Por
E. Macamo
O
principal problema na abordagem da nossa situação política é saber como fazer a
análise. A qualidade do debate na e sobre a nossa esfera pública tem revelado
continuamente que, salvo raras excepções, a preferência analítica é por
conclusões alicerçadas na procura de quem beneficia de uma situação.
Invariavelmente, analisamos os nossos problemas partindo do pressuposto de que
quem beneficia do resultado está por detrás de tudo quanto nos levou até lá. É
uma versão da teoria de conspiração que encontra sustento metafísico nas nossas
crenças supersticiosas. Em Gaza diz-se que “la kunga fiwa kuni noyi” (onde há
falecimentos, há um feiticeiro). O verdadeiro alcance destas crenças – em
conspiração e na superstição – é a aversão generalizada ao que não tem
explicação. Temos que explicar tudo – o que até não é mau – mesmo se para o
efeito tiramos conclusões erradas – o que já é mau.
O
quadro geral analítico que privilegiamos no nosso País funda-se na convicção de
que Moçambique é coisa da Frelimo. Já escrevi em tempos que expressões como “a
Frelimo não brinca”, “a Frelimo é macaco-velho”, “a Frelimo não quer isso”
documentam esta convicção. Criou-se, no nosso imaginário, uma ideia impossível
e fantástica da Frelimo que faz de tudo quanto acontece no País uma espécie de
apoteose da sua vontade. É uma ideia que, curiosamente, explica o que é mau,
mas não consegue dizer porque um partido tão coeso, forte, firme e visionário
como a Frelimo o é no nosso imaginário, não consegue acabar imediatamente com o
espírito do deixa-andar, pobreza absoluta, conflitos internos, crime e
tentativas de fuga de Anibalzinho.
Na
verdade, a explicação é simples na perspectiva da teoria da conspiração. As
coisas que a Frelimo não “consegue” resolver são aquelas cuja existência é do
seu interesse. Assim, o espírito do deixa-andar continua para Guebuza poder
continuar a criticar Chissano; a pobreza absoluta continua para a Frelimo poder
se apresentar como único partido com soluções; os conflitos internos continuam
para a Frelimo poder mostrar que é mais democrática do que a Renamo; o crime
reina em Maputo para a Frelimo distrair as atenções do público da corrupção ao
nível mais alto; finalmente, Anibalzinho é encorajado a fazer tentativas de
fuga para a Frelimo poder mostrar que é séria na sua intenção de o manter na
prisão. Isto, conforme disse mais acima, é superstição.
O
que este tipo de análises revela é uma falta de interesse no que realmente
conta para se descrever e analisar fenómenos sociais. O que conta em minha
opinião é a própria realidade social, as pessoas que agem dentro dela e os
efeitos do que elas fazem. Os estudos aludidos mais acima bem como a opinião
generalizada no País revelam, no fundo, uma incompreensão assustadora da
realidade social moçambicana, dos seus actores e dos efeitos da sua acção. Sem
essa compreensão é difícil encontrar explicações que não se alimentem das
teorias de conspiração. Mas pior do que isso, e espero não ser demasiado denso
na minha explanação, a prioridade que damos à conspiração é que é responsável
pelo poder da Frelimo. Dito de outro modo, as nossas explicações são profecias
auto-poéticas, isto é vaticínios que por força da nossa própria crença se
tornam verdade. De tanto acreditarmos no poder da Frelimo atribuímos a ela tudo
quanto acontece no País e, por via disso, transformamos as nossas próprias
crenças na prova da realidade. Os nossos receios, digamos, são a prova dos nove
do que não entendemos. Mas há mais. As nossas profecias não só são
auto-poéticas como também nos condenam à paralisia. De tanta omnipotência para
que vale a resistência? Muitos resignam-se. Os estrangeiros que nos vêm ajudar
agitam-nos com outras profecias, nomeadamente a profecia de que a única saída é
a guerra. Espero estar a conseguir transmitir quão perigosos são os hábitos de
pensar mal. O líder da Renamo tem se desdobrado perigosamente com ameaças de um
retorno à guerra caso a “Frelimo” continue a fazer as suas “brincadeiras”.
Não
me parece útil analisar a nossa situação política a partir do pressuposto
segundo o qual o que anda mal seria no interesse da Frelimo. Por acaso, até,
existe um livro dos anos noventa escrito por Patrick Chabal e Jean-Pascal Daloz
com o título eloquente “Africa works – disorder as instrument” (A África
funciona – A desordem como instrumento), que dá respeitabilidade académica a
esta forma de pensar. Os autores defendem, na verdade, a tese de que a desordem
característica dos sistemas políticos africanos é funcional aos interesses dos
que a produzem. A desordem, por assim dizer, é propositada.
Ora,
esta é uma abordagem problemática porque reduz a complexidade dos fenómenos
sociais africanos a um conluio que só tem existência nos quadros de referência
teórica que se usam para apreender o continente. Precisamos de maneiras de
perceber que circunstâncias, interesses, acções e processos sociais se aliam
para produzirem situações que tornam a desordem ou mesmo o conluio possíveis. A
mera suposição de que a Comissão Política da Frelimo se sente para discutir
como subverter a justiça não é suficiente para fazer isso. Precisamos de maior
sofisticação, maior distância analítica e, naturalmente, de coragem para
resistirmos ao canto sedutor da explicação supersticiosa.