Um piloto da companhia alertou os superiores em dezembro: era preciso mais treinos para não haver um desastre como o de 29 de outubro. Em março, um avião despenhou-se e 157 pessoas morreram.
Pode muito bem ser uma das peças do puzzle que permitirá chegar ao apuramento de responsabilidades sobre o que se passou a 10 de março deste ano. De acordo com a Bloomberg News, no final do ano passado um piloto da Ethiopian Airlines alertou os seus superiores para os riscos de voar com aviões 737 Max da Boeing. A 13 de dezembro, escreveu mesmo que aconteceria “um acidente de certeza” se nada fosse feito. Três meses depois, um avião desse modelo da companhia aérea despenhou-se durante uma viagem da Etiópia para o Quénia, causando a morte de 157 pessoas.
A troca de correspondência entre o então piloto da Ethiopian Airlines, Bernd Kai von Hoesslin, e os seus superiores, chegou à posse da Bloomberg News, que teve acesso a 418 páginas de documentos e comunicações. Estas começaram depois do primeiro grande acidente com um avião deste modelo, que integrava a frota da transportadora Lion Air e que se despenhou na Indonésia a 29 de outubro. Morreram, logo aí, 189 pessoas.
Os avisos foram muitos. Bernd Kai von Hoesslin alertou os seus superiores hierárquicos para os problemas relativos à pilotagem destes aviões, nomeadamente a insuficiência do treino dado aos pilotos para voarem com novos sistemas de aviação deste modelo e a má comunicação entre membros da tripulação. Esta aconteceria em situações de urgência provocadas por avarias, como a que aconteceu com o avião da Lion Air em outubro.
O piloto tinha então uma preocupação em particular, a resposta que os pilotos não estavam preparados para dar caso o sistema de controlo automático de voo dos aviões deste modelo voltasse a dar problemas e os pilotos recebessem avisos no cockpit de que estavam a voar demasiado perto do chão.
Embora o acidente de março tenha “acontecido de maneira diferente daquela que foi descrita” pelo então piloto, ele “previu com precisão o caos e o perigo que resultaria dos múltiplos avisos no cockpit com os quais os pilotos tiveram de lidar no acidente de março”, que provocou a morte de 157 pessoas, aponta a Bloomberg News. O então piloto “citou um conjunto de preocupações que disse que precisavam de ser enfrentadas relativas à manutenção, ao descanso dos pilotos e aos procedimentos operacionais”.
[Como falhou o sistema automático do avião da Ethiopian Airlines:]
O piloto “recusou comentar” e a Bloomberg garante que a correspondência não foi enviada por ele, mas sim por “outra pessoa que pediu para não ser identificada”. Numa primeira reação via Twitter, citada pela Bloomberg News, a transportadora aérea já se defendeu, descrevendo Bernd Kai von Hoesslin como um “antigo funcionário descontente”.
Hoesslin é, de facto, um antigo funcionário, mas não terá sido demitido, ao contrário do que a companhia aérea parece sugerir. Segundo o seu advogado Darryl Levitt, o piloto demitiu-se depois de ter “levantado preocupações junto da Ethiopian Airlines que, na opinião do capitão von Hoesslin, não foram adequadamente encaradas, sendo que as suas preocupações relacionavam-se com assuntos sérios de segurança de aviação”. A demissão aconteceu em abril, cerca de um mês depois do segundo grande acidente em poucos meses com um avião da Boeing. Na carta de demissão, vista pela Bloomberg, o piloto juntava documentos e emails com os seus alertas para a necessidade de treino adicional para lidar com o novo modelo da Boeing.
Embora não seja garantido que um treino mais ajustado e detalhado pudesse evitar acidentes como aquele que aconteceu a 10 de março, Bernd Kai von Hoesslin não foi o único a apontar falhas ao modelo de treino e de adaptação ao novo modelo da Boeing, para os pilotos que já tinham experiência com modelos antigos da fabricante de aviões.
Em janeiro, o site especializado na indústria da aviação FlightlGlobal amplificava críticas de especialistas e pilotos que acusavam companhias aéreas de treinar os seus funcionários para pilotar estes modelos com cursos online e de curta duração. Na altura, colocava-se já em causa a preparação dos pilotos para, após o treino recebido, lidar com erros de sensor de um novo sistema deste modelo da Boeing chamado Maneuvering Characteristics Augmentation System (ou MCAS). A informação errada enviada pelo sensor provocava movimentos de aproximação ao solo do avião perigosos, que se discutia se os pilotos estavam tecnicamente capacitados para contornar.
Curiosamente, num email de dezembro, von Hoesslin avisou os seus superiores de que as tripulações poderiam ficar assoberbadas pela quantidade de avisos e alertas do cockpit resultantes de uma ativação errada do sistema MCAS. A resposta errada dada por este sistema foi uma das causas para o acidente de um Boeing 737 Max da Ethopian Airlines a 10 de março, que resultou na morte de mais de centena e meia de pessoas.
Ainda relativo ao sistema MCAS, num email enviado aos seus superiores, o antigo piloto da Ethiopian Airlines chamava a atenção para o programa de simulação de voos da companhia aérea para o Boeing 737 Max. Os simuladores, alertava então o piloto, eram baseados no sistema operacional do modelo anterior da Boeing e não incluíam o sistema operativo automático MCAS.
Já em novembro o sistema preocupava von Hoesslin o suficiente para este pedir (via email) para que fossem cedidos mais detalhes relativos ao MCAS para “os pilotos do Max que não estão totalmente ou sequer minimamente conscientes” das funções do sistema. Na resposta, o piloto recebeu mais detalhes explicando o funcionamento do sistema que voltou a falhar no acidente de 10 de março, depois de já ter falhado na tragédia da Indonésia.
Todos queremos saber mais. E escolher bem.
A vida é feita de escolhas. E as escolhas devem ser informadas.
Há uns meses o Observador fez uma escolha: uma parte dos artigos que publicamos deixariam de ser de acesso totalmente livre. Esses artigos Premium, por regra aqueles onde fazemos um maior investimento editorial e que mais diferenciam o nosso projecto, constituem a base do nosso programa de assinaturas.
Este programa Premium não tolheu o nosso crescimento – arrancámos mesmo 2019 com os melhores resultados de sempre.
Este programa tornou-nos mesmo mais exigentes com o jornalismo que fazemos – um jornalismo que informa e explica, um jornalismo que investiga e incomoda, um jornalismo independente e sem medo. E diferente.
Este programa está a permitir que tenhamos uma nova fonte de receitas e não dependamos apenas da publicidade – porque não há futuro para a imprensa livre se isso não acontecer.
O Observador existe para servir os seus leitores e permitir que mais ar fresco circule no espaço público da nossa democracia. Por isso o Observador também é dos seus leitores e necessita deles, tem de contar com eles. Como subscritores do programa de assinaturas Observador Premium.
Se gosta do Observador, esteja com o Observador. É só escolher a modalidade de assinaturas Premium que mais lhe convier.