Por
E. Macamo
Do
ponto de vista da sociologia, a política é um conceito pouco útil. Não é algo
que possa ser definido com utilidade antes do trabalho preliminar de saber o
que se passa em torno do que as pessoas chamam de política. Aos sociólogos
interessa o poder, o seu exercício e as suas implicações. Depois disso feito, é
possível definir a política. Noutros termos, a política constitui-se na relação
entre o poder, seu exercício e sua continuidade no tempo. Poder, no seu estado
bruto, é simplesmente a possibilidade que algumas pessoas têm de fazerem outras
pessoas cumprirem a sua vontade contra a sua própria vontade. Nesta acepção, a
noção de poder ainda não tem grande interesse sociológico. Começa a tê-lo
quando olhamos para ela do ponto de vista da dominação, isto é de uma relação
social em que uns podem impor a sua vontade a outros que consideram essa
imposição justa. Aí sim, já temos algo sociologicamente interessante, pois já
estamos a falar de autoridade e legitimidade.
A
dominação pode assumir várias formas, todas elas presentes em maior ou menor
grau na nossa experiência histórica. Segundo o sociólogo alemão Weber que se
debruçou sobre estas coisas com muita atenção, a dominação pode ser (i)
tradicional, isto é quando se legitima a partir do que é consuetidinário; pode
ser (ii) carismática, isto é quando se legitima a partir de qualidades tidas
como sendo excepcionais e sobrenaturais de um líder político. Samora Machel ou
Afonso Dhlakama são exemplos claros disso em virtude das suas qualidades
militares; finalmente, a dominação pode ser (iii) jurídico-racional quando
assenta num conjunto de normas codificadas e executadas por um corpo
especialmente formado para esse efeito.
Não
quero transformar o artigo numa introdução à sociologia política.
Interessava-me apenas chegar a este ponto onde chamo a atenção do leitor para a
importância que a legitimação desempenha no exercício do poder. É através dela
que o poder ganha cunho social e se traduz em autoridade. O Estado moderno, e
nesta categoria cabe também o nosso – define-se justamente pelo exercício de um
poder legitimado constitucionalmente e que se manifesta no dia a dia das
pessoas através da obediência a leis que respeitam o espírito dessa constituição. Num Estado
moderno o exercício do poder não é arbitrário. Aproveito, desde já, para dizer
que o poder não é apenas legítimo quando é democrático. Mesmo um poder
dictatorial pode ser legítimo desde o momento que o seu exercício esteja em
conformidade com a lei.
Neste
esquema de coisas, a peça mais fundamental não é o chefe máximo. É o burocrata,
ou para estar mais perto da nossa linguagem, o técnico. É o técnico que dá
substância à autoridade garantindo que o exercício do poder esteja em
conformidade com a lei. O chefe máximo, médio ou mínimo é chefe e tem
autoridade em virtude do lugar que ocupa na máquina de exercício do poder.
Naturalmente que o chefe precisa de ter qualidades excepcionais para chegar até
onde chegou. Mas num contexto de Estado moderno, o seu poder só é legítimo
quando exercido dentro dos preceitos legais. A lei é que é o soberano. Agora, é
um pouco difícil transmitir esta ideia num contexto político e cultural como o
moçambicano em que as noções tradicionais de autoridade – reforçadas pela
atitude paternalista do poder colonial – e em que a socialização primária dos
principais políticos foi feita em ambientes militares – com a sua exigência de
disciplina – ou de exaltação carismática.
Não
estranha, pois, que a cultura política dominante dê maior ênfase à lealdade ao
chefe do que ao respeito pela legalidade. As características principais da
dominação tradicional e da dominação carismática são, respectivamente, a
confusão entre o privado e o público, e a preferência pelos que são leais ao
chefe. O nosso sistema político tem elementos fortes disto, patentes na
dificuldade que a Frelimo tem de se desligar do Estado e respeitar as suas
instituições como bens públicos bem como nas dificuldades do líder do principal
partido da oposição que prefere se fazer rodear dos chamados “yes-men” (homens
que dizem sim a tudo). O Nono Congresso podia ter debatido esta questão, pois o
assunto não é novo. Já nos anos oitenta, quando o fosso entre a vontade
política e a realidade se tornara cada vez maior, a Frelimo decidiu que o
problema residia no facto de a tecnocracia se ter tornado independente do
partido. A conclusão a que se chegou na altura foi de que era necessário voltar
a colocar o partido na direcção. Este é um assunto que merece ainda maior
atenção e estudo. Um passo importante neste sentido foi dado por uma socióloga
da UEM, Judite Chipenembe, que tenta perceber os meandros da burocracia em
Moçambique. De qualquer maneira, um dos erros da análise feita pela Frelimo na
altura foi de ter esperado uma burocracia dócil e eficiente num contexto em que
o próprio poder político se notabilizava pela sua arbitrariedade e
espontaneidade na condução dos destinos do País. A burocracia
precisa de certezas.
O
Congresso podia ter debatido como garantir que os técnicos façam o seu trabalho
como técnicos. Para esse efeito, podia ter reflectido sobre como transformar as
expectativas do partido em leis a serem cumpridas e executadas por técnicos. O
slógan “decisão tomada, decisão cumprida” é sintomático da ausência deste
debate. Num Estado de direito não são decisões que contam, mas sim leis. Sei
que a questão é retórica, mas é importante para se perceber o que está em
causa. Decisões têm a tendência de serem arbitrárias. Decisões são coisas do
pelouro do poder na sua forma bruta, de um poder sem autoridade. As leis podem
ser também arbitrárias, mas pelo menos proporcionam aos técnicos quadros
seguros de referência. Leis conferem autoridade a quem toma decisões. A
autoridade vem da lei. Logo, uma decisão que não é transformada em lei,
dificilmente será cumprida. E se o respeito pela lei não constitui prioridade
para quem toma decisões, então o técnico nunca vai ter a autonomia de que
precisa para ser um técnico. O nosso País ainda tem um longo caminho a
percorrer para incutir nos seus técnicos e políticos a ideia de que os técnicos
estão ao serviço da legalidade.