quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

O povo das ciências sociais



Um problema que „rouba“ cientificidade às ciências sociais tem a ver com a forma como ela define as suas unidades de análise. Dum modo geral, unidades de análise são aquelas coisas que são portadoras da informação que precisamos. Elas não são necessariamente todas as coisas sobre as quais precisamos de informação, mas sim aquelas coisas de entre essas sobre as quais precisamos de informação, que nos dão a informação que queremos. Se parece complicado é porque é de facto. Se eu quero saber que ideias de salvação têm as pessoas que frequentam uma determinada igreja pentecostal, vou falar com essas pessoas. Não vai ser com todas, claro, mas com uma amostra representativa, ou típica. 

Essa amostra baseada nos crentes seleccionados vai constituir a minha unidade de análise porque vou partir do princípio de que essas pessoas são portadoras da informação que preciso. O problema é que alguns cientistas sociais pensam que a ideia de unidade de análise se esgota aqui. É claro que não. Eu podia também fazer uma recolha dos sermões dos pastores e a partir da forma como eles abordam a questão da salvação procurar reconstruir a ideia de salvação que os crentes têm. Nesse caso, a minha unidade de análise seriam esses sermões. Vou ficar ainda com o problema de demonstrar porque a análise desses sermões me confere o direito de generalizar para os que frequentam a igreja, mas esse é um problema que mesmo no outro caso teria, ainda que a amostra fosse representativa e não apenas típica.

Vem isto a propósito da forma como vezes sem conta leio trabalhos académicos que, ao falarem de categorias colectivas, não revelam o mínimo de sensibilidade para a possibilidade de não estarem a discriminar devidamente. Dito doutro modo, noto com uma certa frustração, que os substantivos próprios na base dessas categorias colectivas são tidos como descrições duma essência e não como referências a um conjunto de proposições que descrevem o referente, portanto sujeitas ao teste de validade. Vem daqui a frustração que alguns de nós temos com o tratamento de África como algo homogénio. Essa frustração seria ainda mais legítima se, por exemplo, as mesmas pessoas que gritam “África não é um país!” resistissem à tentação de reduzir “africanos”, “negros”, “brancos”, “mulheres”, “crianças”, etc. a algo essencial, imutável e morfologicamente integrado. Mas esse é outro assunto.

Se isto é um problema sério no trabalho académico, já nem falo da esfera pública. Em Moz há muito que me irrita o uso do termo “povo” – mais tarde substituído por “população” – não só pela sua banalização e instrumentalização durante os tempos gloriosos, mas também pela forma como o termo é usado para conferir autoridade moral a quem fala. No contexto da discussão sobre a paz e guerra em Moçambique há sempre um engraçadinho qualquer que vai aparecer e dizer bujardas do tipo “o povo só quer paz”, “o povo está farto deles”, etc. Que povo e com que direito um Djuwawana qualquer fala em nome do povo? O que me irrita ainda mais nisto tudo é que as pessoas que assim falam fazem-no no contexto de discussões em que algumas pessoas batem palmas ao que o Governo faz e outras batem palmas ao que a oposição armada faz. Quem é, então, povo neste contexto? Ou “povo” é aquele que não participa na conversa, é apenas vítima das acções dos outros? E os guerrilheiros, são povo também? Os soldados?

Já agora, o próprio termo “paz” é também problemático. A “paz” como algo único e essencial não existe, nem mesmo no sentido do “calar de armas”, pois o “calar de armas” também tem várias manifestações. Existem várias formas de “paz” que se não reduzem à simples ausência de guerra. Portanto, quando alguém diz “o povo só quer paz” está a mandar duas bujardas, todas elas baseadas na não discriminação. Que povo e que paz? 

Saber discriminar é uma condição essencial de debates e de descrições úteis. Porque estou no modo "Senegal" deixo aqui o registo dum ode ao espírito de comunidade que naquele país se manifesta de forma impressionante nas confrarias sem que por isso as pessoas se tornem numa massa informe. 

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Comentários

Fernando Chiconela "Saber discriminar é uma condição essencial de debates e de descrições úteis."

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