Por
E. Macamo
A
Frelimo é tão poderosa quanto Deus. Ou melhor: tal como a omnipotência e
omnipresença de Deus, o poder da Frelimo é tão grande e permeia tanto a
sociedade quanto maior for a nossa crença nele. O pior nisto é que esta crença
conduz a duas situações curiosas. Por um lado, ela leva muitos de nós a agirem
de acordo com o que pensamos ser a vontade dessa Frelimo poderosa; alguns podem
chegar ao ponto de violar normas e regras por pensarem que assim estão a
respeitar a vontade dessa Frelimo todo-poderosa. Por outro lado, e igualmente
mau, as pessoas que se consideram como sendo a Frelimo – em oposição,
digamos, aos que são da Frelimo – também começam a acreditar que são
mesmo poderosas.
Alguns
estudos recentes realizados por encomenda de organizações internacionais como a
Swisspeace (da Suíça), pela DFID (Grã Bretanha) e pela USAID (EUA) levantaram o
espectro de uma democracia falhada em Moçambique, vítima da omnipotência e
omnipresença da Frelimo. Moçambique, conclui-se algo apressadamente nesses
relatórios, está a regressar ao tempo do partido único. O aparelho do Estado
está nas mãos ciumentas da Frelimo; o mundo de negócios está fortemente
manietado pelo chamado partido da maçaroca e batuque; e mesmo a sociedade civil
está num processo de transformação em braço prolongado do partido no poder.
Moçambique, vaticina-se nesses estudos, está a caminhar a passo seguro rumo à
guerra.
A
oposição sucumbiu às investidas da Frelimo, tendo sido vergada à vontade de
ferro deste poderoso partido com sede na Pereira de Lagos. Os erros que a
liderança da Renamo comete, as cisões e a sua atrapalhação geral são vistas
como sendo o resultado de maquinações orquestradas pela Frelimo. Este estado de
coisas constitui um mau agoiro para a saúde da democracia e da paz no País; os
descontentes, diz-se com uma ponta de esperança, vão se erguer, pegar em armas
e comprometer para sempre a luta contra a pobreza absoluta.
A
situação objectiva do País não encoraja, na verdade, nenhum outro tipo de
leitura. De facto, desde que Guebuza tomou as rédeas do partido e, depois, do
Estado, a Frelimo tem sido mais agressiva na afirmação da sua identidade, na
confrontação com a oposição e na definição do seu papel no Estado. Ao mesmo
tempo, pelo menos a julgar pela letra e espírito das teses ao Nono Congresso
bem como pela forma como esse evento decorreu, a Frelimo dá a impressão de ter
redescoberto um dos seus mitos fundadores, nomeadamente a crença na ideia de
que ela é o legítimo e único representante do povo moçambicano e que o que é
bom para ela é bom para todo o povo moçambicano. Os sinais, de facto, não são
muito bons e as fanfarras que estudos apressados vão tocando oferecem-nos uma
bela oportunidade de analisarmos o que se está a passar ao nosso redor.
A
independência que nos foi servida de bandeja por homens e mulheres de espírito
intrépido reunidos em torno da Frelimo constitui um bem muito valioso. É
responsabilidade de todo o moçambicano, mesmo daqueles que não simpatizam com a
Frelimo, honrar os sacrifícios consentidos pelos seus membros pela liberdade de
que hoje desfrutamos. As fraquezas humanas que uma e outra vez alguns veteranos
dessa epopeia revelam não retiram o valor ao que eles fizeram, nem devem servir
para lhes negar o lugar que merecem no nosso panteão histórico. Os excessos do
período imediatamente a seguir à independência também não são razão suficiente
para questionar o papel preponderante que a Frelimo desempenhou no nosso devir
histórico. Não obstante, honrar a Frelimo e valorizar a liberdade significa
também prestar atenção ao que pode colocar em perigo esses ganhos. Significa,
de forma mais profunda ainda, aprender da história e dar valor à segunda
liberdade que os erros e excessos do pós-independência tornaram necessária por
via da instrumentalização de moçambicanos em torno da Renamo.
O
último congresso deste partido, que veio na esteira de inquietações emitidas
pelas agências acima citadas, tornou claro que a opinião pública moçambicana
precisa de chegar a um consenso sobre o que a Frelimo é e em que consiste o seu
poder. Tenho a impressão de que mais do que a opinião pública nacional, muitos
membros da Frelimo precisam deste consenso. Na verdade, a simples suposição de
que todos sabemos do que estamos a falar quando evocamos a Frelimo ou o seu
poder tem constituído, em minha opinião, uma das razões para os receios dos que
vêem o perigo da monopartidarização e, sobretudo, tem sido a fonte a partir da
qual a confusão entre partido e Estado tende a não ser vista como um problema
grave da evolução política recente do País. Nos artigos que se seguem vou
debruçar-me sobre o “poder da Frelimo” tentando partilhar com os leitores
outras formas de ler a nossa situação política sem o recurso às teorias de
conspiração que são o apanágio das nossas abordagens.
Vou
também abordar aspectos relacionados com o próprio partido, nomeadamente a sua
filosofia, o papel dos académicos, dos técnicos e, de uma forma geral, a
impressão que alguns dos seus estrategas dão do que pensam sobre a democracia,
lugar da oposição e sobre o papel do seu próprio partido no contexto geral das
coisas da vida. Estou a tentar fazer um exercício de reflexão crítica em
resposta a um instinto animal muito mais forte do que a recomendação da
modéstia intelectual de falar pouco. A esperança continua a ser de falar muito
até acertar.