sábado, 26 de maio de 2018

Mais do que uma questão de consciência - Pedro Passos Coelho

EUTANÁSIA

Mais do que uma questão de consciência

Vai grande distância entre constatar a existência do suicídio como resultado de uma escolha problemática, e que nos choca, e a sua celebração legal como forma razoável de lidar com situações difíceis.
O Parlamento irá votar na generalidade, na próxima terça feira, vários projetos de lei visando reconhecer legalmente a eutanásia e regular a sua prática, nomeadamente ao nível do sistema de saúde e do Serviço Nacional de Saúde.
Ninguém pode dizer que se trata de uma surpresa, nem de uma iniciativa pouco ponderada. O manifesto público que suscitou o primeiro debate em sede parlamentar ocorreu há mais de dois anos. E, pelo menos, o BE anunciou a intenção com muita antecedência, avançando com um pré-projeto sobre o tema. Todos os grupos parlamentares e partidos, tal como os cidadãos mais atentos e preocupados com estes assuntos, tiveram assim tempo suficiente para fazer o debate e a reflexão necessária à assunção de uma decisão nesta matéria. É verdade que os termos particulares que se cristalizaram nas iniciativas legislativas só mais recentemente foram disponibilizados, mas deve reconhecer-se que a intenção e âmbito genérico das iniciativas é do conhecimento geral há bem mais de um ano. Sendo o Parlamento a sede própria para a discussão e decisão, pode por isso desencadear-se com toda a propriedade o processo e, eventualmente, vir a tomar-se uma decisão final sobre a matéria.
Isto não significa que, uma vez que só agora o trabalho parlamentar formalmente se iniciará, não seja recomendável o maior escrúpulo na definição do roteiro legislativo. Ainda para mais quando, no caso de vários partidos, a matéria não constou dos programas eleitorais submetidos ao eleitorado, não havendo por isso uma orientação previamente assumida sobre a posição a defender. Por tudo isso, e dada a particular sensibilidade e melindre da matéria, os deputados devem prevenir-se com um amplo debate aberto e não precipitado, que será certamente intenso, mas que também deverá ser envolvente, de modo a transcender as paredes parlamentares antes que uma decisão final seja tomada.
Com isto não quero sugerir que o processo legislativo deveria incluir a realização de um referendo. Respeitando quem tem opinião diferente, não sou um particular defensor da realização de referendos sobre este tipo de assuntos, sobretudo atendendo à sua filiação tão especial nos domínios dos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos indivíduos que apelam à maior ponderação e reflexão críticas, normalmente pouco consentâneas com os mecanismos do tipo de democracia direta como os referendos, onde muitas vezes o debate tende a ser polarizado por minorias ativas mais extremistas. Prefiro assim que, com todos os defeitos, incompletudes e pressão a que estarão sujeitos, sejam os deputados no âmbito do seu mandato representativo a decidir sobre este assunto do que ver remeter a decisão para um processo referendário.
Tudo isto dito, que releva da forma como o assunto tem sido colocado na agenda, em substância não deixo de ter a maior relutância na abordagem do tema e não escondo as dúvidas sérias que ele me suscita. Realmente, da reflexão que tenho feito sobre a eutanásia nunca consegui extrair uma conclusão que permitisse uma concordância nem sequer qualquer simpatia com a alteração que é proposta. Trata-se, desde logo, de uma alteração fundamental à maneira como vemos a vida em sociedade – sim, o modo como nos dispomos a organizar social e legalmente a morte a pedido tem muito que ver, literalmente, com a forma como lidamos com a vida e com as nossas conceções de sociedade e com os valores que defendemos.
A eutanásia só na aparência pode estar relacionada com noções importantes como a da dignidade humana ou com sentimentos nobres como os de comiseração ou compaixão associados ao sofrimento humano. Na verdade, a ausência da eutanásia não nega nem diminui a relevância ou efetividade de qualquer dos conceitos referidos. Parece evidente que não se perde a dignidade, que é intrínseca à pessoa, por não se poder morrer a pedido, nem a sociedade passa a ser menos compassiva por não se dar à permissão de matar a pedido. Em contrapartida, parece-me que a legalização da eutanásia pode até suscitar dúvidas sobre a desgraduação destes conceitos e a corrupção dos valores subjacentes. Ao pretender, por absurdo, emprestar mais dignidade na morte por supostamente desejar evitar sofrimento promove-se outro equívoco fundamental: uma vez que já hoje existem meios adequados que podem ser mobilizados para lidar e minorar o sofrimento físico e psicológico envolvidos na esmagadora maioria das situações humanas mais delicadas que inspiram a intenção legislativa, o recurso à eutanásia pode representar uma demissão e uma desresponsabilização da sociedade na forma de ajudar os que sofrem, empurrando as pessoas em condição particularmente vulnerável para a decisão extrema de pedirem para pôr termo à sua vida como a melhor forma de evitarem a angústia do sofrimento que é evitável. De resto, se é mesmo com o sofrimento humano que estamos preocupados, e não com outro tipo de agendas, então talvez seja altura para decidir investir sem delongas na expansão da rede de cuidados paliativos, mesmo que isso implique escolhas alternativas em termos de despesa pública que tenham de ser encaradas.
Bem sei, por outro lado, que a proximidade da morte, em muitas das suas formas crescentemente correntes, nos desafia e assusta, como é o caso das doenças incuráveis ou terminais. Mas confesso que não consigo deixar de sentir algo de totalitário nesta maneira de socialmente se encarar a morte ou de estabelecer as condições em que a vida merece ser vivida. Sobretudo quando, em muitos casos, estas situações são cumulativas com as situações de demência e fragilização inerentes à vida mais prolongada que vai marcando as sociedades mais evoluídas. Como evitar, nestes casos, a dúvida sobre o que é escolha consciente ou não?
Dir-se-á, por outro lado, que a realidade da vida já comporta soluções radicais e extremas como o suicídio, por exemplo, que resultam de uma escolha humana individual que transcende a sociedade no seu todo. Nessa linha de raciocínio, poderia dizer-se que se a escolha pelo suicídio já se insere nos nossos padrões de cultura e no quadro das possibilidades de uma filosofia de vida, então a legalização do suicídio pode ser encarada como uma extensão de uma espécie de direito natural que necessitasse ser democratizado. Mas creio que não é difícil concluir que nem a eutanásia se pode confundir com o suicídio assistido, nem a elevação deste à categoria de instrumento legal, admitido socialmente para lidar com a dor, em qualquer dos seus superlativos, pudesse ser tomado como “natural” e razoável. Vai uma distância grande entre constatar a existência do suicídio como resultado de uma escolha sempre problemática, e que nos choca, e a sua celebração legal como forma razoável de lidar com as situações difíceis da vida.
Admito que, teoricamente, podemos ser interpelados por situações limite em que a escolha, mesmo que problemática e muitas vezes além do nosso entendimento, de pôr termo à vida esteja simplesmente impossibilitada por razões práticas de natureza física e que o respeito por tal escolha, que não é coletiva, nem tem de ser induzida pela sociedade, pudesse implicar o consentimento legal em permitir que terceiros o pudessem concretizar a pedido do próprio. Apesar dos problemas éticos e filosóficos que mesmo tal possibilidade igualmente suscitaria, parece-me evidente que se trataria de uma espécie de exceção teórica que não é manifestamente a que move a alteração legislativa: a lei não está pensada nem única, nem preferencialmente para atender a esta situação muito especial, mas antes para uma espécie de “normalização” que institucionaliza uma possibilidade de fim de vida em que as pessoas são deixadas perante a necessidade de terem de decidir sobre a sua própria vida como forma natural de ultrapassarem os dramas da vida prolongada ou do sofrimento evitável que a sociedade não se dá ao trabalho de realmente evitar.
Por tudo isto, sempre achei que legislar nesta dimensão não deveria ser feito de ânimo leve. As dúvidas que exprimi sobre este assunto são suficientemente fortes para não poder associar o meu consentimento à alteração pretendida. É porque tenho dúvidas fundadas sobre isto tudo que tenho a convicção de que o melhor, na dúvida, é não fazer a alteração. Pode parecer inicialmente coisa pouca, mas a alteração legislativa pretendida mudaria radicalmente a nossa visão de sociedade.
Respeito, evidentemente, as opiniões diferentes da que expressei. Nunca gostei da evocação de pretensões de superioridade moral na manipulação de argumentos políticos nem da sugestão de processos de intenção quando nos desagradam as ideias dos outros. Mas a discussão desta matéria não deve conformar-se com qualquer relativismo que torne a decisão indiferente. A eutanásia não é uma questão indiferente ou que seja revertida de qualquer maneira. Parece claro que há aqui qualquer coisa de radical que altera as coisas de modo que não poderá ser desfeita com facilidade.
Também os fundamentos éticos e filosóficos inerentes a este tipo de escolha sempre relevariam para a importância da consciência individual na base da decisão. Mas tratando-se igualmente de uma matéria relevante na nossa conceção da sociedade, seria estranho que o assunto ficasse remetido para o mero plano da consciência de cada um e, neste caso, de cada deputado. Claro que os deputados poderão ser confrontados com uma questão que também é de consciência, e os partidos devem saber lidar com isso. Mas os partidos enquanto tal não se podem furtar a este debate e à opinião, deixando a decisão à consciência de cada qual. Se um partido, em matéria de visão de sociedade e do mundo, se alheia de emitir opinião neste particular, então nega a sua razão de ser e coloca sobre os seus representantes uma responsabilidade desproporcionada.
Ademais, é perfeitamente legítimo que, apesar de respeitarmos as opiniões diferentes das nossas, não aceitemos passivamente confiar as decisões politicamente relevantes aos que se alheiam ou manifestam preferências tão diferentes das que são as nossas. Ser tolerante e saber conviver com a diferença não deve ser confundido com a indiferença. O pluralismo não é amálgama: importa que as diferentes visões se organizem de modo coerente para suscitarem estabilidade e confiança. Tudo isso estará em causa no comportamento dos partidos nos próximos dias quando as decisões forem tomadas. Sem dramatismo algum, mas com toda a responsabilidade. Esta não será, para os partidos, a questão pela qual se irão aferir todas as escolhas futuras. Mas será uma questão demasiado importante para não ser tomada como mais uma questão. Não será como muitas outras que tendem a ser vistas como diferentes, mas não decisivas. Esta pesará muito mais do que possa parecer.

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