Por
E. Macamo
É
difícil não dar razão a Machado da Graça quando na sua “Talhe da foice” no
Semanário Savana suspeita que o combate à pobreza seja apenas um acto de
constrição por parte de pessoas que enriqueceram à custa dos pobres. Na
verdade, o problema da ênfase que o Presidente Guebuza dá ao combate à pobreza
como grande objectivo da sua governação é bem mais profundo. Embora louvável e
em sintonia com os grandes Objectivos do Milénio, a ênfase no combate à pobreza
é sintomática de algo que se tornou óbvio no decurso do Nono Congresso,
nomeadamente que a Frelimo não só deixou de ser partido de operários e
camponeses – se é que alguma vez foi – como também, e mais grave, que os
intelectuais perderam muito do protagonismo que tiveram no passado. Não há
novos Eduardo Mondlane, Jorge Rebelo, Óscar Monteiro, Luís Bernardo Honwana,
Sérgio Vieira. Só há intelectuais orgânicos que sabem dizer quem não faz parte,
mas aparentemente não fazem a mínima ideia donde querem levar o País.
Dito
de outra maneira, estão a fazer falta à Frelimo pessoas que formulem projectos
de sociedade e articulem-nos com a leitura que fazem da sociedade moçambicana.
Se como refere Machado da Graça o grosso dos participantes ao Congresso
consistiu em gerentes de empresas e funcionários públicos, isso é porque a
Frelimo, na verdade, é um partido gestor, um partido sombra do seu próprio
passado quando, mesmo que privilegiando ideologias problemáticas e
aventureiras, se definia por um projecto claro e coerente de sociedade. O
engraçado nisto tudo, todavia, é que volvidos 30 anos da independência que a
Frelimo conquistou, o País dispõe de muita gente formada ao alto nível, a
maioria da qual até é militante do partido. Praticamente, todo o intelectual
digno desse rótulo é membro da Frelimo. Contudo, a julgar pela fraca qualidade
do que o partido propõe como visão para o País, esses intelectuais não têm
nenhum protagonismo nas suas hostes.
Escrevo
isto com um pouco de trepidação, pois já alguns “colegas” me qualificaram de
pretencioso e arrogante. Suponho que me critiquem por preferir falar e escrever
de acordo com o que considero mais em sintonia com os hábitos académicos de
reflexão do que alguns deles que, desonrando a academia a que dizem
pertencerem, preferem das duas uma: calarem-se ou dizerem o que acham ser mais
do agrado dos que detêm o poder. Não quero com isto dizer que todo o académico
deva escrever para os jornais, pois o trabalho académico não consiste nisso.
Nem quero dizer que toda a gente com título académico seja académica. Na
verdade, a reflexão que faço aqui é para distinguir precisamente isso e dar a
devida importância às pessoas detentoras de títulos e que decidiram dedicar o seu
conhecimento ao serviço do trabalho prático e técnico. Refiro-me apenas àqueles
que fazem política com o cunho de académicos quando na verdade são meros
técnicos e burocratas. A política e a academia são coisas diferentes. São
poucas as pessoas que podem conseguir conciliar as duas coisas. Não obstante,
isto não significa que os académicos não devam ter preferências políticas,
muito menos que não sejam militantes de um partido. Contudo, se forem
militantes e continuarem a querer fazer parte da academia eles devem ter a
coragem de fazer aquilo que identifica um académico, nomeadamente contribuir
com o seu pensamento crítico para uma melhor formulação dos problemas, mesmo se
as conclusões a que chegarem puserem em questão preceitos importantes do
partido.
O
político, já disse isto uma vez apoiando-me num sociólogo alemão, Max Weber,
olha para os fins. Para lá chegar qualquer meio, em princípio, serve, desde o
momento que o leve lá. O académico, em contrapartida, olha para os meios e
pergunta se são os mais adequados para os fins propostos. Ao fazer isso, coloca
à disposição do político todas as possibilidades que se abrem ao se tomar uma
decisão. O Nono Congresso, por exemplo, reconfirmou o combate à pobreza como
grande objectivo do partido. Decidiu também que um dos meios para lá se chegar
era o slógan “decisão tomada, decisão cumprida”, algo que mereceu a crítica
atenta de Machado da Graça.
Portanto,
o Congresso parece ter decidido que o problema principal enfrentado pelo País é
o não cumprimento das decisões tomadas. O que disseram os “académicos”
militantes da Frelimo? Bateram palmas? Acenaram forte com a cabeça? Gritaram
vivas? Ou interpelaram a qualidade das decisões tomadas? Fizeram isso?
Procuraram saber como é que as decisões são tomadas? Interrogaram-se sobre o
contexto em que decisões são tomadas? Perguntaram se essas decisões
correspondem a uma leitura coerente do País real? Indagaram-se se essas
decisões contêm dentro de si a visão do que o País deve ser? Puseram decisões
em relação com leis? Perguntaram se a ideia de “decisão” é compatível com um
sistema democrático?
Duvido
imenso. E isto é preocupante. A falta de consenso sobre o que a Frelimo é e,
sobretudo, sobre o que o seu poder é, conduz-nos a uma situação em que
pseudo-académicos interpretam o papel da academia no País como sendo o de
utilizar os seus títulos para dar legitimidade a posições políticas. Confundem
a crítica com oposição e tornam o pensamento e a produção de conhecimento em
artefactos mercenários da sua própria esquizofrenia: “académicos” e políticos.
Bom, pelo menos nunca estarão sozinhos. Usam considerações materiais como
critérios de avaliação da plausibilidade do que diz quem quer pensar de forma
crítica. Se eu critico a ênfase no combate à pobreza, o “académico” não procura
saber que argumentos tenho; ele quer saber em graças de quem eu quero cair. A
ideia de que a reflexão possa constituir um fim em si próprio não cabe no seu
entendimento do papel de um académico.
Políticos
o nosso País já os tem em número suficiente. Académicos, contudo, isto é,
pessoas comprometidas com a verdade e com o fomento deste País por via da
reflexão crítica, esses fazem ainda muita falta. Moçambique não vai deixar de
existir ou de resolver os seus problemas porque os “académicos” foram ao Nono
Congresso. Mas se esses académicos assumissem o seu papel, o País poderia
lograr todos os desafios com mais opções. Era tão bom que eles tomassem a
decisão de serem académicos ou políticos e... cumprissem-na.