SOBRE A ENTREVISTA DO PRESIDENTE NYUSI AO CANAL DE MOÇAMBIQUE
Porque é direito do cidadão estar informado sobre as acções dos seus governantes, de modo livre e independente da manipulação ideológica já habitual, fiquei deveras feliz pela entrevista que o Presidente da República deu ao Canal de Moçambique. Foi uma oportunidade única de ficar a saber o que o nosso representante máximo tem estado a fazer e o que tem pensado, nos quase 5 anos que esteve no leme dos nossos destinos colectivos como Estado. Não irei repetir o que o presidente Nyusi lá disse. Vou apenas resumir em 2 ou 3 parágrafos o que eu lá vi e o que eu lá não vi.
Vi responsabilidade nas respostas de Nyusi, mas também uma ruidosa omissão em profundidade de alguns assuntos sensíveis como o das dívidas ocultas (que é, para mim, muito mais sério do que o do desarmamento da Renamo). Recorrer ao argumento do princípio da separação de poderes ou ao do segredo de Estado para não responder sobre o seu envolvimento pessoal no calote tem toda a legitimidade, sob o ponto de vista de sentido de Estado, ainda mais na sua qualidade de Presidente da República. Nyusi usou um discurso utilitarista que se aproveitou duma inédita oportunidade – o de falar para o povo moçambicano através de um dos media mais críticos ao seu regime – para, sem dizer quase nada, merecer um enormíssimo destaque num ano de eleições que podem testar ainda mais o poder e a legitimidade do seu governo. E ele fez isso com folgada naturalidade porque a cultura de honestidade ainda não faz ganhar ou perder eleições em Moçambique. Infelizmente.
Perceber o que eu disse acima é simples. Quando estamos a cortejar uma dama, por exemplo, nunca alistamos os nossos defeitos no CV que submetemos para que ela nos aceite. Não falamos sobre o nosso alcoolismo crónico ou sobre o nosso histórico malsucedido de namoricos do passado. Quase sempre supervalorizamos as nossas qualidades e minimizamos (ou omitimos) deliberadamente os nossos defeitos. Não é estranho, portanto, que o presidente Nyusi tenha perfumado o que considera estar a fazer muito bem. Não é estranho que ele não tenha elencado na entrevista os obstáculos criados do seu lado (ou pelo seu governo) para que o dossier de desarmamento da Renamo, por exemplo, esteja quase letárgico. Dizer que a culpa é do outro é sempre mais fácil, sobretudo quando a teoria da satanização do adversário tem uma enraizada escola popular tanto na elite política como na opinião pública moçambicana mais desatenta.
Falando em desatenção, poderia escrever um pouco mais sobre o valor estratégico do argumento de Nyusi relativo ao não pagamento das dívidas ocultas com o “dinheiro do gás”. Para quem ainda continua suficientemente atento em relação a este assunto, facilmente se recorda que o governo anterior (de Guebuza, e no qual Nyusi era um dos seus ministros-delfins com a pasta da Defesa) entrou nas empreitadas do MAM e da ProIndicus exactamente por causa da euforia do “dinheiro do gás”. Dissociar uma coisa da outra, por estes dias em que a confirmação do calote parece estar a legitimar o direito da desresponsabilização do Estado, não caberia no meu mais reles conceito de ingenuidade (para não usar um termo mais indelicado). Os dois governos contaram com o “dinheiro do gás”, desde o início, para viabilizar os negócios. Isso é um facto, independentemente da opinião do presidente Nyusi. Aliás, dependendo do que vai (ou pode ser) deliberado nas barras da justiça (nacional e internacional), o “dinheiro do gás” vai (ou poderá) pagar a amortização das dívidas.
Não vi, na entrevista do presidente Nyusi, qualquer tipo de agenda programática e de gestão baseada em resultados por parte do seu governo, tanto nos quase 5 anos já passados como nos próximos 5 a que se propõe candidatar. Parece-me ser um governo que se ficou pelo famoso discurso inaugural da sua tomada de posse como Presidente da República, sendo a sua principal marca administrativa o estado de permanente gestão de crises (as dívidas, a justiça norte-americana e a sul-africana, a Renamo, os ciclones, a contestação intrapartidária). Para além de sucessivas gaffes discursivas, não se consegue enxergar mais nada. A única novidade para o cidadão moçambicano, sobre o seu sombrio presente e futuro, é agora a expressão “por que é que não fazes o seguinte: deixar…”
Agora, e só para fechar… Respeito imenso a delicadeza destes assuntos para uma figura como a do presidente Nyusi. É difícil dizer (somente) a verdade nessa condição, sobretudo quando somos parte indissociável do problema. Por conseguinte, parabenizo o presidente Nyusi por ter sabido enfatizar os factos que jogavam a seu favor e por ter conseguido minimizar ou ignorar os factos que lhe são inconvenientes. O que é de lamentar é quando fazemos um esforço deliberado (mesmo que dissimulado) para impedir que o cidadão conheça a verdade sobre todos estes podres. Mais perigoso ainda é quando dizemos coisas que, a prior, sabemos ser falsas ou mentirosas… esperando que os outros as assumam como verdades. Ainda muito grave é irmos à imprensa para dizer coisas que são falsas ou para negar coisas que são verdadeiras.
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