Vamos ver se
conseguimos pensar menos mal partindo do pressuposto de que a Frelimo não
existe. Isto é para tirar o medo. A Frelimo não existe, prontos, e se não
existe, então não pode haver poder da Frelimo. Guebuza, Chissano, Marcelino dos
Santos, Manuel Tomé, Alberto Chipande e tantos outros não existem. É importante
partirmos deste pressuposto para podermos avançar na análise. Então, nem a
Frelimo, nem estas pessoas existem, o que existe é Moçambique e nós, claro.
Estou a imaginar Moçambique como o nosso quotidiano e as coisas que temos que
fazer para não acordarmos mortos – isto é xangane – no dia seguinte. Temos que
ir trabalhar – honesta ou não, pouco importa; temos que tratar formalidades;
temos que comer. Estas três coisas bastam.
Para irmos
trabalhar precisamos de emprego – ou, no caso dos ladrões, de ocasião. Se não
temos emprego perguntamos porquê; se a polícia dorme, no caso dos desonestos,
damos graças a Deus. Para tratarmos formalidades precisamos de conhecer as
regras e normas; se não as conhecemos procuramos informarmo-nos. Para comermos
precisamos de comida na mesa; se não temos comida na mesa procuramos saber
porquê. Em tudo quanto fazemos no nosso dia a dia partimos da normalidade. Se
as coisas andam normalmente, não nos preocupamos. Damos o mundo por adquirido.
Só quando as coisas caiem fora do normal é que ficamos inseguros e começamos a
procurar por uma explicação. A violência que cometemos na nossa esfera pública
é de reduzir a complexidade da nossa vida a explicações que não nos ajudam em
nada a resolver os problemas imediatos que temos. Com efeito, a nossa tendência
natural é de responder às perguntas sobre o problemático no nosso quotidiano
com o mais fácil e menos útil: a Frelimo. Não temos emprego por causa da
Frelimo; não somos atendidos por causa da Frelimo; não comemos por causa da
Frelimo.
O mundo é
complicado. Não temos emprego porque a economia não anda, porque não temos
formação adequada, porque há candidatos melhor formados, porque as instituições
de direito funcionam mal, porque os funcionários públicos são nepotistas,
porque somos preguiçosos, porque no último emprego que tivemos desviámos fundos
públicos, etc. Cada uma destas razões encerra várias outras. Por exemplo, não
temos emprego porque a nossa formação não é adequada porque o curso pós-laboral
que fizemos numa universidade da praça foi mal-concebido, os professores
estavam mal preparados, perdemos muitas aulas por causa de tolerâncias de ponto
espontâneas ou porque confiámos no facto de termos costas quentes para
passarmos de classe. Estou a tentar transmitir a riqueza da realidade social ao
mesmo tempo que alerto para os perigos da simplificação. É verdade que é mais
fácil responder a todas estas perguntas com recurso à Frelimo. E isso é, para
mim, recusa de pensar.
Está bem. A
Frelimo na verdade existe. A sua existência é necessária. Precisamos de um
fundo de projecção dos nossos receios, incompreensões e insuficiências. A nossa
necessidade é uma espécie de patologia. Precisamos da Frelimo para explicarmos
as coisas da vida com recurso ao destino. É como o Deus dos crentes hostis à
razão. Tivémos acidente porque Deus quiz; escapámos graças à Sua vontade. Nós
próprios não temos nenhum protagonismo, somos apenas marionetas. É assim que
funcionários mal formados ou que fazem mal o seu trabalho procuram compensar
isso com uma maior aproximação à “Frelimo”; chefes que não entendem o que estão
a fazer – e isto inclui mesmo os formados ao nível universitário – compensam as
suas lacunas com recurso ao argumento de que os seus erros são no interesse da
“Frelimo”; profissionais que não sabem como proceder num contexto institucional
pouco claro ao invés de clarificar as regras burocráticas reflectem mais no que
é do interesse da “Frelimo” e agem de acordo com as conclusões que eles tiram
desse exercício; pessoas que doutro modo não teriam lugar na academia, no
ministério, na empresa e por aí fora cultivam as suas credenciais políticas
para caírem nas boas graças da “Frelimo”; juízes, advogados e polícias com
pouco brio profissional paralisam o sistema jurídico e judiciário com a falsa
suposição segundo a qual a resolução de um caso iria prejudicar a “Frelimo”.
A “Frelimo” é um
grande equívoco colectivo. Serve para dissimular a mediocridade, a falta de
brio profissional, a ausência de coragem cívica e intelectual e contribui
grandemente para paralisar o País. Durante o simpósio sobre a vida e obra de
Samora Machel ouvi pessoas que trabalharam com ele a falar de como ele podia
decidir espontaneamente que uma lei deixasse de existir; a sala toda ria-se
nostalgicamente e nenhum de nós tinha a coragem de dizer que foram juristas com
falta de brio profissional e integridade intelectual que deixaram coisas dessa
natureza se passar; ninguém se sentiu incomodado com essas manifestações de
desprezo pela legalidade. Como havíamos de nos sentir? A “Frelimo” queria
assim. Um veterano da Frelimo entendeu mal a minha comunicação durante o mesmo
simpósio, o que é natural, e discordou, o que é também natural. Uma
participante esclareceu-lhe o equívoco e a coisa passou. Contudo, muito tempo
depois fiquei com calafrios só de pensar que no glorioso passado que estivemos
a pintar naquele simpósio, o mal-entendido teria sido uma razão forte para eu
ser punido, no interesse, é claro, da “Frelimo”. Teria sido punido pela minha
“indisciplina”.
A falta de
clareza sobre o que a Frelimo é constitui uma das razões principais por detrás
do tipo de desmandos que caracterizam a acção política no País. Não é
conspiração. É um equívoco colectivo.