26 • Público • Segunda-feira, 21 de Maio de 2018
Alex Vines Duas semanas após a morte do líder histórico da
oposição moçambicana, especialista em política africana faz
ponto da situação: os sinais positivos, os retratos cirúrgicos
e a antecipação do futuro de Moçambique
Entrevista
Bárbara Reis
O paradoxo é
que Dhlakama se
proclamou ‘pai
da democracia
de Moçambique’,
mas nunca houve
democracia na
Renamo
Alex Vines, fundador e director do
Programa de África da Chatham
House, o prestigiado think tank
britânico, conhece Moçambique
desde 1984. Publicou um livro
em 1991 (Renamo: terrorism
in Mozambique) e integrou a
equipa eleitoral da UNOMOZ, a
missão da ONU que acompanhou
as presidenciais de 1994, em
Chibuto, província de Gaza.
Vines é o tipo de analista
que, a seguir à morte de
Afonso Dhlakama, telefona a
várias pessoas da Renamo e
da Frelimo para tomar o pulso
ao ambiente político. Diz que
os ex-guerrilheiros continuam
a ter muito poder e que a
escolha de Ossufo Momade
para supervisionar a transição
da Renamo após a morte do
líder histórico o coloca como o
candidato mais forte na linha de
sucessão.
O que viu de relevante em
Moçambique desde a morte de
Dhlakama, a 3 de Maio?
Foi muito importante o facto de o
funeral ter tido muita dignidade.
O discurso do Presidente de
Moçambique e de outras pessoas
no funeral; a presença de
diferentes grupos da Renamo nas
cerimónias; do outro partido, o
MDM [Movimento Democrático
de Moçambique], com Daviz
Simango e José Domingos; e até
Ivete Fernandes, viúva do antigo
secretário-geral da Renamo [Evo
Fernandes, assassinado em Lisboa
em 1988]: tudo isso foi muito
importante e vai ajudar a Renamo
no futuro.
A nomeação de Ossufo Momade
como líder interino também é
uma boa decisão, porque uma
parte-chave da Renamo são
os militares e os funcionários
públicos de meia-idade. Ossufo
vai conseguir gerir essa transição
de forma responsável. Tive uma
surpresa: a intervenção no funeral
de Ivone Soares, a sobrinha de
Dhlakama. Percebo que é uma
das candidatas à sucessão de
Dhlakama, mas nas cerimónias
fúnebres soou deslocada. Avaliou
mal a situação, usando-a para
aumentar a sua base de apoio na
corrida à liderança do partido.
O que quer dizer com “má
avaliação”?
O Presidente Nyusi mostrou
atitude de Estado e sensibilidade,
dada a história difícil entre a
Renamo e a Frelimo. A única
nota desafi nada foi Ivone Soares.
A meu ver, isso signifi ca que ela
estará a sentir-se sob pressão
e enfraquecida. Ela apoiavase
muito no tio. A morte de
Dhlakama muda essa dinâmica.
O que o impressionou tanto na
intervenção de Ivone Soares?
Estava muito emocionada, não
usou um tom muito conciliador,
tentou apelar ao apoio dos jovens
da Renamo, mostrou demasiado
as suas credenciais — deixando
claro que era a sobrinha de
Dhlakama e líder da bancada
parlamentar da Renamo na
Assembleia da República. Foi um
discurso que surpreendeu. Em
inglês dizemos raised eyebrows. E,
no caso, Ivone Soares fez enrugar
a testa à Frelimo, aos diplomatas
e até na própria Renamo houve
caras de espanto. É claro que
ela estava comovida. Dhlakama
é da família, não é apenas o seu
líder. Isso explica uma parte. Mas
também é indicativo de que a luta
pela sucessão está em cima da
mesa.
Na Renamo, há alas que a vêem
como uma mulher demasiado
jovem, urbana e cosmopolita
para representar o partido.
Qual é a sua leitura?
Tudo isso é verdade. Não me
parece que um moçambicano
de 40 ou 50 anos que vive
em Sussundenga [Manica]
ou Gorongosa [Sofala] lhe dê
grande atenção. O poder de
Ivone Soares decorre muito do
seu tio. Ela é uma senhora de
Maputo, cosmopolita e urbana.
E, além disso, não tem muito
autocontrolo e tem grande
difi culdade em perdoar a Frelimo.
É neste aspecto que ter Ossufo
Momade como fi gura de transição
— e ele pode vir a tornar-se o líder
da Renamo — é uma boa escolha.
Ele é mais ponderado, tem
a experiência da guerra, tem o
respeito dos antigos combatentes.
Alguma imprensa, sobretudo
da África do Sul, disse que “a
Renamo de Momade” ameaçara
abandonar as negociações de
paz com a Frelimo, mas não é
de todo verdade. Não há dúvida
sobre qual é a vontade da
Renamo: eles querem acordos
de paz duradouros. O processo
de paz vai avançar. Esse foi o
último desejo de Dhlakama.
Ele compreendia as pessoas do
centro de Moçambique, que são
as bases do partido. Sabia o que
elas querem. Hoje, as bases da
Renamo são pessoas de meiaidade:
querem oportunidades
para os filhos. Isso significa que
há aqui uma possibilidade. Mas os
políticos têm de agir com boa-fé.
Tanto a Renamo como a Frelimo.
Civil ou militar: qual é o
melhor perfil para o futuro
líder da Renamo?
A escolha terá que ser feita pelo
partido. Na Renamo nunca houve discussão democrática.
Tudo girou sempre em torno
do comandante Dhlakama.
Vamos ver quão aberto vai ser
este debate. Mas o facto é que
a principal base de apoio da
Renamo são os ex-guerrilheiros
do centro de Moçambique.
São eles que dão à Renamo o
poder negocial que obriga o
governo a negociar e a chegar
a compromissos. Imagino que
os militares vão ter um papel
predominante nesta questão.
A escolha de Ossufo Momade
para supervisionar a transição já
mostra isso. Dos três interessados
ao lugar — Ivone Soares, Bissopo e
Momade — ele está, naturalmente,
na posição mais forte. É um
antigo guerrilheiro. Bissopo é de
uma geração mais nova, nunca
lutou na guerra civil, que acabou
em 1992. Aliás, uma das coisas
incríveis da Renamo é que os
“seus” jovens votam no partido, mas não querem lutar por ele.
Há anos que toda a actividade
militar da Renamo é feita por
homens de meia-idade e são eles
próprios que dizem aos jovens
para se manterem afastados do
confl ito e concentrarem-se na sua
educação.
Esta é uma questão geracional.
E é um sinal forte de que a
Renamo quer encontrar uma
solução duradoura para as
questões pendentes. Parece que
a eleição dos governadores [das
províncias, hoje nomeados pelo
Presidente da República] está
resolvida: a Frelimo já concordou
e só falta ofi cializar. Quanto
aos outros temas pendentes —
integração dos ex-militares nas
forças de segurança nacionais e a
desmobilização — há um acordo
praticamente fechado. Quando
Dhlakama morreu, estavam a oito
semanas de o terminar.
A morte de Dhlakama ajuda ou
complica esse processo?
A curto prazo, vai desacelerar
o processo. Penso que não vão
conseguir anunciar um acordo
dentro das oito semanas previstas
— vão estar ocupados a encontrar
um novo líder. Mas a longo prazo,
e se o Governo agir de boa-fé,
pode signifi car a sobrevivência
do acordo. Uma das fraquezas de
Dhlakama era ser inconsistente.
A sua opinião era a da última
pessoa com quem tinha falado.
Melhorou muito com os anos,
mas a complexidade da sua
personalidade pode signifi car que
a implementação dos acordos
que venham a ser feitos seja mais
fácil e mais duradoura sem ele.
Nesse aspecto, Momade é muito
diferente.
A Renamo ainda não decidiu
se o novo líder será escolhido
num congresso extraordinário,
pelo Conselho Nacional ou
por um Conselho Nacional
alargado. Ainda é um partido
sem regras internas claras?
Sim. Os congressos da Renamo
foram sempre simples exercícios
de confi rmação de Dhlakama.
Até houve um congresso que
teve de ser feito por telefone:
Dhlakama estava escondido no
centro, ligou para a Beira, onde
os militantes estavam reunidos,
e foi reconduzido por telefone.
Para mim, o que é surpreendente é a Renamo — mesmo tendo
Dhlakama estado várias vezes à
beira de ser morto pelo Governo
— nunca ter acreditado que
um dia ele morreria. Estavam
totalmente impreparados para a
sua morte. Isto também mostra
que Dhlakama era um homem
muito inseguro e que nunca
deu espaço para que outros
emergissem — talvez a excepção
tenha sido, um pouco, a sobrinha.
Na Renamo, a sucessão nunca foi
tema de debate.
Uma das questões é saber se a
Renamo tem fundos para fazer
um congresso extraordinário
para eleger o futuro líder.
A Renamo não tem dinheiro, tem
muito pouca experiência e todas
as pessoas do partido com quem
falei nos últimos dias estão muito
traumatizadas com a morte de
Dhlakama. Não há instituições,
não há procedimentos. Os
congressos do partido nunca
foram democráticos. O paradoxo
é que Dhlakama autoproclamouse
“pai da democracia de
Moçambique” — e a Renamo
forçou, com sucesso, a abertura
do espaço político —, mas nunca
houve democracia na Renamo. O
primeiro congresso foi organizado
pelo governo da África do
Sul no tempo do apartheid. A
história da Renamo está cheia
de contradições. Infelizmente
é para “inglês ver”, nada mais.
Nesse sentido, a Frelimo, com
as suas facções, sempre foi mais
democrática.
Desde que Dhlakama regressou
à violência armada, a disciplina
foi reforçada. O regresso à
violência armada, em 2013, foi
uma forma de reafi rmar a sua
autoridade.
É realista a Renamo adiar a
escolha do novo líder durante
meses?
A Renamo só vai precisar de
resolver a questão da liderança
no princípio de 2019. Nessa
altura, precisam de um candidato
para as eleições presidenciais.
Para as autárquicas, não é muito
relevante. Provavelmente vão
concorrer com Ossufo Momade
e podem à mesma conseguir
bons resultados, uma vez que
há muitos moçambicanos
decepcionados com a Frelimo.
Nas últimas autárquicas, a
Renamo não concorreu e o MDM
fi cou com os seus votos. Neste
momento, uma das questões é
saber se haverá uma plataforma
comum da oposição.
Esta “nova era” é uma
possibilidade para uma
democratização interna da
Renamo?
Os políticos profi ssionais da
geração mais nova, como Ivone
Soares e Bissopo, dizem que os
militares não devem controlar
a Renamo e que é necessário
mais democracia. Vamos ver.
Suspeito de que o coração da
Renamo continuará a ser formado
pelos militares do partido: são
eles que têm as armas, são eles
que têm poder sobre a Frelimo,
pois podem forçá-la a regressar
às negociações — e um dos
resultados disso poderá ser a
eleição dos governadores das
províncias e a Renamo ganhar
cinco províncias, o que seria um
enorme sucesso.
Nunca tiveram nenhum.
Sim e isso terá sido interpretado
por Dhlakama como um sinal
de que tão cedo não seria
Presidente de Moçambique.
Para a sobrevivência da Renamo,
ele tinha de mostrar algum
progresso, e eleger governadores
era uma forma de o fazer.
Mas a Frelimo também tem
de compreender que, numas
eleições livres, poderá perder
a maioria na Assembleia da
República. Para um partido de
libertação nacional que está no
poder, esse é um cenário muito
difícil de aceitar
O processo de paz
vai avançar.
Esse foi o último
desejo de
Dhlakama. Ele
compreendia as
pessoas do centro
de Moçambique
26 • Público • Segunda-feira, 21 de Maio de 2018
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