instituições, afinal índices que devem caracterizar o nosso lugar de referência, pertença e de destino, este nosso Moçambique.
Resumindo, ser juiz probo, ontologicamente enraizado, significa que aceitamos assumir essa luta titânica permanente, entre o justo e o injusto, entre o probo e o não probo, sendo que, o justo e o probo têm que vencer. Assim se materializa a noção de cidadania, e de missão, nem sempre fácil, pois, está à espreita um tiro disparado por um sequaz ao serviço do crime organizado, que quase tomou por completo o nosso Estado, e o estado das coisas na nossa Terra Gloriosa.
Juízes ou não, sabemos do poder da nossa consciência para mudarmos as atitudes que obstaculizam o normal funcionamento das nossas instituições, mormente os tribunais?
Temos nós, o sentido, a consciência do poder da nossa acção, no bom e no mau sentido do termo, no cumprimento da nossa missão?
 Estamos preparados para lutar por Moçambique?
Aqui socorro-me de um outro clássico da sociologia, Max Weber. No seu trabalho, “A ética Protestante e o Espirito do Capitalismo”, Weber cita Lutero na sua definição de “vocação”. Alude ao seu étimo alemão, Beruf, ou ao inglês, calling, que nos remetem ao conceito de missão, ainda que esta seja no sentido divinal do termo. Ainda assim, o que pode ser aproveitado é a noção ecuménica e de responsabilidade subjacentes a tal missão.
Para o nosso caso, vamos dizer que é o chamamento, que vai para além do religioso. Aliás, a este, acrescento o sentido samoriano do termo. Recordo para o efeito a exortação que foi dirigida à minha geração, aquando do célebre discurso do oito de Março (1977). Aceitando a missão, viramos soldados, pilotos, professores, diplomatas, agrónomos, mesmo que essa não fosse a nossa primeira opção. Samora disse e bem, contra muitas vontades e convicções: “ jovens, a pátria chama por vós!”
Cá está o chamamento. Mesmo não sendo a primeira opção, uma vez acedido o chamamento da Pátria, ele deve ser concebido de paredes meias com aquilo a que Weber chama de,
 “Valorização do cumprimento do dever no seio das profissões mundanas como o mais excelso conteúdo que a autorrealização moral é capaz de assumir”.
Essa autorrealização moral se torna a “vocação profissional”, uma espécie de chamamento para o cumprimento dos deveres intramundanos que nos são postos como desafios. É pois, o poder da consciência que se junta à noção de consciência sobre nós mesmos.
É isso que se passa entre os nossos juízes?
É isso que se passa entre nós que nos queremos cidadãos que agimos em prol do bem público?
Penso ter criado confusão suficiente para uma discussão franca, sem preconceitos, e, sobretudo, cheia de sentido de cidadania e patriotismo, pois, mais uma vez, a pátria chama por nós!

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