Irmãos inimigos
A RENAMO nasce, no terreno, em princípios de 1977. E
nasce de um
conjunto de razões, circunstâncias, vontades,
sentimentos e ressentimentos.
Nasce da nova conjuntura geopolítica regional, com a
Rodésia da UDI
desejosa de exercer represálias e de contrabalançar
santuários e apoios para
a ZANU-PF no território moçambicano. Nasce também do
descontentamento de uma parte substancial da
população rural, sobretudo do
centro norte do país, em relação às políticas socialistas
da FRELIMO e ao
seu modo de execução. Nasce ainda da resistência às
perseguições contra os
antigos soldados moçambicanos do exército português,
especialmente aos
GEs (Grupos Especiais) e GEPs (Grupos Especiais
Para-quedistas), forçados
a esconderem-se e a fugir para as matas. E nasce por
fim do desejo de
retaliação e de mudança de uma parte dos colonos,
entretanto refugiados na
África do Sul.
A rapidez dos acontecimentos depois do 25 de Abril e
do 7 de Setembro
seria também decisiva. O vazio brusco deixado pelas
estruturas militares,
políticas e administrativas portuguesas, que a
partir de Lu-saka e da
constituição do governo de transição se evaporaram,
foi ocupado à pressa
pelos guerrilheiros da FRELIMO. E o movimento
216 JOGOS AFRICANOS
armado, formado, a nível de cúpula, por intelectuais
e quadros académicos
híbridos ou mestiços e por uma forte ala de
combatentes e de operacionais
negros, com predominância de shanganes e macondes,
não teve tempo nem
condições para criar o Estado ou, sobretudo, para enquadrar
o país. Foi desta
FRELIMO, que em Abril de 1974 não passara para sul
do Zambeze, que
saíram o partido, a administração civil e os quadros
que vieram substituir os
250 000 portugueses em êxodo forçado e acelerado -
num país de cerca de
dez milhões de habitantes, com 2700 quilómetros de
costa e mais de 700
000 quilómetros quadrados de superfície. Um dos mais
belos e variados
países do mundo, em termos de paisagem e de regiões
naturais.
O descontentamento com as políticas da FRELIMO,
sobretudo no meio
rural, conservador e tradicional, teve um saldo
favorável para a oposição. A
Flower e ao CIO bastou-lhes juntar as peças e armar
e treinar quadros.
O primeiro chefe da RENAMO, André Matsangaíssa, era
um dissidente
da FRELIMO. Como punição pela dissidência, é levado,
no dia 15 de
Setembro de 1976, para o campo de reclusão do
Sakuzi, na Gorongosa, de
onde se consegue evadir. Depois da fuga, organiza
uma expedição contra o
mesmo campo e resgata 400 prisioneiros, que o seguem
para a então
Rodésia. Destes 400, só pouco mais de 25 acabam por
lá chegar.
São estes os primeiros guerrilheiros da RENAMO e é
aqui que nasce a
resistência em Moçambique. Afonso Dhlakama conta
assim os primórdios
da RENAMO e da sua luta:
«Éramos todos militares da
FRELIMO: eu, chefe provincial da
intendência, o André, comandante
de um destacamento de engenharia.
Formávamos um grupo de
descontentes que entenderam rapidamente que o
rumo político que o país seguia
era muito errado. A FRELIMO já nos tinha
identificado e andava em cima de
nós. Faltava apenas motivo para nos
prender. O André foi preso por
alegarem que tinha roubado um motor —
mas na realidade as razões eram
políticas.
Ora nós tínhamos combinado que
tínhamos que arranjar armas para
fugirmos do exército e começarmos
a disparar. Tínhamos também
A GUERRA DOS QUINZE ANOS 217
combinado que, se um do grupo
fosse preso, os outros continuariam até
conseguirem as armas necessárias
para iniciarem a resistência e ir libertálo.
Como o André tinha sido preso há
já algum tempo e nós estávamos
vigiados e não conseguíamos
arranjar armas suficientes, fizemos chegar a
mensagem para que ele fugisse com
a ajuda de alguns familiares que eram
da zona de Sakuzi, onde estava o
campo de reeducação.
O André nasceu na zona da fronteira da província
de Manica com a
Rodésia, falava o shona e conhecia muito bem a
zona fronteiriça. Alguns
familiares nossos da zona da
Gorongosa ajudaram o André a fugir, isto em
Dezembro de 76, e o plano era ele
fugir para a Rodésia. O André fugiu para
a casa de familiares seus, na
província de Manica, localidade de Chirara,
que se situa a cerca de 500
metros da fronteira. Esteve em Chirara 10 dias
a fazer o reconhecimento do
terreno e a ver qual seria a melhor rota para ir
para a Rodésia.
Quando saiu de Moçambique e
entrou na Rodésia foi preso pelas
autoridades rodesianas e ficou 15
dias detido a ser interrogado. Queriam
saber se ele era um espião ao
serviço do Mugabe e da FRELIMO.
O André, que era um jovem forte e
determinado, informou-os que não
era nada disso e foi insistindo em
dizer que tinha um grupo de jovens
militares das FPLM que estavam na
Beira e que precisavam de armas para
lutar contra a FRELIMO.
Numa primeira fase, os rodesianos
recusaram apoiar porque diziam que
não tinham essa política, que
isso para eles não era nada. Depois de algum
tempo, em que o André, depois de
solto, ficou na Rodésia e era vigiado, os
rodesianos pediram-lhe que
trabalhasse para eles. O André primeiro
recusou e nunca disse os nossos
nomes. Mas depois entendeu que era uma
forma de o testarem e acabou por
aceitar. Começou a trabalhar para os
rodesianos na área das
informações e entrava em Moçambique com muita
frequência para identificar bases
e apoios da ZANU. Também não tinha
muitas alternativas, porque era
jovem, queria começar a luta contra a
FRELIMO e precisava de apoios.
Aqui o André já fala em alguns dos
nossos nomes e diz que era
preciso trazer o Afonso (eu) para a Rodésia,
para treinamento.
Tudo isto ocorre no primeiro
trimestre de 77 e eu, nessa altura,
continuava na Beira, mas tinha
comunicação com o André. Era eu que,
218 JOGOS AFRICANOS
por causa do cargo que ocupava,
fornecia armamento aos guerrilheiros do
Zimbabué.
Só nos finais do mês de Abril de
77 é que a Rodésia aceita apoiar a
criação de um movimento de
resistência ao comunismo em Moçambique,
que viria a ser a RENAMO. Nos
finais do mês de Abril de 77, a Rodésia dá
duas armas ao André, duas AK-47.
O André recrutou dois rapazes
moçambicanos, antigos militares da
FRELIMO que tinham fugido de
Moçambique e estavam na Rodésia a
trabalhar nas 'farmas'. Era o
Manuel Matumbura Labssone, natural do
Dondo, de etnia Sena, e o Marcos
Amade, de Catandica, distrito do Báruè.
No dia 6 de Maio de 1977, o André
Matsangaíssa e os dois recrutas
entraram em Moçambique,
dirigiram-se ao campo de reeducação de Sakuzi,
na Gorongosa, onde o André tinha
estado e por isso conhecia bem, e
tomaram de assalto o campo.
Queimaram todas as instalações, que eram de
material tradicional, e trouxeram
mais de 400 pessoas com destino à
Rodésia.
Destas 400 pessoas, o André
conseguiu chegar à Rodésia com pouco
mais de 25, porque muitas delas
não quiseram ir, preferiram arriscar e
voltar para as suas aldeias.
Este grupo de pouco mais de 25
pessoas, com mais alguns moçambicanos,
muito poucos, que foram
recrutados na Rodésia, foi o primeiro
grupo de recrutas da RENAMO.
Na madrugada de 6 para 7 de Maio,
eu sou preso na Beira. Fiquei 4 dias
preso e fui interrogado várias
vezes.
Logo que saí, dirigi-me a casa
dos meus pais, em Magunde, Chi-babava,
para me despedir e informar que
ia para o mato combater a FRELIMO. A
minha mãe reagiu muito mal,
chorou muito e disse que ia perder um filho,
mas o meu pai encorajou-me muito.
Em Julho de 77, deixei a cidade
da Beira e comecei a minha viagem
para me juntar ao André, na
Rodésia. Estive primeiro 17 dias na vila de
Manica, no Hotel Guida, para
reconhecer o terreno e ver qual a melhor
forma e o melhor local para
atravessar a fronteira.
No dia 1 de Agosto de 77, saí da
vila de Manica e entrei na Rodésia, na
madrugada de 1 para 2 de Agosto,
levando comigo dois jovens militares das
FPLM: o João Gaspar, de Sofala,
de etnia Ndau, e o Alexandre Vida, de
Tete, de etnia Nhungué. Levamos
connosco 4
A GUERRA DOS QUINZE ANOS 219
pistolas e atravessamos a
fronteira na zona de Cbimesa, Penbalonga.
Pouco depois de entrarmos na
Rodésia fomos presos, para investigações,
porque o André tinha informado os
rodesianos que eu estava a caminho.
Estive detido na cidade de Mutare
para investigações durante cerca de
duas semanas, sem que o André
tivesse conhecimento. Eles queriam testar e
ver quem era o tal Afonso de quem
o André falava tanto.
Entretanto o André estava a
treinar o grupo que tinha libertado do
centro de reeducação da
Gorongosa, mas em muito fracas condições.
Quando, depois de os rodesianos
terem verificado que eu era mesmo o
tal Afonso, me encontrei com o
André, foi um momento muito emocionante,
e ele nem queria acreditar que eu
estava ali com ele.
Depois de algumas reuniões do
André e minhas com os rodesianos, eles
concordaram em arranjar um campo
de treino permanente, na zona de
Hozi, para treino dos futuros
guerrilheiros da luta pela democracia em
Moçambique.»
Treinados na Rodésia e armados e assistidos pelo CIO
e pelas forças
especiais, os guerrilheiros da RENAMO têm o seu QG
no sopé da
Gorongosa e a sua homeland na província de
Manica, a oeste, enclavada
entre Sofala e o Zimbabué.
Este complexo logístico-militar, na periferia do
maciço da Gorongosa,
cerca de 50 quilómetros a norte do curso do rio
Pungué e no coração das
montanhas de Sofala, foi montado pela RNM, com o
apoio dos SAS
(Special Air Service) rodesianos, a partir de 1979.
Com os seus picos a mais
de 2000 metros de altitude, a Gorongosa é uma zona
de florestas, colinas e
vales, cortada por numerosos cursos de água, bem
coberta pela vegetação de
qualquer observação aérea. E de difícil acesso. Às
vezes, o topo do planalto
emerge algumas centenas de metros acima das nuvens,
assumindo uma aura
mágica e mística aos olhos dos habitantes da região.
E aos de qualquer
mortal.
Foi desta base que, em Outubro de 1979, partiu André
Matsangaíssa para
combater as tropas da FRELIMO e não mais voltar. A
sucessão do líder
morto em combate veio recair no seu número dois,
Afonso Dhlakama.
Enquanto Matsangaíssa era um operacional com o
carisma de chefe à flor da
pele, a ponto dos populares identificarem com
220 JOGOS AFRICANOS
ele o movimento (e chamarem aos homens da RNM «os
Andrés» ou «os
Matsangas»), Dhlakama é um homem baixo de estatura,
com óculos e com a
capacidade de comando mais baseada na persuasão e na
palavra.
«Na altura, o movimento, dentro
da sua orgânica, tinha um conselho
militar, composto pelos
comandantes das bases e dos grupos de
guerrilheiros, que reuniu de
emergência na Gorongosa no dia 21 de
Outubro. Como era natural num
movimento ainda muito jovem, composto
por militares também muito
jovens, eu, como adjunto do comandante André
Matsangaíssa, fui escolhido para
o suceder.» Conta
Dlhakama. E continua:
«Logo nos meus primeiros tempos
como comandante da RENAMO, tive de
enfrentar a maior crise do movimento
porque, logo a seguir à morte do
André, o desânimo foi grande
entre os guerrilheiros e tivemos cerca de 70%
de deserções. Fiquei praticamente
só com os recrutas e tivemos que
começar tudo praticamente do
zero.
Quando o André morre, a RENAMO
tem quase 2000 guerrilheiros, já
bem implantados nas províncias de
Manica e Sofala, mas com a morte em
combate do comandante, o moral
ficou de rastos.»
Mas, em pouco tempo, Dhlakama ganha a luta pelo
poder.
«Logo no mês de Outubro», diz ainda o Presidente da RENAMO,
«concebi e comecei a implementar
um plano muito agressivo de recrutamento
de guerrilheiros. Na base desse
plano, que eu sabia ser de
importância vital para a
sobrevivência do movimento e para honrar a
memória do André, estava uma
política de alianças com os régulos.
Como o meu pai, que ainda é vivo,
é régulo, eu tinha a noção que os
régulos eram, em 79, as pessoas
que mais sofriam com as políticas comunistas
da FRELIMO de perseguição às
autoridades tradicionais. E eu
conhecia bem o poder que os
régulos tinham junto das populações.
Mas a grande dificuldade era um
jovem com vinte e poucos anos
conseguir impor-se junto de
autoridades tradicionais e ganhar-lhes a
confiança. Tinha a vantagem de
ser filho de régulo. Notei também que, na
altura, os régulos estavam fartos
do poder da FRELIMO... e eles acabaram
por depositar confiança em mim.
A GUERRA DOS QUINZE ANOS 221
Até ao final do ano de 79, com um
grande apoio do poder tradicional,
consegui recrutar quase 1000
novos guerrilheiros, porque mouse um
ambiente propício, onde os
recrutados iam arranjar novos recrutas.
Algumas vezes chegavam grupos de
jovens que tinham sido mandados pelos
régulos para vir ajudar a
libertar Moçambique do poder opressor da
FREL1MO.»
Na fase seguinte, as equipas dos SAS rodesianos, encarregadas
de
acompanhar a reinstalação da RENAMO em Maringue, são
o C Squadron,
do capitão Bob McKenna (um veterano norte-americano
do Vietname) e o B
Squadron, do tenente Peter Cole. Os SAS treinaram os
guerrilheiros no tiro
com as AK-47 (Kalash) e no uso do
lança--foguetes RPG-7, as armas
universais da guerrilha. A montagem de bases - com
hospitais, trilhos de
acesso, defesas, escapes para longe e para a
montanha, depósitos
subterrâneos para armas e munições - foi também
executada na altura.
Com os régulos e os camponeses da área hostis à
FRELIMO, a parte
política - a propaganda, o recrutamento, o
enquadramento e a formação dos
guerrilheiros e das populações, que eram a base
humana dos rebeldes — não
foi difícil. Mesmo na penúria, os rebeldes foram
criando formas de manter a
disciplina e a identidade: tinham os seus
«comissários políticos» e a sua
bandeira (com as cinco flechas) que diariamente
içavam e conservavam nos
acampamentos.
Contrastando com as tropas da UNITA, que a partir de
1980 possuíam os
recursos dos «bons» rebeldes (uniformes e
equipamento militar regular), os
grupos de combate da RENAMO ofereciam mais o aspecto
de uma tropa
improvisada. Os registos fotográficos mostram--nos
de t-shirt branca ou
publicitária, àejeans ou de calças militares.
São raros os camuflados. Aqui e
ali, um capacete de mineiro ou uma boina, mas, de
resto, quase todos de
cabeça descoberta. Uns de botas, outros de
sandálias, outros descalços.
Mas revelaram-se bons combatentes, e os seus
formadores rodesianos,
também habituados à escassez e à improvisação,
treinaram-nos bem na arte
da sobrevivência na escassez e na improvisação.
Rapidamente, com raids a
bases da FRELIMO e às povoações nos vales
circundantes, foram-se
abastecendo e reequipando em armas e munições.
222 JOGOS AFRICANOS
Na retaguarda, a partir de Gwelo na Rodésia, a Rádio
África Livre emitia
para Moçambique propaganda contra a FRELIMO e
divulgava os êxitos da
resistência. Os corredores de abastecimento entre
Umtali, na fronteira, e a
base principal da Gorongosa estavam estabelecidos e
funcionavam com
facilidade.
Afonso Dhlakama descreve o modus operandi da
guerrilha de então:
«O armamento que a FRELIMO utilizava era muito
potente: BI Is e
BlOs, canhões 75, carros BM 21 de
40 canos, de fabrico soviético, que
disparavam 40 obuses ao mesmo
tempo. O material era todo de origem
soviética.
Muitas vezes fui obrigado, eu
mesmo, a entrar em combate directo,
quase corpo a corpo, e até nos
socorremos de pedras grandes que
empurrávamos encosta abaixo para
fazer recuar o inimigo. Nós conhecíamos
muito bem a serra e tínhamos a
população do nosso lado, que
nos levava informações e
alimentos. Montávamos emboscadas nas zonas
mais íngremes da serra e quando
eles paravam para descansar nós íamos lá
atacá-los para os desmoralizar.
Actuávamos em grupos muito
pequenos, dispersos pela serra e com
grande conhecimento do terreno, e
eles pensavam que nós éramos como que
espíritos da serra da Gorongosa,
que estávamos em todo o lado ao mesmo
tempo. Um só homem nosso podia
fazer muitos estragos no inimigo naquele
teatro de operações!»
Sobrevivência e escalada
Quando a situação mudou na Rodésia-Zimbabué, com os
acordos de
Lancaster House e a tomada do poder por Mugabe, nos
princípios de 1980, a
RNM correu o maior risco da sua história. As transições
são sempre incertas
para quem deixa de ser útil e ainda não é perigoso.
Mas o negócio concluído
por Flower com os sul-africanos avançou a partir de
Fevereiro de 1980.
Nesse aspecto, 1980 foi um ano ambíguo: por um lado,
as FAM (Forças
Armadas de Moçambique), na sequência do ataque em
que Matsangaíssa foi
morto e várias bases da RNM ocupadas e destruídas,
A GUERRA DOS QUINZE ANOS 223
conseguiram uma série de êxitos contra os rebeldes
que tinham perdido os
seus apoios na Rodésia. Com alguma razão mas também
com algum wishful
tbinking, o governo de Maputo pensou que
sem o apoio da Rodésia se
acabava a rebelião. Baseada na consideração
ideológica de que os seus
oponentes tinham sempre que ser «maus» (logo,
instrumentos do exterior) e
confiada na amizade de Mugabe e da ZANU--FP, os
novos detentores do
poder no Estado vizinho, a FRELIMO convenceu-se que
o extermínio da
guerrilha eram favas contadas. De resto, alguns
sucessos no terreno
pareciam confirmar esta teoria, como o ataque a uma
importante base da
RNM, em Sitatongo, em Julho de 1980, com 272
rebeldes mortos e 300
feitos prisioneiros. Na fuga precipitada, os
dirigentes da RENAMO
abandonam documentação importante e Dhlakama perde
os seus preciosos
óculos.
Mas logo em 1981, veio o início do apoio militar
sul-africano e os
guerrilheiros estavam de volta e em força. Os seus
formadores eram agora
os homens do 5th Reconnaissance Regiment, da SADF,
na base de
Phalaborwa, no Transvaal oriental. Desta vez, dados
os novos pontos de
apoio, bem mais a sul, começavam a actuar na Frelimoland,
nas províncias
de Inhambane, Gaza e Maputo. Aí não contavam com o
apoio das
populações, como a norte do Zambeze, mas, mesmo
assim, rapidamente
criaram uma infra-estrutura logística. Por esta
época, os guerrilheiros seriam
entre 5000 a 7000 por todo o país, contando a
FRELIMO com um exército
de cerca de 20 000 a 25 000 homens, basicamente
formado pela velha
estrutura da guerrilha e apetrechado com a doutrina
e o equipamento
soviéticos, que não seriam os mais indicados para inspirar
e servir a contraguerrilha.
Isto levou, a partir de Março de 1982, a uma
reorganização das
FAM (Forças Armadas Moçambicanas) de modo a poder
responder à
mudança táctica dos guerrilheiros. Antigos
combatentes da FRELIMO
foram chamados às fileiras para organizar e
enquadrar uma milícia
territorial. A RNM, que por esta altura passou a
RENAMO, deixava os
ataques a aldeias e as emboscadas e começava a
atacar povoações maiores
com crescente eficácia e violência, com os quadros e
os responsáveis
políticos partidários do Governo executados
sumariamente.
No sul, onde as populações eram tradicionalmente
mais ligadas à
FRELIMO por razões históricas e étnico-políticas, a
intimidação era
224 JOGOS AFRICANOS
necessária aos rebeldes. Por vezes, faziam
transferências forçadas de
populações ou recrutavam-nas, também à força, para
os servirem. A guerra
assumia aspectos ancestrais, primitivos, chocantes
para os parâmetros
civilizados.
Na nossa forma ocidental de olhar estes conflitos,
acabamos sempre por
ter um certo preconceito a favor do lado da lei e da
ordem - ou do lado que
usa os meios mais modernos, cirúrgicos e assépticos
de matar.
Independentemente até da nossa posição ideológica. O
piloto de um jacto ou
bombardeiro que sai de manhã, de uma base moderna,
que é da nossa nação,
da nossa cor, da nossa nacionalidade, para
bombardear um acampamento
guerrilheiro ou uma aldeia numa zona rebelde, em
terra de ninguém, é mais
decente, mais limpo, mais militar, que o
guerrilheiro que matou à catanada
ou metralhou de perto gente de uma outra aldeia. E
contudo, o «nosso»
piloto também mata, mutila, fere e inutiliza à
distância civis inocentes. A
distância, o não ver as vítimas, absolve, parece
desligar a causa da
consequência, tornar a guerra melhor...
Também por isso a guerra de Moçambique, até pela sua
baixa
intensidade tecnológica, pela sua fragmentação em
pequenas unidades, pelos
poucos recursos dos seus combatentes, nos pareceu
mais sangrenta e
primitiva que a de Angola.
Brest-Litovsk no Incomati
Os anos 80 mostram a linha de um conflito
intermitente. Como em
Angola, é a componente externa - aqui sobretudo
regional - que vai
marcando e definindo os ciclos da guerra. A partir
de 1982, a RENAMO
escalou e foi alargando o terreno das suas operações
a quase todas as
províncias do país. Na primeira parte deste período,
o apoio sul-africano foi
claro e sem grandes disfarces. Em 1984, sob grande
pressão da guerrilha,
Machel decide avançar para o seu Brest--Litovsk: os
Acordos de Incomati.
Nestes, os governos de Pretória e de Maputo
comprometem-se a não apoiar
acções armadas dirigidas contra o outro e a não
permitir a permanência nos
respectivos territórios de elementos ou movimentos
hostis. O que queria
dizer que a
A GUERRA DOS QUINZE ANOS 225
Defense Force ia ter que deixar de apoiar e treinar
a RENAMO e que o
ANC teria de ser expulso de Maputo.
O acordo foi assinado em 16 de Março de 1984.
Desencadeou-se então
alguma polémica no campo socialista, com acusações
de traição vindas de
todo o mundo e dirigidas ao governo de Maputo pelos
ze-lotas do marxismo
ortodoxo. Também na Africa do Sul, a nível do núcleo
no poder, as coisas
não foram fáceis. Os militares da Defense Force, com
o general Viljoen à
frente, consideraram que este acordo, no momento em
que foi assinado, ia
roubar-lhes a oportunidade de uma importante
vitória. Estavam certos de
que os seus protegidos da RENAMO, com mais algum
tempo e esforço,
poderiam asfixiar as cidades, incluindo a capital, e
tomar o poder. Para os
compensar, o presidente P. W. Botha fechou os olhos
a uma remessa maciça
de armas e munições que precedeu a assinatura dos
Acordos. Em poucas
semanas, os rebeldes receberam um forte
reabastecimento.
Na verdade, Incomati acabou por aproveitar mais a
Maputo que a
Pretória. A sobrevivência do regime de Machel estava
em risco e a
RENAMO representava, ao tempo, um perigo muito maior
para o governo
da FRELIMO que o ANC em Maputo para o governo branco
da Africa do
Sul.
Assim, Samora Machel controlou sem dificuldades os
seus bard--liners
mais obtusos e conseguiu sobreviver. Tal como Lenine
em Brest-Litovsk,
Samora tivera que ceder para sobreviver. Entalado
entre os alemães e os
«brancos» Lenine cedera aos primeiros, ignorando
pressões internas. E
também com os militares alemães, com Hindem-burg e
Ludendorff à frente,
a pressionarem o Kaiser para liquidar os
bolcheviques, enquanto os
diplomatas do Ministério dos Negócios Estrangeiros
sustentavam a sua
sobrevivência. Pelas mesmas razões que Pik Botha
iria sustentar a
sobrevivência da FRELIMO.
Mas se Incomati impediu um desfecho trágico para o
governo de
Moçambique, não lhe resolveu o problema. Na verdade,
na época, a
RENAMO já tinha uma massa crítica de guerrilheiros e
militantes e uma
base de apoio nas populações do Centro e
Centro-Norte de Moçambique
que a tornavam auto-suficiente. Já estendera as suas
operações para sul do
Zambeze e até Gaza e aos arredores de Maputo e, para
norte, para a
Zambézia, Quelimane, Nampula e até às fronteiras
226 JOGOS AFRICANOS
do Niassa e de Cabo Delgado. E tinha mais de 12000
guerrilheiros com
experiência de vários anos de luta armada.
Um cobertor curto
A estrutura logística do movimento rebelde não fora
atingida. Na
Gorongosa mantinha-se um núcleo central de bases
militares - a principal, a
Casa Banana, ficava no sopé da montanha e albergava
um milhar de
guerrilheiros. Nesta base havia um pequeno aeródromo
com uma pista de
800 metros bem camuflada que podia receber pequenos
aviões de transporte,
uma central de telecomunicações para o exterior, com
um emissor
suficientemente potente para Dhlakama contactar com
o seu pessoal em todo
o país, e até uma pequena tipografia para imprimir
panfletos. E
aparentemente, quer por via das dirty operations,
quer a partir de apoios
civis, continuavam a chegar apoios da Africa do Sul.
Nesta altura, quem reequilibra a situação é o
Zimbabué, ao reforçar o seu
contingente dentro de Moçambique de 8000 para 12 000
homens, quase uma
quinta parte das suas tropas. As tropas
zimba-bueanas não só defendem o
corredor da Beira como participam activamente em
operações conjuntas
com as FAM, contra a RENAMO.
Em Agosto-Setembro de 1985, uma destas operações
alcança um sucesso
inesperado e simbólico, tomando de assalto a Casa
Banana, matando
algumas centenas de guerrilheiros e ocupando a área,
incluindo a pista.
Sucesso relativo, argumenta Dhlakama, embora outras
bases da RENAMO,
nas províncias de Sofala, Maputo, Zambézia e
Inhambane tivessem sido
depois atacadas e destruídas: Indoro, Vuru-ca,
Xichocoxa, esta última, a
principal base da RENAMO no sul.
Comenta o líder da RENAMO:
«A Casa Banana tornou-se mítica
para história da guerra civil em
Moçambique porque foi a primeira
base em que tínhamos já vários cordões
de segurança que a tornavam
inacessível ao inimigo. Situava--se a cerca de
30 quilómetros a leste da
montanha, nas margens do rio Nhadué, na zona
de Zongóruè. Foi cuidadosamente
planeada, inclusive para ter a sua parte
civil, com escolas, postos de
saúde, adminisA
GUERRA DOS QUINZE ANOS 227
tração pública e — o que foi um
dos nossos orgulhos enquanto combatentes
— um moderníssimo sistema de comunicações.
A propaganda comunista da FRELIMO
que refere o famoso ataque bem
sucedido a Casa Banana foi, em
parte, uma invenção!
O que na realidade existiu foi
que, em Agosto de 85, houve um ataque da
FRELIMO a Casa Banana, mas muito
mal preparado e mal sucedido.
A grande referência de Casa
Banana era a pista de aviação de Canganitore,
no Parque da Gorongosa, que
ficava a cerca de 10 km da base.
Era aqui que muitos jornalistas
estrangeiros aterravam para estarem
connosco alguns dias, viviam
connosco, comiam connosco, dormiam
connosco, sem nenhum problema.
A pista de Canganitore era
visível do ar e a FRELIMO preparou um
ataque tendo como referência as
coordenadas da pista para os primeiros
bombardeamentos aéreos. Por isso
quando identificaram a localização de
Casa Banana e começaram a
bombardear a base, nós já estávamos muito
longe. Mais uma vez gastaram
bombas só para destruir palhotas. Foi neste
contexto que a FRELIMO pôs a
circular que o Dhlakama tinha fugido de
Casa Banana montado numa
motorizada, o que, para quem saiba o que é
uma guerrilha, até dá vontade de
rir! Ir de moto para fazer barulho, deitar
fumo e deixar um rasto no
chão?!... Seria fatal para um líder se pensasse
assim!
Nós saímos de Casa Banana, sim
senhor! Seria suicídio não o fazer
quando somos guerrilheiros e
estamos a ser bombardeados por aviões. Mas
foi a pé, como sempre fizemos, e
fomos para um local chamado
Nhamadjambué, que fica a 25 km de
distância.
Esta foi sempre a nossa
estratégia: em caso de bombardeamento
deixávamos a base e íamos ficar a
alguns quilómetros de distância.
Depois desta nossa retirada
estratégica de Casa Banana, a FRELIMO
mandou pára-quedistas
zimbabueanos para fazerem o reconhecimento da
área e confirmarem a nossa saída.
E até o Samora Machel veio de Maputo
de avião para se sentar na
varanda da minha casa e tirar fotografias. Nessa
altura ele afirmou que tinha
«partido a espinha aos bandidos armados!».
Ele devia ser muito mal
aconselhado ou não tinha noção do que era uma
guerra de guerrilha! Já quando
fomos forçados a fugir da base de Sitatonga
2, em 80, e que um dos meus
228 JOGOS AFRICANOS
secretários deixou ficar um par
de óculos meus para trás e alguns
documentos referentes ao
movimento, isso foi aproveitado pela FRE-LIMO
para fazer propaganda e afirmar
pública e internacionalmente que o
Dhlakama tinha sido morto na
ofensiva. Depois disso 'mataram--me' muitas
mais vezes! Mas, muitos dos que
me 'mataram' já lá estão, e eu, mesmo que
eles não gostem, ainda aqui
estou!
Enquanto Samora estava a festejar
em Casa Banana, nós estávamos a
poucos quilómetros a reorganizar
a nossa estratégia.
Foi a partir da base central de
Casa Banana que atacámos e conquistámos
a vila de Maringué. Em resposta,
as forças da FRELIMO
concentraram muitas tropas
zimbabueanas em vila Paiva de Andrade
(Gorongosa).
A partir dessa data, Maringué
passou a ser uma das nossas zonas
libertadas, onde tínhamos duas
bases, uma perto da povoação e outra mais
afastada. A partir de 85, vou
instalar-me na base presidencial de Maringué,
que passou a ser o nosso
quartel-general.
Eles estavam sempre a 'atacar com
sucesso', sempre a apresentar
guerrilheiros presos, armas
recuperadas, matavam o Dhlakama quase todos
os meses, mas na realidade, no
terreno, levavam pancada em todo o
território nacional e foram
obrigados a vir negociar com aqueles que
gostavam de chamar de 'bandidos
armados', os 'matsangas'. E quando
vieram negociar não podiam sair
dessas cidades deles, e mesmo nas cidades
dormiam com medo. Alguns
diplomatas que estavam em Maputo chegaram
a ir de helicóptero dormir à
Africa do Sul, porque o governo estava a
tremer, não garantia protecção, e
a RENAMO estava na Catembe, nas
outras entradas de Maputo, ás
portas da capital!»
Como é clássico neste tipo de conflitos - e como os
exércitos europeus,
americanos e soviéticos aprenderam à própria custa
noutras contraguerrilhas
—, muitas vezes a concentração de esforços num lado
leva ao
desguarnecimento e vulnerabilidade noutros pontos
estratégicos.
É a história do cobertor curto, que ou bem que tapa
os ombros ou bem
que tapa os pés. Enquanto a ZANLA ou as FAM marcavam
pontos com
estas operações, a RENAMO atacava noutras províncias
e noutros locais,
como no Caia e em Marromeu. E assim, em pequeA
GUERRA DOS QUINZE ANOS 229
nos grupos, os homens da RENAMO passaram à
contra-ofensiva na «sua»
Gorongosa, a partir das alturas para onde tinham
refluído. O tempo que se
seguiu seria de toma, retoma, conquista e
reconquista de posições.
Num esforço militar para conter a RENAMO, Samora
Machel negociou
e pressionou os seus homólogos da Tanzânia e do
Malawi para que se
juntassem aos zimbabueanos. Os tanzanianos enviaram
tropas para o Norte
e o velho presidente do Malawi, Hastings Banda, a
contra-gosto, acabou por
mandar também um batalhão para apoiar a protecção da
linha de Nacala,
que ligava o seu país ao mar.
Em Outubro de 1986, Samora Machel e um número
importante de
membros do Governo e quadros da FRELIMO morriam num
acidente aéreo,
cujas causas são, ainda hoje, tema de discussão.
Machel foi substituído,
quase sem hesitação, por Joaquim Chissano, ministro
dos Estrangeiros e
considerado mais pragmático que o populista e
carismático primeiro
presidente.
Corriam, também, na época, internacionalmente e no
Bloco de Leste,
grandes mudanças determinadas pelas reformas de
Gorbachev. Ou melhor,
determinadas pelos efeitos não previstos e perversos
dessas reformas, que
iriam causar o desmantelamento do comunismo e
sobretudo, e ainda antes,
uma atitude diferente em relação ao campo socialista
mundial, onde
prevaleceria a «doutrina Sinatra» — cada um por si e
todos por nenhum.
O envolvimento dos soviéticos em Moçambique, embora
significativo,
nunca tivera nada a ver com o grau de cometimento
político--militar em
Angola. Tinham fornecido e equipado materialmente o
exército mas teriam,
no país, cerca de 700 conselheiros junto das FAM e
praticamente não
intervinham em operações. Outros cooperantes
político-militares incluíam
alemães, romenos, búlgaros, cubanos, etc.
Outros ventos
Chissano vinha decidido a mudar as políticas da FRELIMO,
quer em
relação ao exterior, quer, em termos ideológicos, a
nível interno.
230 JOGOS AFRICANOS
Quanto à política doméstica, abandonou o rigor
socialista de Machel e
iniciou a liberalização, não só da economia, como
daqueles aspectos
doutrinários e práticos mais repudiados pelas
populações - como as «aldeias
comunais», a deslocação forçada de populações, as
medidas anti-religiosas e
hostis aos chefes tradicionais, tudo factores que a
RENAMO soubera usar
para angariar apoios entre os descontentes. O General
Alberto Joaquim
Chipande fala desta mudança interna:
«Aí, depois de Incomati,
dissemos: 'Os sul-africanos assinaram o
acordo, mas as coisas continuam
difíceis... tem que haver mais cúmplices na
região! Qual é o posicionamento
de outros países da região aqui?' E
tivemos então que jogar com essa
política toda. Os nossos inimigos estavam
também aqui, no país, agora quem
eram esses? Fomos ver que eram os
moçambicanos subestimados.
Tivemos que começar a rever o nosso próprio
partido FRELIMO. A definição filosófica
do nosso partido. O partido
FRELIMO é de quem? Se é do povo,
nós temos que ver as definições. Se
realmente estamos a incluir todo
o povo ou estamos excluindo. Na
FRELIMO discutimos e concluímos
que certas definições no nosso partido
tinham que ser claras. Um partido
marxista-leninista... que tipo de
marxismo? Que tipo de leninismo?
O que é isto? Forque não à maneira
moçambicana, em conformidade com
a relação social no nosso país, com os
estratos do país? Então começámos
a mexer o programa do nosso partido e
a eliminar tendências
divisionistas. Era tão rígido! Membro do partido: n.°l,
o sacrifício, n.° 2, o benefício.
Membro do partido não pode ser religioso,
não pode não sei o quê, não pode
ter uma loja... Era muito duro! Sentámos
na FRELIMO e começámos a ver:
então esses membros que são religiosos,
vão ficar de fora? Esse que tem
uma loja, esse que tem carro, fica fora?
Começámos a pensar em rever a
nossa Constituição, a primeira com o
Samora, a rever tudo aquilo para
alterar a Lei Mãe. Só alterámos a
Constituição depois, em 99, mas
já tínhamos começado esse processo, já
tínhamos começado a mudar algumas
coisas para que o partido fosse um
partido de todos, partido do
povo. Começámos dali, e dali então
encontrámos o campo. Definição de
quem é moçambicano, de quem é
membro do partido. E definimos
também quem eram os aliados, quais os
importantes, começámos já a rever
as coisas de uma forma real dentro do
esquema do sistema
A GUERRA DOS QUINZE ANOS 231
moçambicano, na diversidade e
complexidade da sociedade moçambicana,
para abarcarmos todos. Somos
muitos estratos sociais, de estratos sociais
diferentes, com hábitos
diferentes, cada qual tinha que encontrar, se
acomodar lá na Lei Mãe.»
Entretanto a RENAMO também caíra em excessos de
violência,
nomeadamente no Sul, nos casos de Homoine, Manjacaze
e Taninga, todos
na segunda metade de 1987, que tiveram uma
repercussão internacional
muito negativa, sobretudo entre os norte-americanos.
Graças a estas políticas internas e a uma acção
externa dirigida aos
europeus e americanos, com vista a isolar a RENAMO e
a demonstrar aos
países estrangeiros que a evolução do regime iria no
sentido de uma
progressiva liberalização económica e política,
Chis-sano conseguiu tornarse
popular no mundo ocidental, e Moçambique passou a
ser um dos países
predilectos das ONGs. Na época, 75% do PNB do
país vinha da ajuda
externa. E subsistia também a ideia de desarmar a
oposição armada,
realizando o programa do Governo, de Junho de 1989,
que consagrava estas
medidas.
E era também o fim da Guerra Fria, com o novo vento
dominante a
querer agora varrer os conflitos periféricos. Só
que, ao contrário de Angola,
em Moçambique não havia soviéticos e americanos
envolvidos como irmãos
mais velhos dos contendores, irmãos que pudessem, na
hora, ser os
impulsionadores do processo de reconciliação e os
mentores da paz interna.
Militarmente, caminhava-se para a exaustão e para o
beco sem saída. As
forças em presença equilibravam-se, com a RENAMO com
mais de 15 000
guerrilheiros por todo o país e a FRELIMO com mais
de 30 000, num
exército que agora recebia também formação de países
ocidentais como a
Grã-Bretanha e Portugal. E a estes devem ainda
juntar-se os mais de 10 000
zimbabueanos e os contingentes de tanzanianos e
malawianos. De qualquer
modo, tratando-se de guerra subversiva, os números
deixavam os
governamentais aquém daquele rácio funcional de 10
para 1, essencial para
conter e neutralizar uma guerrilha. Mas também para
a guerrilha, depois das
tentativas frustradas de estrangular Maputo e de
conseguir a implantação
continuada no Sul, não parecia haver abertas para
uma vitória militar ou
para um colapso do governo e da administração. Assim
sendo, a
232 JOGOS AFRICANOS
guerra, a continuar, iria degradar-se cada vez mais
em termos de material e
equipamento e iria escalar em termos de brutalidade
e destruição. Era o
costume. Quanto mais primitivas as armas, mais
relaxado o comando e o
controlo, maior a ferocidade e o número de
vítimas...
A paz como último recurso
Nestas circunstâncias urgia começar a pensar na paz.
Até então, do lado
do Governo, tinha havido, sobretudo até à morte de
Machel, uma grande
intransigência em relação à ideia de negociar com
aqueles que eram
considerados - só e apenas — os «contras do apartheid»
e os «bandidos
armados» da África do Sul e da revanche colonialista.
Chissano, mais pragmático, e sobretudo mais liberto
em relação ao
passado, por ser um sucessor e estar a começar uma
nova etapa, sentia-se à
vontade para sondar sensibilidades entre os seus
camaradas do Bureau
político. Na verdade, os chefes militares, porque
experimentavam as
dificuldades no terreno e tinham eles próprios sido
guerrilheiros, e os civis,
porque tinham experiência política e uma formação
teórica leninista, sabiam
que a guerra não era vencível militarmente e que o
país caminhava para o
colapso. Sabiam também que, com o fim da Guerra Fria
e da
internacionalização dos conflitos, os países que não
os resolvessem a tempo,
arriscavam-se a caminhar para a fragmentação e ficar
à margem de qualquer
política de desenvolvimento e reconstrução.
Entretanto, alguns albergavam ainda a esperança de
que as políticas de
liberalização político-económicas, a abertura dos
anglo--saxónicos, a falta
de preparação política da RENAMO, contassem a seu
favor para ganhar os
apoios ocidentais e mesmo o da Africa do Sul, que
entrava agora também
num caminho de reformas. Para as negociações,
Chissano sabia ter a
oposição dos doutrinários mais radicais, como
Marcelino dos Santos, Sérgio
Vieira e Jorge Rebelo. Mas outras figuras muito
importantes do partido,
como Armando Guebuza, o primeiro-ministro Mário
Machungo, Jacinto
Veloso e, sobretudo, o núcleo duro dos chefes
militares da guerrilha e das
FAM,
A GUERRA DOS QUINZE ANOS 233
como Alberto Joaquim Chipande e Raimundo Pachinuapa,
apoiavam o
princípio realista da necessidade de uma negociação
com os guerrilheiros,
embora não entrassem em detalhes quanto aos termos e
ao tempo desta.
Maputo era um enclave animado pelos cooperantes de
cerca de 30
ONGs, pelos funcionários das organizações
internacionais e por dezenas de
embaixadas, e a situação no país, sobretudo fora da
capital, tornava-se cada
vez pior. Alguma coisa teria que acontecer.
Por essa altura, (1987-88) eu já estava bem dentro
do processo moçambicano:
já conhecia a RENAMO, os seus representantes, os
seus
agentes, os seus amigos em Portugal, na Europa e nos
Estados Unidos.
Tinha enviado o Eduardo Mascarenhas a entrevistar
Dhlakama, tinha
contacto com a equipa dos serviços portugueses que
tratava do problema, ia
sendo visitado regularmente pelos emissários da
guerrilha e facilitava-lhes
contactos e acessos na Europa e nos Estados Unidos.
Por todos estes
contactos e por um processamento caudal de
informação sobre a
organização, apercebia-me de uma série de
rivalidades e tensões, naturais ou
estimuladas, entre os quadros exteriores da RENAMO.
Outro caso tenebroso
O ano de 1987 fora um ano de várias mortes de
dirigentes da RENAMO
no exterior: como o João Ataíde e o Mateus Lopes,
que eu conhecera bem
em Lisboa e que desapareceram num estranho acidente
de viação no
Malawi. Em Março de 1988, dera-se a deserção para a
FRELIMO de Paulo
Oliveira, que a pedido de Evo Fernandes eu empregara
n' O Século como
redactor do Internacional.
E, sobretudo, também em 1988, ia dar-se o assassinato
do próprio Evo,
acto que me impressionou muito pelas circunstâncias
singulares que o
rodearam e por se tratar de um velho amigo. Na manhã
de segunda-feira, 18
de Abril, a Carmo Jardim ligou-me: acabara de
receber um telefonema da
Yvete, mulher de Evo, muito inquieta, pois este, até
às oito da manhã, não
regressara a casa. Tememos que ele tivesse sido
raptado. A minha primeira
reacção foi indagar dos voos
234 JOGOS AFRICANOS
para Moçambique, da LAM, na véspera, domingo.
Averiguei as circunstâncias
da partida e apurei que o avião, já na pista,
demorara algum
tempo a partir. Como se esperasse por alguém.
Através dos contactos nas
embaixadas dos EUA e da Africa do Sul procurámos
verificar situações.
Falei também com o pessoal da inteligência
portuguesa. O adido militar da
África do Sul prontificou-se a tentar perceber o que
se passara.
Mas nada de esquisito foi observado. Também, através
de Maputo, o
feedback era no sentido de não haver
movimentações anormais à chegada do
avião, como seria de calcular se viesse um «raptado»
a bordo.
Conferenciámos - o núcleo de amigos do Evo e os
membros da restrita
comunidade, entre nacionais e estrangeiros, com
interesse no problema. O
Evo fora jantar, mas não dissera à Yvette com quem.
Falei com o Ernesto
Moura Coutinho, amigo e advogado do Evo e da Yvete
Fernandes, e
pusemo-nos em contacto com o Dr. Orlando Romano
então director da
DCCB (Direcção Central do Combate ao Banditismo da
Judiciária) que
estava a chefiar a investigação do caso. E estávamos
com ele - o Ernesto e
eu - quando se soube que tinham encontrado o cadáver
do desaparecido nas
imediações do Guincho. A Yvete estava também lá, na
Judiciária, mas
achámos melhor não lhe dar a notícia - ou não
tivemos coragem de o fazer.
Infelizmente, veio a saber da pior maneira: pela
telefonia, no regresso a casa.
A morte do Evo, como se veio a apurar, fora uma
operação de subcontratação
para a SNASP (Serviço Nacional de Segurança
Popular),
executada por dois indivíduos com conotações
marginais - Alexandre Xavier
Chagas e Joaquim da Conceição Messias. O Evo fora
jantar com o Chagas
ao Restaurante Beira-Mar, em Cascais. Se o Chagas
pretendera aliciá-lo e
encorajá-lo a desertar ou ia já com o objectivo de o
assassinar, não se soube.
Na véspera dos acontecimentos, na sua reclusão em
Maputo, o Paulo
Oliveira fora perguntado, por um contacto da SNASP,
se o Evo costumava
andar armado.
Mas porquê o recurso ao assassinato, num país
europeu e deixando
pistas, um comportamento a que a segurança do estado
moçambicano - nos
anos da guerra — dirigida sucessivamente por Jacinto
Veloso, Sérgio Vieira
e Mariano Matsinhe, nunca recorrera? Pelo menos em
Portugal...
A GUERRA DOS QUINZE ANOS 235
Continuo a pensar - e disse-lho várias vezes
pessoalmente - que o Evo,
que além de inteligente e fisicamente corajoso, era
um optimista, não se deu
conta que entrara numa zona de alto risco, perante
adversários nem sempre
racionais e susceptíveis de pânico. No
fim-de-se-mana seguinte - que seria o
de 23-24 de Abril —, ele iria, em princípio, com
Dhlakama à Alemanha, a
Munique, para verem Franz-Joseph Strauss. Evo
depositava grandes
esperanças neste encontro com o líder da CSU bávara
para apoiar
financeiramente a constituição de uma ala política
da RENAMO. No seu
entender, esta ala política era o elemento que
faltava ao movimento
guerrilheiro para ser uma alternativa de governo à
FRELIMO. Ora isso era
forçosamente sabido por Maputo. Além do mais, o Evo
era o homem
indicado para fazer pontes e tinha as bênçãos da
equipa da inteligência
militar sul-africana que seguia o dossier Moçambique,
liderada pelo
brigadeiro Van Niekerk. Terá sido que, entrando em
ansiedade e tomando
medidas de antecipação, alguém com poder para o
fazer teria activado uma
operação que já estaria desenhada há algum tempo?
Paulo Oliveira, o
dissidente (ou o infiltrado do SNASP na RENAMO, como
ele prefere
explicar a sua conduta no seu livro de memórias)
indica que a operação de
liquidação de Evo Fernandes, embora executada no
tempo de Matsinhe, fora
já planeada por Sérgio Vieira. Confrontado com estas
acusações, Vieira veio
negar indignadamente que alguma vez tivesse
concebido ou ordenado tal
tipo de operação e que ela viesse da parte da
FRELIMO. Mas as
investigações desenvolvidas em Portugal por Orlando
Romano e pela
DCCB, com o apoio da INTERPOL, levaram à captura de
Chagas em
Marrocos. No processo estabeleceu--se um linkage com
um diplomata
moçambicano em serviço em Lisboa, o terceiro
secretário Rafael Custódio
Marques, que se apurou ser o mandante e pagante da
operação, o que levou à
sua expulsão do nosso país, em Março de 1989. E o
primeiro-ministro
Cavaco Silva, visivelmente incomodado pelo caso,
adiou a sua visita a
Moçambique, programada para Setembro de 1989. Chagas
foi condenado a
18 anos de prisão e Messias a 8 anos e meio.
Na verdade, a questão da representação política da
RENAMO levantara
sempre, no exterior, uma certa confusão e conflito.
Os sul--africanos não
queriam patrocinar uma ala política que lhes
retirasse
236 JOGOS AFRICANOS
a influência que tinham sobre a RENAMO-operacional,
à qual tinham um
acesso quase exclusivo. Mas também percebiam o
incómodo da situação.
Evo Fernandes era o seu preferido, na confusa
galáxia de apoios,
representantes e amigos que pretendia apoderar-se
dos hearts and minds de
uma das mais eficazes guerrilhas africanas.
Era uma situação complicada, com uma enorme fuga à
responsabilidade,
que fomentava também muitas lendas urbanas sobre a
guerrilha
moçambicana e a sua «inexistência política», e
contribuía, cada vez mais,
para criar à sua volta uma espécie de mito de
inacessibilidade que mais não
era que o jogo dos Serviços, fazendo caixa para
encarecer o seu exclusivo.
Um jogo que tinha de ser finalmente desvendado e
rompido, como condição
- não suficiente, mas necessária - para a paz.
11 A PAZ
ROMANA
Caminhos na floresta
Os caminhos da paz em Moçambique vão começar
informalmente.
Também por isso são indistintos e difíceis de
retraçar, como aqueles
Holzwege - caminhos na floresta, ou
caminhos que não levam a parte
nenhuma - da epígrafe que Martin Heidegger escolheu
para juntar alguns
dos seus mais belos périplos filosóficos.
Estes caminhos foram diversos, pioneiros, originais,
públicos e privados.
Divergentes à partida, e ditados - como os da guerra
- por razões
desencontradas e contrapostas: pelo interesse e pela
generosidade, pelo
cansaço e pela esperança, pela ambiguidade e pela
transparência, pela razão
e pelo oportunismo, por sentido de justiça e por
vaidade e sede de
protagonismo.
Talvez pela falta de envolvimento de grandes poderes
no conflito, ou por
ser o recurso à paz a última instância para uma
guerra onde não se viam já
vitórias, ou ainda por ocorrer este princípio
negocial num tempo de grandes
mudanças, no Verão de 1989, quando no Leste da
Europa tudo começou a
mexer e, em Novembro, o Muro de Berlim foi derrubado
e acabou a Guerra
Fria.
Nesse ano de 1989, a situação político-militar em
Moçambique era o
impasse. A guerra continuava, mas era cada vez mais
claro que a
238 JOGOS AFRICANOS
RENAMO não tinha força militar nem política para
derrubar o partido do
governo. A FRELIMO atenuara os aspectos mais
impopulares da sua
governação, consolidara apoios ocidentais, contava
com tropas mais
preparadas e com um corpo de forças aliadas da
região. Mas também
ninguém na área do poder, fora da retórica da
propaganda, acharia possível
acabar com os guerrilheiros ou mesmo assegurar,
contra eles, mínimos de
segurança interna que permitissem uma recuperação da
economia. Com as
comunicações cortadas, as cidades a viver em
enclaves e as populações
errantes, às vezes fugindo aos guerrilheiros e aos
soldados, impunha-se uma
solução para a degradação do país.
Nestas circunstâncias, a classe política dirigente
põe a questão das
negociações. Para a oposição armada as negociações
são sempre bem
vindas: ou porque delas se espera uma desmoralização
das tropas
governamentais, que começam a pôr o problema de
morrerem num conflito
que tem os dias contados; ou porque, simplesmente,
os rebeldes passam a
ser reconhecidos, dando um salto político no caminho
da dignidade e da
legitimidade.
Para o governo de Moçambique - e para todos os
governos —, a questão
é a contrária: os bandidos armados, os marginais, os
terroristas, que até aí
foram tratados como um caso de polícia, são
reconhecidos como opositores
políticos armados, gente com quem se passa a falar
de igual para igual.
Chissano auscultou os seus pares e percebeu que
entre eles, com
excepção dos ideólogos mais ortodoxos, se sentia a
necessidade de achar
uma solução negociada. Isto foi ratificado em
linguagem algo cifrada pelo
5.° Congresso da FRELIMO de Junho de 1988: o
Presidente tinha cobertura
para começar.
Lembra Joaquim Chissano:
«Também eu, pessoalmente, fiz a
consulta sobre as próprias negociações,
já fora da constituição, à
população. Nas várias visitas que eu fazia
aos distritos — às províncias e
distritos - eu
conversava com a população
em comícios sobre a ideia de um
diálogo com a RENAMO, um diálogo
directo. Aqui foi onde eu
encontrei uma certa resistência. E lembro-me de
um episódio, num distrito da
província de Zambeze,
A PAZ ROMANA 239
em Alto Molocué. Eu levava comigo
alguns diplomatas estrangeiros — eu
costumava fazer isso que era para
eles conhecerem o país real — e lá a
população mostrou-me o estado em
que vivia: não tinha roupa e falava-me
de um rio, que era a sua fonte de
água mas que já tinham deixado de utilizar
porque achavam que o rio estava
poluído de sangue. Porque quando a
RENAMO matava as pessoas
lançava-as para aquele rio, e por isso diziam
que aquele rio estava cheio de
sangue. Estavam muito furiosas as pessoas.
Estavam vestidas de casca de
árvore, as crianças não estavam vestidas. E
então diziam assim: 'como é que
nós podemos aceitar que você vá falar com
gente que fez isto?' E foi
preciso falar, falar, falar até chegarmos a quase
um convencimento das populações
de que era bom, de que era melhor falar
para parar com isso, para que
isso não continuasse. Foi um momento muito
emocionante, foi onde consegui
mais facilmente convencer as populações de
que era necessário fazer-se o
diálogo. Já em Barué foi diferente. Saí dali
convencido de que as populações
não estavam satisfeitas com a decisão...
Eles diziam que a RENAMO tinha
que largar as armas, e só depois é que
podia haver o diálogo... e eu
dizia--Ihes: 'mas como é que eles vão saber
que têm que largar as armas?
Alguém tem que lhes dizer...' Agora, no seio
do partido nós trabalhamos em boa
coordenação. O que se exigia era que a
RENAMO primeiro aceitasse
princípios para que houvesse um diálogo
directo.»
O circo Rowland
A nível regional mexiam-se homens e interesses. Tiny
Rowland era o
patrão da Lonrho (London and Rhodesia Mining and
Land Co. Ltd) e aliava
interesses poderosos na Africa Austral a uma grande
capacidade de mover e
agitar as coisas de cima para baixo.
Rowland, de seu nome de baptismo Roland Walter
Fuhrhop, nasce em
Simla, na índia Britânica, no campo de internamento
de Belgaun, destinado
a cidadãos de países hostis. Com pai alemão e mãe
anglo--holandesa,
Rowland passa parte da adolescência na Alemanha, em
Hamburgo, até que,
em 1936, a família volta para Inglaterra. Quando a
guerra estala, em 1939, é
outra vez internado juntamente com o pai - de
240 JOGOS AFRICANOS
onde os seus sentimentos fundos e complicados de
hostilidade-identidade
em relação à Grã-Bretanha. Para se desenvencilhar do
estorvo deste passado
decide mudar de nome e começar do zero. Já em 1948,
depois de uma série
de negócios comerciais e industriais não muito
ortodoxos mas bem
sucedidos, Tiny Rowland parte para a Rodésia do Sul
para fugir ao
socialismo e à austeridade da Inglaterra do
pós-guerra. E ali, em pouco
tempo, cresce nos sectores mineiro e agrícola e
torna-se, no início dos anos
60, o patrão da Lonrho, transformando-a num grande
império financeiro,
industrial e comercial com mais de 100 000
empregados.
O método de Tiny Rowland era insinuar-se: ser
primeiro útil, depois
próximo, depois necessário e finalmente
indispensável aos chefes de Estado
e aos políticos da região. Compreendera que na
Africa neo--independente,
tal como na Europa e nos Estados Unidos do século xix,
os negócios - os
grandes negócios - se faziam sempre e só de braço
dado com a política. E
percebera o carácter patrimonialista da maioria dos
regimes e dos políticos
locais. Tinha exemplos e rivais na República da
África do Sul: o grande
império da Anglo-American, capitaneado por Harry
Oppenheimer, e o grupo
Rembrandt, de Anton Rupert. Contrariamente a estas
famílias - já
establishment, já com a prudência, os modos e os
meios dos poderes
instituídos —, Rowland avança com audácia, com
autoconfiança, não se
importando muito com os riscos e as perdas. Nem às
vezes com o ridículo.
Rowland visita Moçambique pela primeira vez a
convite de Machel, em
Janeiro de 1983. Como é normal entre personalidades
fortes e singulares e
que exploram o género, os dois homens trocam
lisonjas em estilo directo e
aparentemente atrevido: «Este é que é o monstro!
Ouvi dizer que você
compra governos e países!», diz Samora a Rowland. Com o seu Grumman
privado no aeroporto de Maputo e uma limousine a
levá-lo ao Palácio da
Ponta Vermelha, Rowland não desmerece a expectativa.
Um donativo de
milho no valor de quatro milhões de dólares segue
imediatamente para
aliviar a fome dos moçambicanos.
Em troca, Machel concedeu a Rowland quatro fazendas
com um total de
80 000 hectares. Mas o intuito secreto de Rowland ao
abordar Machel
através do jornalista Alves Gomes era evitar a
nacionalização do pipeline
Umtali-Beira, que Mugabe preparava em parceria com
A PAZ ROMANA 241
Machel. E teve êxito: Machel não alinhou no negócio
com Harare e
Rowland conservou o pipeline.
Em 1989, Rowland vai avançar com outra das suas
iniciativas. Como
sempre, lançava a rede, convencendo os líderes
locais de que tinha outros
líderes em stand-by para um encontro decisivo
com vista a solucionar o
problema, fosse este qual fosse. Nas suas andanças,
estabelecera uma boa
relação com Bethwel Kiplagat, o conselheiro especial
de política externa do
presidente Arap Moi do Quénia. Moi, sucessor de
Kenyata, tinha simpatia
pela RENAMO e os rebeldes moçambicanos recebiam algum
apoio discreto
no país, em termos de estadias, passaportes,
pequenas ajudas. Kiplagat
iniciara uma série de visitas a Chissano e a
Dhlakama. Depois de uma épica
jornada, estivera com o líder da RENAMO na base da
Gorongosa para lhe
entregar uma mensagem do presidente moçambicano.
Rowland, através de Alves Gomes, agora presidente da
Lonrho em
Moçambique, continuara com Chissano a relação criada
com Machel. De
acordo com Kiplagat, Rowland inicia então mais uma
das suas maratonas
negociais — desta vez no Gulfstream. Por sua
conta e risco, vem a Lisboa
ver Cavaco Silva, visita Pik Botha em Pretória e
convence este e o seu
segundo nos Negócios Estrangeiros, o director-geral
Rusty Evans, a irem a
Nairobi falar com Moi.
Na época, a guerra de Moçambique saía cara à Lonrho:
dois milhões de
libras mensais, gastos sobretudo com a segurança das
fazendas e do
oleoduto Beira-Umtali, a cargo de cerca de 3000
homens da DSL (Defense
Services, Ltd). A paz era urgente para Rowland e o
milionário convenceu
Kiplagat a arrastar Dhlakama, de visita a Nairobi,
até Blantyre, onde o
esperava uma comitiva de ministros do Zimbabué e de
Moçambique
liderada por Pascoal Mocumbi, ministro dos Negócios
Estrangeiros.
Chegados a Blantyre, Dhlakama escapuliu-se e cruzou
a fronteira para
Moçambique. Dizia que não queria nem podia negociar
nada sem consultar
os seus comandantes. No fundo também não confiava em
John Tembo, o
homem forte do Malawi. O sistema Rowland falhara e
os ministros estavam
furibundos depois de nove horas de espera. Tiny
atirou as culpas para
Kiplagat, que não soubera segurar Dhlakama.
O jovem guerrilheiro, na sua simplicidade, não se
deixara impressionar
pela ostentação dos meios, dos gadgets, dos
jactos, dos tapetes encarna242
JOGOS AFRICANOS
dos, dos ministros à espera nas salas VIP... enfim,
pelo «Circo Rowland».
Este flop em Blantyre é mais uma estação no
corrupio das mediações
fracassadas para Moçambique. Mas vai abrir caminho
para a saída.
Mugabe, Arap Moi, os americanos, os sul-africanos,
os portugueses, os
bispos, Rowland, circularam entre Nairobi, Blantyre,
Pretória, Maputo,
Roma, Munique e Lisboa. Cruzaram-se ministros,
presidentes, guerrilheiros,
conselheiros, gente dos serviços, emissários,
facilitadores, mediadores.
Aparecem no circuito as primeiras propostas, que os
intermediários levam
da FRELIMO para a RENAMO e da RENAMO para a FRELIMO.
Os nós da questão
Mas o seu bom andamento esbarra nas condições
prévias que uns e
outros insistem em levantar. Nesta fase de
aproximação negocial continua a
não haver nada de novo nem de extraordinário nos
pontos de choque ou de
concordância. A FRELIMO quer ser reconhecida
previamente pela
RENAMO como governo legítimo de Moçambique e não
quer admitir o
movimento de Dhlakama como um igual, como uma força
política. A
RENAMO não quer reconhecer a legitimidade da FRELIMO
como governo
de Moçambique e quer, por sua vez, ser reconhecida e
tratada como uma
força ideológica, um partido político. Procuram-se
papéis de síntese, na
sensação de que se está próximo de uma nova etapa.
Mais umas semanas para partir pedra. Em Junho de
1990, D. Mat-teo
Zuppi, de Santo Egídio, volta à carga e explica aos
conselheiros de Chissano
- Francisco Madeira e Aguiar Mazula — que a questão
da RENAMO, em
termos de segurança, em Africa, é complexa e que se se
continuar no puro
âmbito africano vai ser difícil sair do ciclo
vicioso. Porque a FRELIMO
desconfia dos quenianos e a RENAMO dos zimbabueanos
(e do Malawi que
tem forças em Moçambique ao lado da FRELIMO). E
ambos desconfiam
dos sul-africanos. Entretanto, são os próprios Arap
Moi e Mugabe a concluir
e a recomendar a Chissano que a única forma de sair
do imbróglio é começar
negociações directas entre as duas partes, sem
condições prévias.
A PAZ ROMANA 243
É o que vai acontecer. Falta agora um modelo e um lugar
aceites pelas
duas partes. E as conexões romanas vão intervir com
o homem certo.
Chissano foi conhecendo Zuppi: este é aberto,
inteligente, capaz de se pôr
com toda a facilidade na pele dos interlocutores, de
perceber os seus medos,
os seus tabus, as suas esperanças, as suas
intransigências. E sobretudo, de
perceber as raízes e causas destes sentimentos e
fobias, que é a única forma
de lidar com eles. É um homem de Igreja, um homem de
oração, despido de
vaidades e de vanglorias, que fala bem com os grandes
e pequenos deste
mundo. É transparente, inspira confiança, com a sua
cara franca e sorridente,
com o seu português com um sotaque simpático.
Dhlakama também sentiu
isso e, acima de tudo, gostou de ser tratado com
respeito e com dignidade.
D. Jaime, arcebispo da Beira, em quem os rebeldes
confiam, está ali a fazer
o seu trabalho de acompanhamento. Chissano,
sensível, também já percebeu
que, se quer a paz, tem de pôr de parte a retórica
legalista e arrogante que os
seus duros — esquecidos que já foram também
foras-da-lei - querem
introduzir como condição prévia. Ao mesmo tempo,
reflecte nas vantagens
de uma negociação paralela, numa obscura paróquia de
Roma, sem
governos pelo meio. Evita-lhe o cerimonial dos
«reconhecimentos», que
sempre vêm com as negociações formais.
Assim, em 23 de Junho, o Presidente moçambicano
comunica ao
embaixador italiano em Maputo que está pronto a
mandar para Roma uma
equipa negocial para falar com a RENAMO. Do lado da
RENA-MO, Raul
Domingos já pedira formalmente a Zuppi que disponibilizasse
Santo Egídio
para lugar das negociações. E vai ser mesmo ali.
Intercessão de Santo Egídio
Santo Egídio é uma paróquia no coração do
Trastevere, mesmo ao lado
da belíssima Piazza de Santa Maria, onde fica uma
das mais antigas e
harmoniosas basílicas cristãs de Roma. O pároco de
Santa Maria, D. Matteo
Zuppi, é também a alma da comunidade de Santo
Egídio, uma associação
cristã criada à volta da paróquia, em 1968, e que
iria entrar na história de
Moçambique e de África.
244 JOGOS AFRICANOS
Fazendo o meu caminho do Borgo Pio para Santo
Egídio, geralmente aos
sábados de manhã, andando até à Piazza Sonnino
debaixo daquele sol
romano que faz parecer os dias sempre de Primavera,
nunca deixei de me
espantar com a estranha ligação a um longínquo país
africano daquele canto
de Roma, com os seus restaurantes acolhedores, do
famoso Sabatini às
pizzerie familiares, com as suas lojas de
artesanato e de moda, de relógios,
de velharias. Como é que esta espécie de «Canaby
Street on Tiber» viera a
ligar-se às matas da Go-rongosa, às praias de Cabo
Delgado, às luzes da
baixa de Maputo ao fim de um dia de cacimbo, a
gentes de tão longe?
A história é uma boa história. Mas longa. Tentarei
contá-la bem e
depressa.
As ligações de Itália com Moçambique eram antigas.
Nos anos 60 e 70,
vários quadros da FRELIMO, incluindo Armando
Guebuza, tinham vivido
em Itália. O Partido Comunista italiano sempre dera
atenção e apoio à
FRELIMO. Marcelino dos Santos fora recebido por
Paulo VI com outros
dois dirigentes de movimentos africanos
anti-portugueses — Amílcar Cabral
e Agostinho Neto. O arcebispo da Beira, D. Jaime
Gonçalves, estudara
Teologia em Roma, no início dos anos 70. Com a
independência, dera-se em
Moçambique, como em Angola, uma africanização
acelerada da hierarquia
católica. D. Jaime fora feito arcebispo da Beira e
D. Alexandre dos Santos
arcebispo de Maputo. Faziam parte dos 33 sacerdotes
negros, nascidos em
Moçambique, entre quase 600 padres que oficiavam no
país. Numa
população de 12 milhões de habitantes havia então dois
milhões de católicos
e um milhão e meio de protestantes.
Para a FRELIMO, que levava muito a sério a ortodoxia
marxista--
leninista e consequentemente considerava a religião
«o ópio do povo», a
Igreja Católica era ainda «um síndroma do
colonialismo» e fora, pelo menos,
«colaboracionista» com as autoridades portuguesas.
Assim, e apesar das
atitudes críticas em relação à administração
colonial de alguns prelados
católicos - como o bispo da Beira, D. Sebastião
Soares de Rezende, e o bispo
de Nampula, D. Manuel Vieira Pinto — os novos donos
do poder
mostraram-se muito hostis à Igreja Católica:
nacionalizaram os seus bens,
expulsaram missionários e exerceram pressão contra
os fiéis. Samora
Machel, com o seu jeito
A PAZ ROMANA 245
directo e sem respeitos humanos, chegara mesmo a
chamar «macacos» aos
bispos católicos.
Por outro lado, a Itália era, no princípio dos anos
80, um grande doador
para Moçambique, e o PCI, de Enrico Berlinguer,
movia importantes
interesses nessa ajuda.
É a partir deste entrelaçado que os dois homens de
Santo Egídio -Matteo
Zuppi e Andrea Ricardi - vão tentar responder às
inquietações e solicitações
de D. Jaime, abrindo uma linha de contacto e
influência com Berlinguer,
Pajetta e outros dirigentes comunistas para que
estes pressionassem os seus
correligionários da FRELIMO a mudar de atitude em
relação à Igreja.
Berlinguer recebe D. Jaime em 1984 e fica muito
admirado ao saber que em
Moçambique é proibido tocar os sinos.
Ajudadas pelas circunstâncias e pelos interesses
externos, estas pressões
dos dirigentes comunistas italianos - habituados ao
diálogo com os católicos
no seu país — vão levar os seus correligionários
moçambicanos a uma
atitude progressivamente mais aberta em relação à
Igreja Católica e à
religião em geral.
Mas enquanto foi vivo Samora Machel - que não
gostava de D. Jaime e
que o considerava um inimigo e um rival político —,
não houve progressos
muito significativos.
Com o seu maior pragmatismo, que não era
incompatível com o
leninismo, Chissano dá passos de aproximação à
Igreja Católica. Quando
está em Roma, em visita oficial, encontra-se com
João Paulo II. A seguir, o
cardeal Etchegaray, presidente da Justiça e Paz, vai
a Moçambique com
Zuppi.
Os negociadores
D. Jaime, arcebispo da Beira, está consciente do
problema da guerra. É
um ndau, da etnia de Dhlakama, que leva muito a
sério o seu ministério e as
suas ligações à terra onde nasceu. Compreende as
razões e a parte da razão
dos guerrilheiros. Pensa que a Igreja tem o dever e
talvez tenha a
possibilidade de dinamizar o processo de paz.
Percebe também que o clima
internacional e nacional está a mudar com a
aproximação do fim da Guerra
Fria.
246 JOGOS AFRICANOS
Entretanto, Chissano foi deixando cair para os
bispos católicos que não
fará um drama se eles procurarem contactar os guerrilheiros
e perceber o
que eles querem. E quando, em Setembro de 1988, João
Paulo II visita
Moçambique, fala com Chissano e insiste publicamente
na necessidade de
achar «caminhos de reconciliação e de diálogo».
Bem aconselhados por Zuppi, que entendera a
psicologia das partes, os
italianos cultivaram igualmente a FRELIMO e a
RENAMO, criando junto
desta, gradualmente, um espírito de confiança e de
respeito. Graças a este
espírito e vencidas pela necessidade as reservas da
FRELIMO, ia ser
possível, quando se iniciava o último tempo da
Europa dividida da Guerra
Fria, abrir também os caminhos da paz para
Moçambique.
Assim, no dia 1 de Julho de 1989, em pleno estio
romano, nas veneráveis
e austeras salas de comunidade de Santo Egídio,
encontravam--se pela
primeira vez as delegações da FRELIMO e da RENAMO,
lideradas por
Armando Emílio Guebuza e Raul Manuel Domingos.
Guebuza tem 46 anos. Nascera em Murrupula, província
de Nam-pula em
1943, filho de Miguel Guebuza, um enfermeiro educado
e esforçado. A
família viera para a então Lourenço Marques. Aí
Guebuza frequentara o
Liceu Salazar, onde fora contemporâneo de Joaquim
Chissano e se
distinguira como dirigente associativo. Aderira à
recém--nascida FRELIMO
em 1964. Depois saiu para o exterior, para se juntar
à rebelião, passando
algum tempo na Ucrânia e regressando depois ao país
para a luta armada.
Fora comissário político e depois ministro do
Interior na transição e no
tempo de Machel, adquirindo fama de homem da «linha
dura», com o seu
célebre 24/20 (ordem de saída em 24 horas com 20
quilos de bagagem)
aplicado a muitos portugueses. Mais tarde, por
funções, estivera também
ligado à organização das aldeias comunais. Mas é
inteligente, com formação
e cultura política. E a escola do leninismo,
combinada com a experiência,
tornaram-no realista. Chissano nomeia-o para chefe
da equipa da FRELIMO
nas negociações, pois sabe que Guebuza lhe vai
cobrir a frente ortodoxa do
partido, mas que, sendo poderoso, tendo autoridade e
fama de duro, pode ao
mesmo tempo fazer transições e transacções.
O chefe da delegação da RENAMO é Raul Domingos, de
38 anos.
Domingos nascera em Mutarara e fora para a RENAMO em
1980.
A PAZ ROMANA 247
Comandante militar da Zona Sul, foi depois
responsável pelas Relações
Exteriores do movimento. Apesar de jovem e sem
experiência prévia, tinha
inteligência, à-vontade e sentido de humor — tal
como Guebuza - e prática
de combate no terreno. Quando os naparamas, os
célebres guerreiros
primitivos armados de armas brancas e convictos da
sua invulnerabilidade
às balas, atacavam e lançavam o pânico entre os
combatentes da RENAMO,
Raul Domingos - com Dhlakama e outros dirigentes -
tiveram de desfazer o
mito. E foram eles que, armados de metralhadoras
pesadas e aproveitando
um ataque dos naparamas, os dizimaram com fogo
cadenciado e certeiro,
imperturbáveis, demonstrando aos seus homens que as
balas afinal matavam
mesmo.
Além dos delegados das duas partes, havia os
observadores. As reuniões
iam começar sem mediadores. Os observadores eram
Mário Rafaelli, pelo
governo italiano, e Matteo Zuppi e Andrea Ricardi,
por Santo Egídio. E D.
Jaime Gonçalves.
Estas negociações vão durar dois anos e três meses e
funcionarão em
sessões intermitentes, sempre em Santo Egídio. As
conversações começam
bem, apesar das baixas expectativas dos observadores
ou talvez por causa
delas. Depois da intervenção de Ricardi, fazendo um
estado da situação e
um resumo das questões, Gebuza e Domingos falam em
tom de
reconciliação e de respeito pelo adversário,
sublinhando a sua natureza de
«irmãos separados». Caíram os adjectivos do tipo
«bandidos armados» ou
«governo criminoso», «agentes do apartheid» ou
«comunistas assassinos».
Conheço hoje bem Guebuza e Domingos. Guebuza, que
tem uma sólida
formação política, é firme e duro como negociador,
mas capaz de charme e
sentido de humor. Domingos tem coisas parecidas, é
vivo, inteligente,
divertido. E aprendia muito depressa. Lembro-me de,
numa das minhas idas
a Roma, meses depois das negociações terem começado,
ter convidado o
Raul Domingos e o Vicente Zacarias Ululu para
jantar. Cheguei primeiro ao
restaurante e como era um dia de Verão ou de
Primavera alta, esperei por
eles na mesa de uma esplanada. Eis que chegam num
carro azul-escuro, com
um motorista que se precipita para lhes abrir a
porta (o governo italiano
disponibilizara o apoio logístico das comitivas). E
o Raul Domingos
impecável, com os seus eternos óculos escuros, com a
mão no bolso do
paletó e o à-vontade
248 JOGOS AFRICANOS
de quem levara a vida a sair de carros com motorista
para jantar em
restaurantes romanos. E depois, ao jantar, com uma
conversa mundana, com
observações e graças oportunas, a discutir e a
escolher o vinho, enquanto
Ululu, como bom maconde, falava pouco mas ia ouvindo
com muita atenção
e proveito. Não se tratava aqui de uma qualquer
renúncia à identidade ou à
causa, de puro fascínio ou deslumbramento perante
este outro mundo por
onde agora também se moviam, mas de uma enorme
capacidade de
adaptação ao novo campo de batalha em que a farda, o
terreno, as armas e a
estratégia eram necessariamente outras.
O Raul foi uma pessoa com quem desenvolvi uma boa
relação e tive
muita pena quando Dhlakama entendeu que ele devia
ser afastado do
partido, em 2000. Tinha, como já disse, um excelente
sentido de humor. A
dada altura a RENAMO resolveu mudar de símbolo e
substituir as flechas da
secular luta africana (que lhe davam um certo ar
falangista) por uma
simpática perdiz. Nessa altura fui almoçar com o
Raul Domingos e o
Joaquim Vaz, o representante da RENAMO em Lisboa, à
minha habitual
cantina nos anos 90, a extinta Cervejaria Alemã, na
Rua do Alecrim. Havia
um prato de perdiz estufada, e como o Vaz
mencionasse a possibilidade de
optar por ela, o Raul, peremptório, decidiu: «A
perdiz não pode comer
Coronel! A perdiz é símbolo do partido!
Você não pode comer símbolos do
partido! E quase antropofagia!» E ria-se com gosto.
Nas minhas idas a Roma, que nesta época eram
regulares também por
causa da UNITA e de Angola, conversava
frequentemente com alguns dos
negociadores da RENAMO. Além do Raul e do Vicente,
havia o João
Almirante, um jovem tímido e atento, e o José de
Castro, que tinha sido
funcionário judicial e era mais ao jeito burocrata.
E claro, via o Matteo
Zuppi, bem como os meus interlocutores da
Se-greteria di Stato da Santa Sé.
Alguns tinham uma certa reserva em relação a Santo
Egídio, que aparecia
aos mais conservadores como suspeita diplomacia
paralela, marginal e talvez
também «progressista». Menini era um dos que a
princípio se referia a Santo
Egídio com alguma relutância. Estas conversas
permitiam-nos ir avaliando
os progressos e os problemas das negociações, e
quando era possível e fazia
sentido ajudar a nível da direcção da RENAMO ou
tentar sensibilizar
A PAZ ROMANA 249
os governos a que chegávamos para que exercessem
pressão no tempo e
sentido certos.
As negociações de Moçambique em Roma contrastaram,
quer no estilo
quer no ritmo, com as de Angola em Bicesse. As
delegações encontravamse
sempre na presença dos observadores, que acabaram
por passar a
mediadores, depois de um período inicial em que
ainda se andou à procura
de negociadores oficiais.
Falar e combater
O espírito da primeira sessão, de 8 a 10 de Julho de
1990, fora o de
procurar o que unia e pôr de parte o que dividia. A
segunda sessão - em
pleno Ferragosto romano, a partir do dia 13 - fora
precedida de um almoço
em tête-à-tête entre Guebuza e Domingos, nos
arredores da capital, sob o
cenário dos Colli Albani, em Rocca di Papa. O único
encontro a sós, tanto
quanto sei, numa negociação com mais de dois anos.
«Esse encontro foi minha
iniciativa»,
recorda Raul Domingos, «eu falei
com o Matteo Zuppi e disse 'Olha,
eu precisava de ter uma conversa, como
cidadãos moçambicanos preocupados
com a mesma causa, e queria ter a
sensibilidade do Armando Guebuza,
como homem, como cidadão.''Então o
Matteo Zuppi achou muito
interessante a ideia: 'Isto é um grande desafio e
quero acreditar que o Guebuza, se
recusar este encontro, é um sinal de
fraqueza. E não acredito que o
Guebuza queira deixar esse sinal de
fraqueza, é natural que aceite.
Mas isto não é perigoso para ti?' Eu não
tinha perguntado nada ao
Presidente da RENAMO. Era muito jovem, era
muito ousado, tomava
iniciativas... de que não me arrependo hoje. Eu penso
que muitas das minhas iniciativas
ajudaram o processo a andar para a
frente.
Guebuza aceitou e almoçámos. Eu
até hoje tenho referências das
palavras dele nesse encontro.
Recordo-me que ele concordou comigo
quando eu dizia: 'Este processo
não é dos americanos, nem dos portugueses,
nem dos ingleses, é moçambicano,
e o sucesso destas negociações
é também um sucesso pessoal, meu
e teu.' Disse-lhe que seria
250 JOGOS AFRICANOS
um sucesso para Moçambique, para
os nossos partidos e nosso sucesso
pessoal. Portanto, que nós nos
devíamos empenhar e que devíamos reportar
fielmente às nossas bases os
sentimentos e as sensações que nós tínhamos
nestes encontros para
encontrarmos as soluções. E ele concordou comigo e
disse uma coisa: 'Olha, eu
acredito que um dia estaremos em Moçambique,
e o que estamos a fazer aqui
vamos voltar a fazê-lo nos corredores da
Assembleia da República.'
E foi o que veio a acontecer.
Várias vezes nos encontrámos na
Assembleia da República, fora do
plenário, para buscar soluções de
questões que no plenário não
conseguíamos resolver, que eram remetidas às
chefias de bancada. Nessa altura
eu era chefe de bancada e ele era chefe de
bancada. De modo que foi este
informal que ajudou. Depois tivemos outros
informais, durante as
negociações, mas que já incluíam outras pessoas. A
sós foi uma única vez. Das outras
vezes ele foi acompanhado com o Madeira
e eu acompanhado com o João
Almirante. E conseguimos ultrapassar
muitos tabus nessas sessões.»
Mas na reunião plenária surgiram problemas.
Domingos, sem papas na
língua, critica o governo e acusa-o de duplicidade:
enquanto Guebuza fala
da paz e acentua a reconciliação em Moçambique, a
imprensa mantém o
mesmo tom agressivo e desqualificador da RE-NAMO e,
no terreno, as
tropas do Zimbabué estão na ofensiva. A RENAMO
continua a pedir um
mediador, parecendo-lhe o modelo caseiro de Santo
Egídio pouco formal e
sem garantias.
Guebuza, hábil, justifica as situações: em
Moçambique a imprensa agora
é «livre», as ajudas militares não podem ser
alteradas pelas negociações e a
mediação está ultrapassada desde que as partes falem
directamente. Mas a
RENAMO não está convencida e diz ser indispensável,
para continuar a
falar, que as tropas do Zimbabué parem a ofensiva.
No Outono, Ricardi e
Zuppi tomam a iniciativa de partir para a África
Austral para pressionarem
Chissano e Dhla-kama a alto nível. É preciso manter
Roma a funcionar,
ultrapassando a questão das operações militares e
acertando os conflitos
inevitáveis que sempre levanta o complexo sistema
«fala e combate».
Porque as partes não renunciam, previamente, ao
direito de se defenderem.
Os guerrilheiros sabem que a guerra e as armas são o
seu
A PAZ ROMANA 251
principal argumento e os governamentais sabem que
não podem mostrar
fraqueza.
A FRELIMO concluiu a aprovação de reformas
constitucionais. É o
aggiornamento à nova ordem mundial, neste ano
de 1990. O Leste da
Europa está assistir ao apagar dos regimes
comunistas e a própria URSS
entrou na fase final de desagregação. A linguagem da
democracia e do
mercado está presente e patente nos novos textos, e
os media internacionais
não param de celebrar o facto e de aplaudir
Chissano. A ideia, aqui, é
também esvaziar as reivindicações democratizantes da
RENAMO por
antecipação. Que mais querem? Por que lutam?
A iniciativa colhe no exterior, desde os media respeitáveis
ao governo
americano e à CEE, mas não resolve o problema. Uma
guerrilha com a
implantação da RENAMO, com largas zonas de controlo
e interdição ao
adversário e muitos milhares de combatentes, não
acaba assim.
Os delegados de Santo Egídio - Zuppi e Ricardi - e
os bispos
moçambicanos sabem que assim é - e dizem-no
claramente a Chissano, ao
mesmo tempo que pressionam Dhlakama a mandar voltar
a sua gente a
Roma, sem condições prévias sobre a ofensiva
zimbabue-ana. O líder da
guerrilha vai à capital italiana para estar por
perto, embora não participe nas
conversações.
Conversações - Stop and Go!
Em pleno Outono romano, a 9 de Novembro, retomam-se
as discussões
em Santo Egídio. A RENAMO já se resignou a não haver
Estados como
mediadores oficiais - passando os observadores
semanticamente a
mediadores. A questão das tropas do Zimbabué é agora
o ponto número um.
A solução apresentada é prática e gradualista e
procura ancorar-se na própria
justificação de Harare para a intervenção: garantir
o acesso ao mar do
Zimbabué através dos portos de Maputo e da Beira.
Para tal, as tropas
zimbabueanas em Moçambique deverão confinar-se,
precisamente, aos
«corredores» ao longo das linhas do
caminho-de-ferro, corredores com seis
quilómetros demarcados, três para cada lado da
via-férrea. Se as tropas
zimbabueanas
252 JOGOS AFRICANOS
não saírem desses «corredores» a RENAMO não as
atacará. Nem aos
corredores. O princípio é aceite, e para o pôr em
prática cria-se uma
comissão conjunta de verificação, a COMIVE, que
inclui representantes das
partes e de oito países.
Os corredores têm um comprimento de 280 km, o de
Umtali-Beira, e 550
km, o do Limpopo; e 6 km de largura. O acordo
parcial que os regula é
reconhecido e rubricado pelas partes a 1 de
Dezembro, bem como outras
disposições relativas à liberdade de actuação da
Cruz Vermelha na sua acção
de apoio e ajuda aos refugiados e às populações
vítimas da guerra. O
organismo de controle e verificação, o COMIVE, toma
posse a 19 de
Dezembro.
As discussões à volta dos «corredores» e do
cumprimento dos respectivos
acordos ocupam os primeiros meses de 1991, com uma
lista de
violações de que as facções se acusam mutuamente. O
que não impede que,
a 6 de Maio, as delegações regressem a Santo Egídio
para prosseguir com os
trabalhos de negociação, agora voltada para a agenda
política. Apesar dos
progressos conseguidos com os «corredores», que
corporizam um cessarfogo
territorial parcial, permanecem divergências de
fundo - a FRELIMO
continua a olhar a RENAMO como uma organização
rebelde que só pela
força da chantagem das armas e da destabilização
conseguira chegar às
negociações. Os rebeldes acham-se mais que
legitimados pelo mau governo
da FRELIMO e pela adesão de parte significativa das
populações rurais à
sua causa. Mas nos grupos dogmáticos o maniqueísmo
acaba por tornar
difícil a renúncia a razões ideológicas tidas como
irrenunciáveis por encarnarem
a razão.
O Verão de 1991 é um tempo de impasse em que a
disputa anda à volta
do papel constituinte dos acordos de paz. Para a
RENAMO, estes devem ser
a base de toda a legislação político-constitucional
moçambicana, já que vão
resultar de um diálogo entre governo e oposição, o
primeiro na história do
país - logo, fundacional de uma nova ordem política.
Para o partido do governo, os acordos não podem vir
pôr em causa a
legislação existente. A FRELIMO conduziu a guerra da
independência
contra os portugueses e fundou o Estado moçambicano;
os rebeldes entram
nesta história pela violência, pela destabilização e
A PAZ ROMANA 253
pela guerra com apoio exterior. Se é um facto que
para acabar com o
conflito é preciso uma conferência de paz, tal não
concede aos rebeldes o
direito a uma paridade com a FRELIMO, que se vê como
o único poder
legítimo de Moçambique.
A questão da confiança
Neste entre tempo, em Fevereiro de 1991, já tínhamos
feito a nossa
aproximação a Dhlakama, em Mombaça. A partir daqui,
fora estabelecido
um nexo mais forte de confiança que nos permitia
também exercer alguma
influência junto da RENAMO, ajudando nos pontos
débeis os seus
dirigentes, moderando-os e esclarecendo alguns dos
seus receios
injustificados.
Acima de tudo, procurávamos dar aos guerrilheiros
dignidade e
respeitabilidade, responsabilizando-os nessa via:
para serem respeitados
tinham de cumprir com aquilo que tinham aceite
livremente à mesa das
negociações, parar com a violência contra as
populações, limitar a
destruição do património do país que queriam também
governar, abster-se
de raptar cidadãos estrangeiros.
Porque a RENAMO sofria de um complexo e de um
síndroma de
isolamento — e tinha razões para tal. Não contava
com países protectores
africanos ou europeus e a sua imagem internacional
continuava a ser muito
má. Apesar das negociações, parecia às vezes que,
mesmo para os
mediadores, só o governo de Moçambique estava a
proceder bem. O
preconceito contra os rebeldes moçambicanos
observava-se também entre os
países anticomunistas da NATO e nos Estados Unidos.
Chester Crocker
sempre lhes fora hostil e o seu sucessor na
administração George H. Bush,
Herman (Hank) Cohen, seguia-lhe as pisadas.
Os próprios movimentos anticomunistas de guerrilha
também pensavam
e agiam assim. A UNITA excluíra expressamente a
RENAMO de um
encontro de freedom figbters realizado na
Jamba, sob o pretexto de que não
era um «autêntico» movimento de libertação, pois não
tomara parte na luta
anticolonial. Nessa época tive conversas com os
dirigentes da oposição
angolana e com o próprio Savimbi
254 JOGOS AFRICANOS
no sentido de alterar esta posição. Pelo menos que
parassem os actos de
hostilidade. Isso ele garantiu-me que iam parar. E
pararam.
Para se avaliar este clima, o cuidado extremo que
americanos e sul--
africanos punham em não querer confusões entre a
UNITA e a RENAMO e
a distância que Savimbi queria manter em relação aos
rebeldes
moçambicanos, conto outro episódio: na fase dos
contactos romanos,
Dhlakama deslocou-se uma vez a Genebra. Tratamos-lhe
da viagem e
escolhemos-lhe um hotel, da cadeia Nogat, perto do
Lago. Dhlakama ficou
ali com dois companheiros. Qual não é o seu espanto
quando, nessa tarde,
chega uma enorme delegação da UNITA com Savimbi à
frente. E, passado
pouco tempo, voltam todos a sair à pressa.
Ao cabo de várias tentativas, percebi que Savimbi já
lá não estava. O que
se passara? Ao saber da presença de Dhlakama, o
líder da UNITA terá
ordenado à sua gente que saísse rapidamente do
hotel. O líder da RENAMO,
dando-se conta deste episódio, ficou perturbado,
magoado e desapontado
com esta atitude, pois habituara-se a ver Savimbi
como um Chefe, um irmão
mais velho na luta anticomunista em África.
Entretanto conseguimos abrir algum caminho para
Dhlakama em
Portugal, quer a nível da sociedade, quer dos
governantes. E também nos
Estados Unidos. Em conversa com Herman Cohen, em
Washington, no
Cercle, discutimos Moçambique e contei-lhe alguns
aspectos da história da
RENAMO e da personalidade do seu líder. Cohen ouviu
com atenção, com
aquele seu ar de Woody Allen, e confidenciou--me que
a atitude do governo
americano já estava em mudança, numa linha de maior
equilíbrio entre a
oposição e o governo moçambicano, e que ia ter um
encontro com
Dhlakama na Europa em que lhe comunicaria o novo approacb.
De Washington voei directamente para Paris, para uma
reunião da
UNESCO. Fiquei no Hotel Lutetia e apressei-me a
ligar à Carmo Jardim,
que estava na Suíça com Dhlakama, para lhe dar as
novidades. A Maria do
Carmo falou com o líder da RENAMO dando-lhe a boa
nova: que as coisas
com os americanos iam mudar e que aguardasse com
confiança o encontro
com Cohen.
Assim foi. Mais tarde, Dhlakama contar-me-ia que,
como Cohen
costumava tratá-lo com displicência e até com alguma
rudeza, tinha
A PAZ ROMANA 255
ficado surpreendido com o novo estilo do secretário
adjunto para os
Assuntos Africanos:
«Quando começou a dirigir-se-me
dando-me o 'Excelência', olhei para o
lado, a ver se estava mais alguém
na sala. Mas como não estava, concluí
que era mesmo comigo!»
Havia um novo approach. Mas como fazer
progredir agora a agenda
política? Mantinha-se a desconfiança entre as
partes, que se mostravam
pouco dispostas a sair daquela espécie de ciclo
vicioso em que um não faz
sem que o outro faça, mas também nenhum quer correr
o risco de dar o
primeiro passo com medo de perder a face.
No dilema, a RENAMO recusava a legitimidade política
do Governo e
este o estatuto de movimento político à RENAMO. Por
sugestão de Jeffrey
Davidow, que foi buscar a ideia ao processo
angolano, a mediação elaborou
uma espécie de documento prévio extra-agenda a ser
subscrito por ambas as
partes que, definindo a qualidade de cada um dos
subscritores, criava um
ponto de partida mais seguro para as discussões
futuras.
Assim foi elaborado o Preâmbulo, também conhecido
por Protocolo I.
«O Governo compromete-se a não
agir de forma que contrarie os termos
dos Protocolos que se estabeleçam
e a não fazer adoptar leis ou medidas
contrárias ao que neles for
acordado e a harmonizar as leis existentes que
eventualmente contrariem os
mesmos Acordos.
Por outro lado a RENAMO
compromete-se, a partir da entrada em vigor
do cessar-fogo, a não combater
pela força das armas as leis em vigor e as
instituições do Estado existente
e a conduzir dentro do seu âmbito a própria
luta política bem como o
estabelecido no Acordo Geral de Paz».
Guebuza aceitou, com reservas, o Preâmbulo. Raul
Domingos pediu para
consultar o Chefe e este não tardou a responder
negativamente: pensava que
o documento era favorável à FRELIMO, uma vez que, na
sua leitura, a
RENAMO passava a reconhecer o Governo sem
contrapartidas.
256 JOGOS AFRICANOS
De novo os mediadores partem de Roma para a África
Austral para
convencer o líder desconfiado. As pressões dos
governos e dos amigos
chovem no sentido de que o Preâmbulo é equilibrado e
não pode deixar de
ser assinado. A 20 de Setembro, em Lilongwe, no
Malawi, Zuppi e Ricardi
encontram Dhlakama e convencem-no a assinar - o que
acontece.
Aceite o Preâmbulo como garantia recíproca de
estatuto negocial das
partes, passa-se à substância política - o protocolo
sobre os partidos. A
RENAMO vê-se garantida, pois logo a seguir à
assinatura do acordo de paz
poderá iniciar «a sua actividade na qualidade de
partido político e com as
prerrogativas previstas na lei».
Uma das maiores preocupações dos guerrilheiros era
esta garantia de
passagem, sem demora, de movimento de guerrilha a
partido político. Para
isso faltava-lhes tudo - a experiência, os quadros,
o dinheiro. A falta de
recursos financeiros vai ser um dos problemas da
RENAMO. Nas matas é
possível disfarçar. Na cidade, na vida normal,
torna-se terrível a sua falta.
As cores do dinheiro
Quanto à questão dos recursos, procurámos ajudar por
várias formas:
algumas empresas portuguesas que tinham interesses e
investimentos em
Moçambique custearam o estabelecimento e as despesas
correntes da
delegação da RENAMO em Portugal. Rowland, sem dar
ponto sem nó mas
generoso, ajudara a família do líder da RENAMO,
oferecendo-lhe uma
vivenda nos arredores de Lisboa, onde a mulher,
Rosaria, e os seus filhos e
acompanhantes habitaram muitos anos.
Cavaco Silva, então primeiro-ministro, deu
conhecimento desta situação
ao Presidente Chissano, que não levantou problemas.
Também a DINFO,
discretamente, acompanhou a operação e deu o seu
apoio logístico.
Os guerrilheiros de Moçambique, ao contrário dos
seus homólogos da
UNITA, tinham as maiores dificuldades com a
logística. Não tinham
dinheiro e nem sequer papéis, apenas passaportes de
favor do Quénia. E
assim como não tinham fardas, também não tinham
roupas
A PAZ ROMANA 257
de cidade. Sem o apoio «secreto» sul-africano,
ficaram, em matéria de
recursos, ainda pior.
Os que os ajudámos então, tínhamos a claríssima
noção de que o
isolamento e o boicote às suas iniciativas políticas
os manteria numa enorme
desconfiança em relação ao mundo exterior,
reforçando aquela convicção
dos cercados, dos ostracizados, dos párias, de que
só podem sobreviver
enquanto forem perigosos e estiverem sozinhos, longe
da civilização. Um
sentimento que começara a desanuviar-se com Roma,
mas que
adivinhávamos subjacente nas conversações e sempre
pronto a renascer das
cinzas. Embora alguns políticos na Europa e nos
Estados Unidos
entendessem esta problemática, os nossos regimes e
sistemas continentais -
com as suas leis politicamente correctas, fabricadas
e aprovadas por gente
muitas vezes sem sensibilidade ao lado trágico e
conflitual do mundo e da
política - acabavam por impedir na prática a solução
destas questões.
Lembro-me, a propósito, de João de Deus Pinheiro,
então comissário
europeu, me dizer que não podia dar dinheiro nem
para partidos políticos
nem para militares. «... Então», disse-lhe
eu, «não pode fazer nada
politicamente em Africa, pois ou
há democracia e os interlocutores são os
partidos, ou não bá e são os
militares.» A
única solução era recorrer ao
sector privado uma vez que, no Estado, as entidades
com recursos
disponíveis para estas actividades eram os serviços
de inteligência que,
mesmo quando entendiam a questão, geralmente não
nadavam em recursos e
tinham também as suas «guerras».
No processo de paz de Moçambique, o governo italiano
foi disponibilizando
apoios para o alojamento, alimentação e viagens da
delegação da
RENAMO e do seu presidente. Por outro lado, a partir
do nosso encontro
em Mombaça, oferecemos-lhes assessoria e
aconselhamento político e
conseguimos-lhes alguns recursos. Devo dizer que,
nesta matéria, Dhlakama
se mostrou sempre uma pessoa grata. Sa-vimbi, a seu
modo, também
respeitava e agradecia o apoio e o conselho, mas
achava que, sendo o que
fazíamos com certeza da nossa conveniência política,
não estariam aí
envolvidos grandes sentimentos. Era um toma lá dá cá
com interesses de
parte a parte.
A questão do financiamento dos partidos é capital
nas sociedades
democráticas, mas ainda o é mais nas sociedades
autocráticas em
258 JOGOS AFRICANOS
transição. Os governos e as organizações
internacionais recuam, por repulsa
ou preconceito, sempre que se trata de auxiliar
movimentos de oposição
armada, mesmo que seja para os levar à mesa das
conversações ou para os
encaminhar para a paz. Não compreendem que, nalguns
casos, a ajuda a
estas oposições acaba por reverter também a favor
dos governos, abrindo
aos guerrilheiros outra perspectiva de luta que não
a guerra.
A beira do caos
Mas se faltavam recursos à RENAMO, também faltavam a
todo o povo
de Moçambique. Para responder à caótica situação
económico--social
causada pela guerra e pelo regime socialista, entra
em execução, em Janeiro
de 1987, o chamado PRE - Programa de Reabilitação
Económica do
Governo. Tratava-se de um conjunto de medidas que
incluía as habituais
receitas económico-financeiras reformistas. Mas o
PRE era ambíguo, ao
procurar acautelar, pelo menos na forma, a ortodoxia
socialista das medidas.
A linguagem era de cobertura oficial, baseada em
documentos e decisões do
Partido FRELIMO.
Rezava o documento, por exemplo, que a principal
causa dos problemas
do país era «o imperialismo que através da RAS
impunha a guerra, com o
objectivo de travar os sucessos e
os triunfos da revolução».
Mas além do omnipresente «imperialismo» havia também
«os erros a
nível micro-ineficiência,
indisciplina, improdutividade, deficiência de
controle, corrupção». Ou seja, os culpados eram os
suspeitos do costume: o
imperialismo e o nível de execução, uma vez que «o
Partido FRELIMO
definira correctamente os
caminhos, as prioridades e os objectivos», e os
trabalhadores tinham sido «correctamente
mobilizados para as tarefas de
produção» e a classificação da economia
tinha permitido «definir sempre as
prioridades, concretizando as
directivas do Partido».
Não era unívoca, a nível da direcção do partido, a
interpretação e as
expectativas sobre o PRE: havia os que o viam como
uma variante da NEP
(Nova Economia Política) soviética, permitindo um
regresso,
A PAZ ROMANA 259
mais tarde, passada a conjuntura, ao socialismo puro
e duro, e os que o
consideravam o início da liberalização económica e
da abertura política.
Tratava-se, na prática e na intenção, de reduzir
deficits, sanear contas
públicas, dar prioridade às exportações,
flexibilizar salários e preços, e abrir
crédito ao investimento externo e à privatização de
empresas públicas.
Por esta altura e em consequência, multiplica-se o
número de ONGs e de
cooperantes estrangeiros em Moçambique: são então
cerca de 3000, com
salários conjuntos anuais de 150 milhões de dólares,
o equivalente aos
salários de 100000 funcionários públicos ou ao valor
das exportações em
1991.
A guerra continuou e intensificou-se, e os gastos
com as Forças Armadas
(30% do Orçamento Geral do Estado em 1986) passam em
1990 para 40%.
A dependência exterior aumenta e em 1989-1990 o
Estado é financiado em
65% pelos donativos exteriores. Quanto à ajuda
alimentar, cobria 75% da
oferta cerealífera. Em 1992 — o ano da paz -,
Moçambique era o 146.° país
(num total de 160) na lista do índice de
Desenvolvimento Humano do
PNUD.
Esta situação de fundo é um motor para acelerar as
negociações. É ela,
mais do que as teóricas e bem intencionadas
reflexões sobre a superioridade
moral da paz em relação à guerra, que vai levar a
FRE-LIMO - sobretudo os
seus elementos mais realistas - a ultrapassar os
preconceitos legalistas e as
fórmulas maniqueístas sobre o seu direito e a
perversidade dos seus
inimigos.
E assim se entra, em 1992, nas questões políticas
substanciais: organização
dos partidos políticos, lei eleitoral, questões
constitucionais. O
modelo de discussão e solução vai-se normalizando: à
partida, há
geralmente um choque de posições de princípio, com Guebuza
mais
autoritário e peremptório e Domingos recalcitrante e
desconfiado. Sempre
latente está o conflito dialéctico entre o conceito
de uma ordem existente,
que o governo quer adaptar às negociações e ao seu
resultado, e o princípio
da RENAMO, que considera o status quo ilegítimo
e quer construir a partir
da estaca zero. Ainda que às vezes Dhlakama seja
chamado para esclarecer e
decidir pela RENAMO, os dois chefes negociais vão
resolvendo e
arrumando as conclusões em protocolos de
entendimento.
260 JOGOS AFRICANOS
À medida que os meses correm, cresce também a
ansiedade dos
moçambicanos e a pressão internacional para que se
conclua o processo. Na
verdade, a FRELIMO parece ter mais pressa que a
RENAMO, o que é
normal: é a FRELIMO que tem o país, que legalmente
governa, no caos. Os
guerrilheiros querem também a paz, mas até ao dia em
que a guerra acabar e
depuserem as armas têm que ter garantias - de
liberdade, de segurança e de
organização como partido político. Porque as armas
são o seu único meio de
pressão a substituir por garantias internas e
sobretudo externas. Dhlakama
insiste neste ponto — quer os países importantes no
barco das negociações.
Assim, entram para observadores os Estados Unidos, a
França, a Grã-
Bretanha, Portugal e as Nações Unidas. Isto dá-se a
10 de Junho de 1992.
Nesta altura crescem as delegações -15 para o
Governo, 11 para a
RENAMO. Nessa sessão de 10 de Junho, Guebuza insiste
na urgência de
avançar com as questões militares, tema em que os
«técnicos» americanos,
ingleses e italianos já partiram muita pedra.
Quer-se um exército único, com
participação igual das duas partes. A FRELIMO quer
50.000 homens, a
RENAMO 15 000. Ficará próximo dos 20 000. Explica o
general Chipande:
«O exército acabou por ficar mais
pequeno do que o que se esperava,
mas a integração do pessoal
militar foi mais fácil do que a dos políticos...
Foi mais fácil os militares
compreenderem por causa da caserna. 24 sobre
24 horas de caserna. Enquanto os
políticos estão ali e depois cada um vai
na sua vida, cada um para casa
dele, lá na povoação dele, vai na cerimónia
e depois vai para a casa, os
militares não, estão a discutir, decidem mas
estão a implementar, 24 sobre 24
horas, na caserna.»
Mas as negociações por vezes arrastam-se em longas
discussões
circulares e bizantinas à volta de incidentes
vários, como os ocorridos nos
«corredores humanitários». A medida que as coisas se
aproximam do
desfecho, tudo parece estar em risco - ressuscitam
arrogâncias, medos e
desconfianças de parte a parte que ameaçam pôr todo
o processo em cheque.
Com a RENAMO fomos conseguindo resolver vários
problemas. Mas, a
dada altura, é a FRELIMO que, perante as exigências
constituintes da
RENAMO, ameaça bloquear as negociaA
PAZ ROMANA 261
ções, invocando que afinal são eles, FRELIMO, os fundadores
do país e os
homens da independência, que os seus interlocutores
não passam de uns
rebeldes apoiados pelos párias do apartheid e
que a igualdade moral e
jurídica entre as duas partes está fora de questão.
Por estes tempos - e por estas razões —, eu
conversava regularmente
com o António Dias da Cunha, líder do Grupo
Entreposto, um grupo
económico com vastos interesses em Moçambique. O
António era um
homem politicamente à esquerda, próximo de Mário
Soares e do PS, e com
uma longa relação e fácil aproximação a Chissano e à
FRELIMO. Mas o
nosso entendimento, baseado no respeito mútuo, na
franqueza e na vontade
de resolver o problema, era bom. Comentávamos os
novos obstáculos
surgidos quando eu, perdendo alguma compostura e
correcção linguística,
desabafei uns impropérios sobre a cegueira dos que
sacrificavam à letra da
lei e ao quererem «ficar por cima» o sucesso de uma
negociação tão difícil
de levar até ali. Uma negociação que, se não fosse
concluída, transformaria
Moçambique numa terra queimada, numa terra de
ninguém, fragmentada
por uma guerra de todos contra todos.
Aí, muito a sério, Dias da Cunha disse-me: «Oh
Jaime, importa-se de
repetir o que acaba de me dizer
ao Jacinto Veloso?» «
Olhe, António, desde
que seja útil para resolver as
coisas, já falo com quase toda a gente. Falo
com certeza!» «E importa-se de ir
ter com ele ao Ritz?» «Não. Pouco me
importam as minhas importâncias
quando estão em questão coisas
verdadeiramente importantes! Se
acha útil...»
E assim foi. Marcou-se a reunião e fui ter com
Jacinto Veloso ao Ritz.
Começou a conversar, com alguma reserva, e eu
fiz-lhe o seguinte discurso:
«Senhor Ministro, tanto quanto eu
posso avaliar de fora, mas com algum
conhecimento da causa, Moçambique
está um caos, e para a economia de
Moçambique se levantar é preciso
investimento externo. Ora, depois que
acabou a URSS e a Guerra Fria, os
investimentos e as empresas ou são dos
seus donos, que os administram,
ou são sociedades anónimas dirigidas por
gestores responsáveis perante os
seus accionistas. Quando o Senhor e os
outros ministros de Moçambique os
receberam para lhes mostrarem os
vossos códigos 'business
friendly',
262 JOGOS AFRICANOS
as vossas leis, as 'boas
políticas' do PRE, eles vão ouvi-los educadamente.
Mas no fim vão dizer assim:
'Olhem lá, mas vocês não têm cá uns tipos, uns
guerrilheiros, que atacam as
estradas, rebentam os comboios, não deixam a
vida seguir normalmente? Que lhes
aconteceu?' Se o Senhor lhes disser: 'Já
os matámos e prendemos a todos,
são história!' ou 'Já fizemos as pazes com
eles, estão no Parlamento e
amanhã até podem entrar aqui no Governo,
está tudo sob controle!' então
passa à fase seguinte da conversa — a mais
interessante — sobre projectos e dinheiros!
Mas se lhes disser: 'Sabe, eles
são péssimos, trabalham para o apartheid,
fizeram coisas horríveis... E
vamos com a vossa ajuda, acabar
com eles. E só uma questão de tempo.' Aí
eles dizem-lhe: 'Pois bem, quando
tiver acabado com eles — matando-os,
negociando, integrando-os ou
dando-lhes algum poder —, voltaremos a
falar. Até lá... Passem muito
bem!'
Quando eu acabei, Jacinto Veloso olhou-me e disse: «Interessante!
~Nunca ninguém me tinha posto o
problema assim!»
E despedimo-nos. Depois disto Veloso voltou a
cruzar-se comigo várias
vezes, e sempre me sublinhou a importância daquele
nosso encontro para o
desfecho das coisas.
Corrida final
Em pleno Verão romano e perante os obstáculos
surgidos, há outra vez
pressões para um encontro ao mais alto nível entre
Chissano e Dhlakama, o
que em culturas tradicionais como as africanas em
que o Chefe manda
efectivamente e a delegação de poderes é complicada,
fazia todo o sentido.
O animador deste encontro vai ser Robert Mugabe, que
em 4 de Julho se
tinha encontrado com Dhlakama em Gaberone, no
Botswana.
Mugabe parece gostar de Dhlakama pessoalmente e
propõe-se fazê-lo
encontrar-se com Chissano. O encontro dá-se em Roma,
com uma agenda
preparada por Mocumbi, ministro dos Estrangeiros de
Moçambique, e por
Domingos, pela RENAMO. Dhlakama cede ao calendário
do governo e
compromete-se a aceitar uma data limite - 1 de
Outubro desse ano de 1992
— para a assinatura do Acordo Geral
A PAZ ROMANA 263
de Paz. Chissano, em troca, aceita as mudanças na
Constituição que a
RENAMO reclama, como o desaparecimento de vários
artigos
constitucionais que partidarizam o Estado
moçambicano. A declaração
conjunta é assinada a 7 de Agosto. Recorda Dhlakama:
«Depois de vários contactos
indirectos, a minha primeira conversa
pessoal com Joaquim Chissano foi
no dia 4 de Agosto de 92, num hotel, em
Roma.
A conversa foi preparada e
mediada por Robert Mugabe, que era nessa
época uma pessoa com créditos.
Começámos a conversar a seguir ao jantar
e estivemos juntos durante toda a
noite. Quando amanheceu já éramos
amigos! Já riamos e tudo!
No início da conversa o presidente
Chissano perguntou-me: 'porque é
que o Senhor está a fazer a
guerra?' Ao que eu respondi: 'forque é que o
Senhor é comunista?' Depois desse
começo, um pouco duro mas aberto,
começámos a entender-nos muito
bem, e hoje posso afirmar que se as
negociações tivessem sido feitas
directamente por nós os dois, ao invés de
termos enviado representantes,
teriam sido muito mais rápidas e fáceis.»
O presidente Joaquim Chissano também se lembra bem
deste 4 de
Agosto em Roma:
«Estava lá o Mugabe. O Dhlakama
foi trazido para Roma pelo Tiny
Rowland. Então o Tiny Rowland
entrou com ele na suite do hotel onde
estávamos e apresentou-o ao
Mugabe. O Mugabe aperta--Ihe a mão,
cumprimenta-o e apresenta-mo.
Lembro-me de lhe perguntar antes lhe
apertar a mão: 'Você quer a paz?'
E ele, surpreendido por eu começar
assim, sem mais, a conversação,
fez uma pausa e depois respondeu com
firmeza: 'Sim, quero a paz.'
Então eu disse-lhe: Aqui tens a paz.' E foi assim
que eu apertei a mão dele. Ele
sentou-se e determinámos ali que iríamos
conversar sobre os impasses que
existiam. Tratava-se de ver quando é que
iríamos concluirás negociações. E
pronto, tudo correu bem e combinámos
que nos íamos encontrar com os
mediadores.
Os contactos que eu tinha
tinham-me dado a conhecer que Dhlakama
era um homem capaz, alguém com
quem se podia falar, dialogar
politicamente. Eu estava
convencido disso. E creio que foi em respos264
JOGOS AFRICANOS
ta à Melissa Wells, embaixadora
dos Estados Unidos, que eu uma vez disse:
'Eu nunca tive dúvida de que o
Dhlakama fosse um homem capaz, porque
eu estaria envergonhado se
estivesse a combater com um estúpido!...'
Portanto estava a combater com
alguém que eu tomava a sério, que tinha
que ser tomado a sério, alguém
que era um adversário — um inimigo, nessa
altura — que nunca desprezámos
nem menosprezámos. Esse encontro em
Roma foi em Agosto quando ainda
havia muitos impasses e foi
importante...»
Mas na declaração conjunta assinada a 7 de Agosto
restavam ainda
alguns pontos quentes e difíceis, como os Serviços
Secretos, a composição
do exército e sua denominação, a estrutura do
comando da polícia e a
administração dos territórios sob controle da
guerrilha no período préeleitoral.
Por isso as semanas finais vão ser uma maratona para
cumprir o prazo e
assinar a 1 de Outubro. Consegue-se concordância de
princípio sobre os
efectivos militares e seu recrutamento. Mais
complicada é a questão da
Segurança do Estado, que entretanto mudara de nome,
passando de SNASP
a SISE: Dhlakama quer o seu completo
desmantelamento, Chissano opõe-se.
Também não há acordo sobre a administração
temporária das zonas
controladas pela guerrilha, mas, para a polícia,
parece viável uma solução
mista integrando elementos da RENAMO na estrutura.
Perante estas incertezas e a pressão dos mediadores,
Chissano e
Dhlakama voltam a encontrar-se, desta vez em
Gaborone, no Botswana, a
18 e 19 de Setembro. E aqui há compromisso, embora
baseado num
adiamento das questões de fundo:
«Voltámos a encontrar-nos em
Gaborone, no Botswana, em Setembro»,
diz Dlhakama, «e aí já nos considerávamos
verdadeiramente irmãos.
Mas o que a RENAMO queria e eles
negaram sempre era um governo
provisório, de transição, para
preparar as eleições. Houve uma grande
vontade da RENAMO para aceitar as
condições dos Acordos Gerais de Paz,
que não eram as melhores para
nós. Nessa época, alguns dos meus generais
perguntavam-se porque é que, em
vez de estarmos a negociar a paz com os
vencidos, não preparávamos uma
invasão de Maputo e pronto, acabávamos
com eles e ficávamos a governar
para
A PAZ ROMANA 265
instaurarmos a democracia e os
direitos humanos. Eu dizia-lhe que não,
que o objectivo da nossa luta não
era conseguir o poder pelo poder, mas
sim por ideias, para que
Moçambique se tornasse um país livre,
democrático, com respeito pelos direitos
humanos e com um sistema de
economia de mercado.
Dizia-lhes também que, por causa
da propaganda da FRELIMO, que nos
chamava 'bandidos armados',
amigos do Smith e do apartheid, e por causa
da falta de apoios
internacionais, uma invasão da capital poderia ser muito
mal entendida.»
Embora com uma linguagem simpática de recomendações
sobre a sua
gestão com critérios dignos de uma ONG de protecção
a idosos, o SISE
mantém-se. Há despartidarização e reestruturação da
polícia civil, com
garantia de participação de pessoal da RENAMO e a
promessa de uma
comissão de verificação para estes organismos.
Estabelece-se finalmente o
número de efectivos do exército (30 000 militares),
mas não há referência à
administração das zonas da RENAMO.
A ideia que fica é a de que Chissano fez prevalecer
os seus pontos de
vista e Dhlakama não parece muito satisfeito. Mas
depois de algumas
hesitações, reafirma-se a data de 1 de Outubro para
a solene assinatura do
Acordo de Paz. Contudo, nas vésperas da assinatura
as coisas parecem outra
vez tremidas. Dhlakama escreve aos mediadores
solicitando e justificando
mais alguns dias de espera: precisa de
esclarecimentos e garantias. A carta é
recebida a 28 de Setembro, mas Ra-ffaelli, Zuppi,
Ricardi e Gonçalves são
intransigentes, pedindo ao líder rebelde que de
qualquer modo esteja «em
Roma até 1 de Outubro».
O chefe da RENAMO acaba por aceitar. Chega a Roma a
1 de Outubro
no avião de Tiny Rowland. Chissano já lá está.
No sábado, 3 de Outubro, no meio dos primeiros
resultados das eleições
angolanas e da preocupação de tirar rapidamente
Savimbi de Luanda para o
Huambo, voo para Roma, com a Zezinha. A Maria do
Carmo Jardim já lá
está com uma irmã, a Leonor.
As notícias são que Dhlakama não quer assinar, pois
não vê no quadro de
direitos e garantias para o período de transição
nada sobre o financiamento à
RENAMO, que vai ter de sair das matas e
266 JOGOS AFRICANOS
transformar-se em partido político. Outras questões
do SISE e da polícia já
tinham sido entretanto resolvidas. A administração
das zonas caberá ao
governo central, mas os seus delegados, em
princípio, serão da RENAMO.
Explicámos a Dhlakama que não era possível, num
documento oficial,
explicitar o financiamento da RENAMO, mas que, nesta
altura, ele não
podia deixar de assinar sob pena de ser apontado
como o mau da fita.
Aceita, contrariado, mas realisticamente.
Dão-se os últimos retoques nos discursos e a Carmo
Jardim escolhe o
fato e a gravata de Dhlakama e o vestido da Rosaria
para a cerimónia. A 4
de Outubro, um domingo de sol das famosas Otobrine,
Roma está em festa
também por Moçambique.
Lembra Raul Domingos:
«Quando nós tivemos conhecimento
de que nos podíamos encontrar
finalmente frente a frente com
uma delegação da FRELIMO, o nosso
sentimento foi um sentimento de
vitória, porque durante muitos e muitos
anos de luta não se vislumbrava a
possibilidade de chegar ao fim. Com a
agravante de que praticamente
todo o mundo estava contra nós. A América,
que devia estar do nosso lado,
estava contra nós... E depois, com todo
aquele desfile de americanos com
o relatório Gersony, o relatório Minter,
tudo isso parecia o fim da
RENAMO.
De um momento para o outro, há
uma luz ao fundo do túnel, começam os
contactos no Quénia que levam ao
encontro directo em Roma. Quando esse
encontro se deu houve de facto
esse sentimento de vitória: finalmente
conseguimos! E aí começaram todas
as negociações que levaram dois anos.
Foi preciso encontrar uma agenda
que acomodasse todas as preocupações e
que levasse a um acordo que se
pode dizer que foi um bom acordo. Custou,
muita gente achava que nós íamos
perder o comboio porque estávamos a
atrasar, porque Angola já tinha
conseguido o acordo de Bicesse e porque o
mundo nos ia esquecer. Mas
contrariamente a todas as expectativas nós
conseguimos um acordo duradouro.
Já lá vão 16 anos.
Também porque, ao contrário de
Angola, não havia interesses de
grandes potências implicados na
mediação, foi uma negociação quase que
privada mas sem interesses, uma
mediação, vamos lá, descomA
PAZ ROMANA 267
prometida. No caso de Moçambique
o único interesse do mediador era a
paz. E isso faz a diferença.»
E os sinos tocam em Roma por Moçambique, bem alegres
na manhã
desse 4 de Outubro.
Nós estamos também contentes e sobretudo aliviados.
E fomos almoçar,
ali mesmo, numa pizzeria do Borgo Pio.
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