terça-feira, 4 de setembro de 2012

Juízo Final (iii)

Escrito por Miguel Bruno Duarte

e) O terrorismo em Angola preparado, dirigido e lançado do exterior por iniciativa estrangeira. O apoio comunista por via diplomática, revolucionária e académica aos países africanos mediante a ficção jurídica da autodeterminação e do plebiscito. A política estadounidense como paradoxalmente contraditória da defesa da Europa e a favor do inimigo comunista (6).

f) O comunismo multiforme e aparentemente inócuo na sua identidade doutrinal, adoptando o nacionalismo na Ásia e o internacionalismo na Europa.

g) A instrumentalização da ONU na mira de um governo mundial segundo os interesses e os fins de uma política hegemónica nacional (7).

E assim por diante, para só levantarmos a ponta do véu sobre o que esteve e, para todos os efeitos, continua estando na agenda da Nova Ordem Mundial em curso. Agora, talvez melhor se compreenda o que fora a crise político-diplomática e sua respectiva intensidade revelada a 6 de Janeiro de 1961 pelo ataque à província de Angola, e a 18 de Dezembro do mesmo ano pela invasão de Goa. Mas passemos, sem mais, a palavra a Franco Nogueira: «Naquele dia de 11 de Dezembro de 1961, ao cair da tarde e conforme um anterior pedido de audiência, Salazar vai receber o ministro da Educação Nacional. Afaga a testa, aperta a cabeça nas mãos, e diz para os ministros que saem: «A Educação Nacional! Que será? Bem, vamos tratar do analfabetismo em Santa Comba! A Educação Nacional! Que interesse posso eu neste momento sentir pela Educação Nacional!» (in Franco Nogueira, ob. cit., Vol. V, p. 361).

Seja como for, é sempre bom lembrar, tal como já o reconhecera Franco Nogueira (cf. «Duas Palavras Finais», in ob. cit., vol. VI), que o salazarismo está morto. O que fica, porém, é, quer se goste ou não, a História, ainda que discreta e omissa, pautada pelo último monarca na defesa, levada aos limites do possível, de Portugal perante o movimento hostil e desnacionalizante da maré internacionalista. De modo que, como exprimira Francisco da Cunha Leão, a «nossa história exprime-se [ou, melhor, exprimia-se, até ver…] em sobrehumano esforço para sair de um círculo estreito. Esforço de compensação que teve continuidade pertinaz, jugulando as intermitências depressivas. A defesa esteve na luta aos elementos sitiadores ou restritivos (os mouros, Leão, Castela, o Oceano, a ONU), ataque, negociação, habilidade, mas sempre numa exigência de sobrevalorização do homem nas escalas do heroísmo, da táctica política e da compreensão mútua» (in Ensaio de Psicologia Portuguesa, Guimarães Editores, 1971, p. 134).

Hoje, Portugal não é senão uma ideia. Em termos políticos e económicos, não passa de uma fugaz formalidade ao serviço de partidos, organizações internacionais e poderes estrangeiros. Académica e culturalmente, não vai além de uma planificação apostada num revisionismo ideológico que permanentemente omite, refracta e falseia tanto a verdade histórica como a verdade pautada por valores científicos, artísticos e filosóficos.

Quase toda a gente, medianamente culta, percebe que, após uma revolução, a agressão ideológica, imediatamente expressa numa «caça às bruxas», surge como o sucedâneo do sistema de poder até aí dominante. Todavia, poucos são aqueles que, por razões de vária ordem, entre elas a intuição que foge aos parâmetros da normalidade, conseguem ver e enxergar o que a revolução, depois de institucionalizada, procura vedar e ocultar a um público cuja mentalidade é apenas, sem o saber ou ter consciência disso, o que os meios políticos, económicos e culturais permitem, directa ou indirectamente, que ela seja. Por conseguinte, torna-se perfeitamente compreensível que Franco Nogueira, já devedor de uma larga e comprovada experiência, se tivesse conscientemente confrontado, desde o primeiro momento, com sérias dificuldades e obstáculos na investigação que se propôs sobre a biografia de Salazar, a saber:

«… o Arquivo Salazar, transferido das caves de S. Bento (onde julgo que foi largamente saqueado após o 25 de Abril) para a Biblioteca Nacional (onde creio estar devidamente instalado), continua defeso para os historiadores. Todas as consultas e extensas pesquisas que ali fiz, quando ainda em S. Bento, cessaram pelo menos para mim com o 25 de Abril – ainda que segundo parece o Arquivo esteja agora aberto estranhamente à pesquisa política, com objectivos que antecipadamente se confessam comprometidos e orientados num sentido, e destinados a provar o que deliberadamente se quer provar, sem sujeição à contradita e à rectificação através de pesquisas de investigadores e historiadores. (…) Quando comecei a descrever períodos mais recentes, nos volumes IV e V, e a aludir à acção de homens ainda felizmente vivos, deparei com reacções opostas. Uns teriam querido que eu simplesmente omitisse qualquer referência: sentem horror em que se documente que trabalharam ou exerceram funções de grande relevo com Salazar. Outros teriam desejado que lhes fizesse alusão, e extensa, mas somente para sugerir que já naquela altura se opunham a Salazar, e que até foram vítimas deste, mesmo quando a documentação demonstra quanto eram seus devotados colaboradores…» (in «Duas Palavras Finais»).

Nesta linha, prossegue ainda Franco Nogueira: «Iniciada antes do que se designa por revolução de 25 de Abril de 1974, apenas agora, ao cabo de mais de onze anos, me foi possível concluir esta biografia. Para os hábitos portugueses, é trabalho que tem de ser considerado excepcional, e a obra tem de ser havida por inusitada, embora em muitos países seja curial que a história da vida e do tempo dos seus homens importantes ocupe muitos volumes, às vezes distribuídos por vários autores. Digo trabalho excepcional, evidentemente, apenas no sentido da sua extensão, minúcia, documentação, e até tenacidade no esforço. Durante aqueles anos, muitas foram as vicissitudes a enfrentar. Por um longo período, julguei mesmo inviável prosseguir e terminar o trabalho. Primeiro, pela razão óbvia de, sem acusação, sem interrogatório, sem julgamento, estar preso meses e meses, sem saber se o estaria por anos; e depois porque não cessavam em Portugal as perseguições contra mim, os insultos, as ameaças. Sendo de prever um assalto ao andar onde moro em Lisboa, fiz dispersar toda a documentação, por residências de amigos. Mas o facto foi misteriosamente sabido por misteriosos e solícitos vigilantes. E aqueles amigos começaram-se a sentir também em risco; alguns foram também vítimas de ameaças pouco veladas; houve outros que, tendo escondido malas com documentos em jazigo de família, nem aí os consideraram salvos; e como resultado de todo esse admirável clima de liberdade, de segurança, de respeito pela cultura e pela história, esses amigos sentiram-se forçados a devolver para minha casa toda a documentação, lamentando não poder mais guardá-la. Entretanto, eu estava já exilado em Inglaterra. Então minha mulher, que se conservava em Lisboa, tomou uma decisão, e fê-lo sem mesmo me avisar, porque a correspondência para mim era aberta e as ligações telefónicas de minha casa estavam sob escuta: reúne toda a documentação, os meus apontamentos, os manuscritos, e quase uma biblioteca, em pastas e malas; e, com o auxílio de parentes, atravessa a fronteira numa madrugada, pondo a coberto de atentados todo o material que de outra forma estaria destinado a perda quase certa. Assim foi viável continuar e completar em país estrangeiro o meu trabalho» (in «Duas Palavras Finais»).

Já agora, é sempre bom saber como, em momentos críticos, se podem salvar informações e documentação valiosíssima susceptível de um benefício inestimável para a posteridade (8). E assim vão as revoluções, permeadas de actos heróicos e iníquos, mas nunca, infelizmente, delegando o melhor, como, aliás, nunca estivemos hoje tão perto de o compreender. Sim, porque uma nova mentalidade aí está toda feita, sugerida e pronta para fazer valer a ortodoxia dominante.

Enfim, a «realidade», de um modo geral, parece, nos dias que correm, ir ao encontro do que já Luís Furtado afirmara, lapidarmente, na revista Leonardo: …não pensamos o mundo e a realidade… somos pensados! (9).

Notas:

(6) Sobre o terrorismo em Angola, escreve Oliveira Salazar: «Trata-se de um fio de água, nascido além-fronteiras, protegido até elas, que se infiltra através das ínvias picadas das florestas para reaparecer no interior do nosso território. Por mais estranho que pareça, esse pequeno fio que nasce no Congo, em Conakry ou em Accra, ou ainda mais longe, poderia no entanto ser estancado e enxuto nalgumas grandes capitais como Washington ou Londres. Mas a política não é aí compreendida da mesma forma» (in «Defesa de Angola – Defesa da Europa», SNI, 1962, p. 4). O que acontece, por um lado, devido aos «contactos secretos entre a Administração Kennedy e a UPA» (cf. José Freire Antunes, Kennedy e Salazar, Difusão Cultural, 1991, p. 237) e, por outro, devido, com base numa acta ou protocolo – caído então nas mãos do Governo português – a «um entendimento ou acordo político entre o encarregado de negócios americano em Léopoldville [antiga Kinshasa] e o chefe do movimento terrorista, Holden Roberto (…), discriminando subsídios financeiros [de início 6000 dólares acrescidos de mais 10.000 por ano de 1961 a 1969 – in José Freire Antunes, ob. cit., p. 238] e fornecimento de armas» (in Franco Nogueira, Salazar, Vol. V, pp. 271- 272). Isto para já não falar das actividades dos missionários em Angola (Metodistas e Baptistas) para fins de cover up (ou fins subversivos, na expressão de Adriano Moreira) levados a cabo por operacionais da CIA em África (in José Freire Antunes, ob. cit., pp. 171-173).

Além do mais, também se sabe como o terrorismo, pegando fogo em Angola e na Guiné, tentou idêntico crime em Moçambique. Mas não pôde – conta-nos Franco Nogueira – ir muito além em intensidade comparável, «porque nos encontraram preparados e atentos» (in Salazar, Vol. VI, p. 7). Aliás, já bem se sabia que o dito chefe da libertação de Moçambique era «um professor de uma universidade norte-americana» (ob. cit., Vol. V, p. 507), o que não constituía, como é de calcular, uma simples coincidência.

Trata-se, como é óbvio, de Eduardo Mondlane, que chegara mesmo a visitar Moçambique enquanto – ora bem – funcionário da ONU para a qual trabalhava. Nisto, chegou-se, inclusivamente, ao ponto de, nas Nações Unidas, bem como em Adis Abeba (1963), acusar Portugal de genocídio em Angola, havendo até, face a tamanho absurdo, quem atribuísse aos responsáveis portugueses da época «uma estranha incompreensão sobre o valor de um genocídio ou uma impossível ignorância do que realmente se passava na colónia» (cf. «A Saga Solitária de Franco Nogueira na ONU», in Os Anos de Salazar, Centro Editor PDA, 2008, 25, p. 77). Contudo, ignorante, para não dizer mais, é quem escreve ao sabor da miserável história dos vencedores, segundo a qual os actos terroristas praticados na África portuguesa (uma “inacreditável selvajaria”, segundo a expressão certeira e acertada de Vasco Garin nas Nações Unidas) não passavam – imagine-se – de versão menor nas comunicações oficiais do então Governo português.

Correndo o ano de 1965, convém ainda recordar o plano do embaixador Anderson para o programado abandono do Ultramar português. É claro que o Departamento de Estado norte-americano se descomprometeu a dar garantias políticas, sobretudo quanto à cessação imediata do terrorismo na África portuguesa. Porém, o curioso é que até o próprio George Anderson, após ter visitado os territórios portugueses em África (Fevereiro e Março de 1964), chegara à conclusão de que «a alternativa a uma continuação da presença portuguesa em Angola e Moçambique num futuro imediato» era «o retorno ao tribalismo e o desenvolvimento do caos interno» (cf. «O Plano Anderson de Descolonização», in Os Anos de Salazar, 21, p. 53).

Além disso, o embaixador americano não só recordara como a maioria dos países das Nações Unidas, negando a venda de equipamento militar a Portugal, se recusara a condenar a venda de armas aos «nacionalistas», como ainda criticara a política dos Estados Unidos em relação a Portugal, nomeadamente quanto ao «reconhecimento» da UPA e do seu líder Holden Roberto, porquanto este nem sequer tinha «uma base legítima para falar pelo povo de Angola», visto ser apenas «o líder tribal do povo bacongo». E mais dizendo, referia, de permeio, a existência de «armas, muitas fabricadas por comunistas e fornecidas por outros africanos [do Ghana e da Guiné-Conakry – cf. José Freire Antunes, ob. cit., p. 250] e, possivelmente de forma directa, por certos estados comunistas, incluindo a União Soviética, a Checoslováquia, a China Vermelha e a Jugoslávia». Em suma: tudo isso não somente viria a confirmar a orientação intuitiva de Salazar perante uma «África em fogo», mas também o relatório elaborado pelo segundo secretário da embaixada em Lisboa, Everett Briggs, no qual se sugeria uma mudança da política norte-americana perante o Ultramar português, política essa, no ver do secretário, até aí lesiva quer dos interesses portugueses quer dos americanos a longo prazo na região.

(7) Esta instrumentalização torna-se perfeitamente visível na organização internacional do ensino, se para tal soubermos ver como, entre nós, se processa a passiva e obediente subordinação do sistema escolar e universitário às directrizes programáticas de organizações internacionais, como é o caso da UNESCO e da OCDE. Referimo-nos, pois, a um processo que, já no tempo de Salazar e agravado, por via do veiga-simonismo, no governo de Marcello Caetano, levou a que os portugueses ficassem, técnica e financeiramente, mais, bastante mais dependentes de modelos de ensino de origem estranha ou estrangeira. Deste modo, advogando a «democratização do ensino», Veiga Simão, o ministro caetanista, foi não só, entre nós, o agente encarregue do igualitarismo socialista no plano universitário – para cujo efeito copiava os modelos universitários da Alemanha, da América, da Inglaterra e dos países socialistas –, como ainda, a par da contratação de professores estrangeiros, no plano do restante ensino feito à imagem e semelhança da comunidade técnico-científica, aliás, para o ministro, a única via para a modernização da sociedade portuguesa.

Ora, o veiga-simonismo encontra-se hoje praticamente induzido nas nossas escolas, ainda que a maioria dos professores não tenha disso consciência. Ou seja: o veiga-simonismo projecta-se, na actualidade, por via de uma prática que vai substituindo os professores, propriamente ditos, por agentes de ensino que devem proceder todos da mesma maneira, dar os mesmos programas e utilizar, de uma forma ou doutra, os mesmos textos num sentido que contraria, sem dúvida, o despertar da personalidade única e singular dos seres individuados. Pois bem: o socialismo veiga-simonista é um facto indesmentível, tanto mais comprovado pelo facto não menos indesmentível de o próprio Veiga Simão, depois de aparecer «no dia 26 de Abril de 1974 a querer inculcar-se como um dos próceres da revolução e a pretender figurar no primeiro governo provisório», ter aceite «o lugar, eminentemente político, de embaixador de Portugal nas Nações Unidas» («Resposta do prof. Marcello Caetano à carta do Prof. Veiga Simão», in Marcello Caetano, o 25 de Abril e o Ultramar/Três Entrevistas e alguns Documentos, Verbo, p. 97). Enfim, um verdadeiro camaleão, como diria António Quadros (cf. A Arte de Continuar Português, Edições do Templo, 1978, p. 140).

(8) Menos sorte teve Henrique Veiga de Macedo, a avaliar por estas suas palavras, também por nós testemunhadas à luz de uma amizade imperecível: «…como tantas outras cartas e documentos do meu volumoso arquivo pessoal, em 2 de Maio de 1974, por ordem do Sr. Coronel Vasco Gonçalves, do MFA, me foram levados (sem qualquer explicação e sem que até hoje eu tenha conseguido a sua devolução ou sabido sequer do seu paradeiro), por um subtenente da Armada, dois agentes da Polícia Judiciária e um recruta, de cravo vermelho enfiado no cano de uma G3» (in Salazar visto pelos seus próximos (1946-68), organização de Jaime Nogueira Pinto, Bertrand Editora, 2007, p. 49).

(9) Aproveitando a deixa, aqui fica, a propósito do tema que ora nos ocupa, a questão, digamos assim, levantada a Marcello Caetano nos termos do que, para nós, pode a palavra mentalidade implicar e re-velar em si e por si: «Dizia-se em Portugal que a diferença de atitude do público perante os discursos do Doutor Salazar e os seus é que as pessoas não entendiam o Doutor Salazar, mas sabiam perfeitamente o que ele queria, ao passo que, a si, entendiam muito bem o que dizia, mas não percebiam o que queria…» (in «primeira entrevista», publicada em 25 de Junho de 1976 no jornal do Rio de Janeiro O Mundo Português, in ob. cit., p. 14).

Continua