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Por Carlos Serra
“Nenhuma sociedade progrediu sem fazer a sua própria crítica, sem que os seus criadores e pensadores se metessem contra a corrente dos bem-pensantes (...).” (Henri Lopes, escritor congolês)
1. Introdução
Nos últimos meses, três veteranos da Luta de Libertação Nacional e proeminentes membros da Frelimo, designadamente Graça Machel, Marcelino dos Santos e Jorge Rebelo, têm criticado a gestão estatal do país e o tipo de dirigentes que temos, o que, em última análise, representa uma crítica frontal ao seu próprio partido.
De que maneira podemos analisar a frente crítica que os três formam,
essa maneira de colocar aberta e publicamente problemas que vários ou
muitos gostariam que fossem unicamente discutidos em ambiente
partidário? Que significado futuro poderá ter essa frente crítica, essa
frente que parece retomar a epistemologia da “luta das duas linhas”,
para usar uma expressão histórico-oficial?
2. Com o que está dentro
Os protestos populares de Fevereiro de 2008 e de Setembro deste ano revelaram insatisfação social. De forma apressada nuns casos, conveniente noutras, tentou-se mostrar que (1) tudo tinha a ver com preços elevados e que (2) esses preços eram resultado único da crise financeira mundial e de oscilações de mercado. Por outras palavras, quis-se mostrar que, não havendo preços elevados e não havendo perversidade internacional, tudo estaria bem, especialmente porque o nosso povo é pacífico “por natureza”. Tudo? Tudo não: foi ainda preciso dar conta dos desígnios de uma mão oculta, da maldosa mão que sempre é suposto aparecer para desviar o nosso povo dos bons e ajuizados caminhos. E de quem podia e pode ser essa mão oculta? Evidentemente que de um tenebroso inimigo externo fazendo uso de submãos caseiras, de submãos caseiras “naturalmente” pertencentes à oposição. Não havendo alta de preços, mercado internacional, mãos externas e oposição, o paraíso reinaria definitivamente nesta terra.
Mas o grande problema, agora, é a variada crítica oriunda de Graça Machel, de Marcelino dos Santos e de Jorge Rebelo (excluo referir outros críticos, especialmente os de matriz universitária). Não pertencem aos bairros das periferias urbanas, não são dos partidos da oposição, não partiram montras nem assaltaram padarias, não são vândalos, não estão ao serviço de tenebrosos inimigos externos. São figuras de grande nobreza histórica, são figuras proeminentes da luta de libertação nacional, são patriotas, são figuras do partido no poder. Os seus temas não são os preços, o mercado internacional, as mãos externas e os partidos da oposição. Os seus temas têm a ver com o partido no poder (o seu próprio partido) e com o Estado (que conhecem e do qual fizeram parte), os seus temas têm a ver não com o externo, mas com o interno; não com o que está fora, mas com o que está dentro.
Há, então, quem se surpreenda no geral, quem se horrorize no particular.
Receio que aqui e acolá surja a ideia do patológico. Parodiando Shakespeare: há algo de podre não no reino da Dinamarca, mas no reino das coisas sensatas.
3. As causas do espanto
Começo pelo espanto mais comezinho, o espanto em si.
Na verdade, aos mais variados níveis, as afirmações de Graça Machel, de Marcelino dos Santos e de Jorge Rebelo têm causado espanto.
Espanto porque eles dizem coisas que - julgo que muitos pensam da forma que segue - lhes deviam estar vedadas.
Vedadas por quê? Eis exemplos de respostas que, creio, fazem sentido: porque são membros do Partido Frelimo, porque têm responsabilidades acrescidas, porque não deviam ser como os críticos fáceis, porque deviam colocar os problemas em círculos partidários internos, porque estão a fazer o jogo da oposição, etc. O ideal seria fazerem como os seus camaradas da Assembleia da República: o culto absoluto do seguidismo genuflexivo.
Mas permitam-me considerar uma segunda modalidade de espanto, o espanto do espanto. Na verdade, o espanto pode ser visto num segundo prisma, aquele que situa os três críticos numa frente cúmplice com o seu partido. Então, nesse nível, espantam-se alguns com o espanto do geral dos outros. Por quê? Por que ninguém se devia espantar com o facto de a Frelimo - velha matreira que é, ajuíza-se - querer simular um falso jogo democrático, colocando em aparente disfunção três engenhos de ludíbrio. Por outras palavras: os três críticos são falsos críticos.
Primeira pergunta: por que nos espantamos em geral com as críticas de Graça, Marcelino e Rebelo?
Segunda pergunta: por que achamos em particular que os três são falsos críticos?
Vou avançar algumas hipóteses. Primeira: culto da unanimidade e do secretismo. Muitos de nós fomos educados a pensar numa só direcção, a silenciar as bifurcações, a punir na alma os demónios da dúvida e da diferença. Mais: fomos educados no secretismo, a esconder a crítica frontal, os olhos-nos-olhos. Divergir e, ainda por cima, fazê-lo publicamente, pode ser entendido como falta de respeito, como procedimento não africano. Segunda hipótese: culto do patriotismo do sim conveniente em geral, do sim politicamente conveniente em particular, estimulado e pregado aos mais variados níveis pelos evangelizadores políticos oficiosos e pelos polícias ideológicos como sendo o verdadeiro patriotismo. O “não”, o patriotismo que envereda pelo “não” crítico no sentido de melhorar coisas, veredas e situações, é considerado heresia, ultrage, antipatriotismo. Terceira hipótese: culto da fidelidade partidária com uma só linha de pensamento. Este é um culto tão mais forte em suas exigências quanto mais amplo é o campo de luta interpartidária (a Assembleia da República é, em meu entender, a este nível, um exemplo paradigmático). Quarta hipótese: culto da crença na venalidade de qualquer acto produzido por um partido no poder. Qualquer produto, pequeno ou grande, modesto ou imponente, de um dado partido no poder, é, por inteiro, considerado como uma característica irremediável de cada um dos seus militantes, como um ADN irrecusável de todos os membros desse partido. Quinta hipótese: culto do pecado permanente. Falhas, faltas, erros, fissuras comportamentais, “pecados” cometidos no passado segundo a métrica dos sistemas morais, são considerados transfronteiriços e transtemporais: acompanham os supostos autores toda a vida. Sexta hipótese, espécie de súmula das hipóteses anteriores: culto do sagrado em geral, do sagrado político em particular. O sagrado não se discute, aceita-se.
Discutir o sagrado é impugnar gravemente a divindade ab initio.
Aqui e acolá - falta acrescentar - surgem as ideias de que os três (1) estão saudosos do passado monopartidário (Rebelo parece ser o mais visado neste como nos pontos seguintes), (2) são defensores da pobreza (são contra o enriquecimento dos Moçambicanos), (2) estão descontentes com este presente e (4) sentem-se aborrecidos por não terem mais relevância no comando partidário-estatal. Por outras palavras, uma bateria de críticas que (1) evacua e/ou minimiza o que os três criticam e (2) descredibiliza a sua honestidade.
4. Os temas da frente crítica
Quais são os temas da frente crítica?
São essencialmente três:
(1) corrupção (Graça/Rebelo/Marcelino);
(2) o frenesim do mundo de negócios (Marcelino) e
(3) tecnocracia e falta de real diálogo com o povo (Rebelo).
A corrupção é um tema recorrente na paisagem política do país. O que os artífices da frente crítica põem em questão não é - creio - o enriquecimento em si (já agora: a legimitidade do enriquecimento é diariamente promovida pelas igrejas neopentecostais milagreiro-salvacionistas do tipo IURD e Maná), não é que os Moçambicanos vivam melhor ou bem, mas, por um lado, que o enriquecimento se faça via acumulação ostensiva através do Estado e, por outro, que essa acumulação seja também motivo para uma exposição ostensiva de bem-estar em meio a um povo pobre.
O segundo ponto da frente crítica assenta na publicidade incessante do mundo de negócios. Aqui, Marcelino de Santos é a referência. Na verdade, o veterano da Frelimo toca num ponto importante: o mundo dos negócios, o mundo do lucro, do enriquecimento, do Capital (preste-se atenção aos cursos oferecidos a trouxe-mouxe por várias universidades do país), esse mundo é hoje o tema vector dos discursos de líderes urbanos de vários tipos e de várias ambições, discursos acompanhados do apelo à “cultura do trabalho” (o que significa que se admite que as pessoas trabalham pouco ou que, simplesmente, não trabalham - tema assíduo do discurso colonial, acrescento) e simbolicamente homologados, todos os dias, pelos pastores das igrejas neopentecostais do tipo milagreiro-salvacionista.
O terceiro tema a considerar na frente crítica tem a ver com a tecnocracia e com a falta de real diálogo com o povo. O que quer isso dizer? Quer isso dizer que a comunicação pretendida não tem a ver com governação auto-omnisciente exclusivamente ancorada no topo e cujos actos são comunicados com solenidade distante através dos órgãos de informação, governação que faz do povo um mero recipiente de decisões ou de auscultações cosméticas.
5. O novo social com Mondlane e Samora
Mas a frente crítica surge apenas agora ou tem precursores?
A frente crítica tem precursores, tem dois pais fundadores. Quem são? São Eduardo Mondlane e Samora Machel. É usual apresentar Eduardo Mondlane como a figura “moderada” da Frelimo e Samora Machel como a figura “radical” (mas não menos usual é apresentar ambos como figuras ao sabor de determinados interesses e grupos internacionais, como figuras sem vida própria, sem autonomia, marionetes de Washington, Moscovo ou Pequim). Para simplificar: Mondlane seria o democrata liberal, Samora o autocrata comunista (talvez um dia me decida a estudar este tipo de etiquetagem).
Vou procurar mostrar que o segundo é o continuador e amplificador do primeiro.
De que maneira podemos sintetizar os temas principais de ambos? Da seguinte maneira:
(1) Tipo de sociedade e de relações sociais de produção no Moçambique pós-colonial
(2) Tipo de dirigentes adequados
Na sua obra “Lutar por Moçambique”, a libertação nacional não significava para Eduardo Mondlane a simples expulsão dos Portugueses, mas a reorganização da vida nacional em todas as frentes, reorganização que permitisse ao povo obter um nível de vida “tolerável” (sic), aí compreendida a possibilidade de participar no governo. Um dos pensamentos de Mondlane era o de que para se obter o que chamou “progresso económico e social em largas bases”, era indispensável “eliminar as forças económico-sociais que favorecem as minorias”, que favorecem os “grupos africanos privilegiados”, era necessário evitar “a concentração de riqueza de serviços em pequenas áreas do país e nas mãos de poucos” (Mondlane, Eduardo, Lutar por Moçambique. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1976, 2.ª ed.ª, pp. 181-219, 248-251; diálogos em
1978/1981 do autor deste trabalho com Aquino de Bragança). Na verdade, Mondlane não foi apenas o orientador da libertação nacional, foi igualmente o proponente da luta de libertação social. Esse Mondlane crítico da estrutura social, seja colonial seja pós-colonial, o Mondlane ledor dos conflitos grupais e classistas, o Mondlane do futuro pensando numa sociedade diferente para o “Moçambique novo” (sic), esse Mondlane subvertor raramente surge nos quadrantes de cautela citativa daqueles que estão unicamente interessados em o apresentar como mero guia e unificador da luta de libertação nacional, enchendo-o de predicados amorfos e universais convenientes.
O continuador e ampliador de Eduardo Mondlane, foi Samora Machel, primeiro presidente do nosso país. Logo em 1974, quando da posse do governo de transição, Samora deu a conhecer aquele que devia ser o quadro comportamental dos dirigentes:
“O poder, as facilidades que rodeiam os governantes podem corromper o homem mais firme. Por isso queremos que vivam modestamente com o povo, não façam da tarefa recebida um privilégio e um meio de acumular bens ou distribuir favores. A corrupção material, moral e ideológica, o suborno, a busca do conforto, as cunhas, o nepotismo, isto é, os favores na base de amizade, e em particular dar preferência nos empregos aos seus familiares, amigos ou a gente da sua região fazem parte do sistema de vida que estamos a destruir. O tribalismo, o regionalismo, o racismo, as alianças sem princípios constituem atentados graves contra a nossa linha e dividem as massas. Porque o poder pertence ao povo, quem o exerce é servidor do povo. Quem desviar assim a nossa linha não encontrara qualquer tolerância da nossa parte.”
A 14 de Junho de 1975, a onze dias da independência nacional, o presidente Samora Machel realizou um comício na
cidade da Beira. O que se segue é uma pequena parte do discurso recolhido e transcrito pelos historiadores Colin Darch e David Hedges, discurso que obtive em 2007 graças ao primeiro:
“Vão tentar nascer aqui em Moçambique capitalistas pretos - a chamada burguesia nacional. Aqueles que têm vocação capitalista, agora com a chegada da independência, estão a deitar barba agora, não é? (aplausos) Ganância de fazer ressuscitar o Colégio Luís de Camões - Luís de Camões. Agora que foi... que faliu o dono, vou ser eu. Como sou preto vão tolerar explorando outros pretos, hem! (Aplausos) É que no sistema capitalista, o médico quando estuda é para explorar. O médico, o médico não quer fazer outra coisa que se não fazer votos para que haja muitos doentes. Havendo muitos doentes, terá mais dinheiro. Ouviram? (Ouviram) Ouviram? (Ouviram) Agora, o conhecimento é um instrumento explorador no sistema capitalista.
O conhecimento do indivíduo — estudou um poucoxinho ou licenciou-se. Bem, tem o seu diplomazito, pronto, está pronto, está autorizado a explorar. Fez lá... segui as... seguiu lá... Letras. É senhor doutor, chegou aqui, senhor doutor, senhor doutor, doutor de explorar. Ouviram? (Ouviram) Não é doutor para ensinar o povo. Doutor aonde também, com um conhecimento bastante reduzido, pequenino, fraco, débil, que necessita de outros, do apoio dos outros. Ele não produz senão uma repetição daquilo que foi inculcado pelo capitalismo. É uma repetição. Não cria absolutamente nada, porque está isolado do povo. Está isolado da prática.
A primeira ganância, primeira ganância, criar colégios. Quem vai a esses colégios? É o povo? Quem vai lá? Quem vai lá? A escola deixa de ser a base para o povo tomar o poder. É ou não é? (É) Passa a ser um instrumento de exploração. É ou não é? (É) Não queremos em Moçambique. Não queremos isso em Moçambique. Não há lugar para exploradores aqui.
Preto ou branco não pode explorar o povo. O dever de cada um de nós - dar tudo ao povo. Servir o povo. Os nossos conhecimentos devem morrer na terra. Os nossos conhecimentos devem ser examinados constantemente pelo povo.
Ouviram, camaradas? (Ouviram) Ouviram? (Ouviram)
Alguns já estão a organizar para comprar dez tractores. Já exploraram a zona onde vão produzir. Não é assim? Não há produção individual em Moçambique. Produção colectiva, para colectivamente matarmos a fome, matarmos a miséria no nosso País. Ouviram? (Ouviram) Ouviram? (Ouviram) Porque os individualistas são, ao mesmo tempo, instrumentos do imperialismo, não são, eles? Onde vão encontrar dinheiro? Vocês todos são pobres aqui. Pobres todos aqui, todos. Daqui a três anos nós vamos ver alguns levantar edifícios de quinze andares. Onde arranjou o dinheiro? Onde arranjou o dinheiro?
Hem? Não, é vocês aí! Vocês aí! E nós aqui também! E nós também aqui. Estou a dizer vocês e nós também. Se eu levantar um prédio, façam favor de me perguntarem. Ouviram? Perguntar, então, Camarada Samora, aonde arranjou o dinheiro? Três anos? (Risos, aplausos) Três anos de independência! Camarada Samora, então onde está o povo agora? O povo também já tem muitos prédios? Estão a ouvir? (Estão?).
Temos de combater contra os exploradores do povo e, se pudermos, liquidar ainda no estado embrionário, matar o pintainho no ovo, hem? (Dificuldades de tradução provocaram comentários e risos na audiência)”
Estavam Mondlane e Samora só na cruzada por uma sociedade diferente? Não, é imperativo recordar ainda uma terceira figura fundadora da concepçcão de um social diferente, Amílcar Cabral, que vou citar longamente:
“Nós, da CONCP (Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas), comprometemo-nos com os nossos povos, mas não lutamos simplesmente para pôr uma bandeira no nosso país e para ter um hino. Nós, da CONCP, queremos que nos nossos países martirizados durante séculos, humilhados, insultados, que nos nossos países nunca possa reinar o insulto, e que nunca mais os nossos povos sejam explorados, não só pelos imperialistas, não só pelos europeus, não só pelas pessoas de pele branca, porque não confundimos a exploração ou os factores de exploração com a cor da pele dos homens; não queremos mais a exploração no nosso país, mesmo feita por negros. Lutamos para construir, nos nossos países, em Angola, em Moçambique, na Guiné, nas Ilhas de Cabo Verde, em S. Tomé, uma vida de felicidade, uma vida onde cada homem respeitará todos os homens, onde a disciplina não será imposta, onde não faltará o trabalho a ninguém, onde os salários serão justos, onde cada um terá o direito a tudo o que o homem construiu, criou para a felicidade dos homens. É para isso que lutamos. Se não o conseguirmos, teremos faltado aos nossos deveres, não atingiremos o objectivo da nossa luta”.
6. O horizonte utópico
Seria possível multiplicar os testemunhos, as inquietações, digamos que a busca multilateral de uma linha moral face à maneira como é gerido e politicamente justificado o social no nosso país. Pessoas como Graça Machel, Marcelino dos Santos e Jorge Rebelo — possivelmente há muitas outras — estão preocupadas com a linha moral, estão preocupadas com o futuro, exigem o que um dia, a propósito de Samora Machel, Carlos Cardoso e Siba-Siba Macuácua, Graça Machel chamou “mãos limpas” (metical nº 1057 de 22 de Agosto de 2001).
Essa linha moral cabe inteira no horizonte utópico.
No seu sentido corrente, pejorativo, utopia significa fuga do real, evasão, demissão, fantasia, etc. Mas é possível ter em conta um outro sentido.
Num dos seus livros (“Ideologias da independência africana”) o filósofo burundês Melchior Mbonimpa usou uma imagem — para mim excepcionalmente bela - a propósito do que chamou horizonte utópico: cada protagonista desse horizonte assemelha-se a alguém que, tendo atirado uma bola a um rio no sentido da foz, se lança à água para a apanhar, sem nunca a recuperar mas ao mesmo tempo sem nunca a perder de vista e sem nunca desesperar de a recuperar. Há nisso, ao mesmo tempo, um horizonte, porque o objecto se afasta sempre; e um propósito, porque o alvo, ainda que inacessível, resta visível e leva sempre mais longe o nadador que acredita poder um dia apanhar a bola para a qual projecta o seu desejo infinito.
Temos, assim, o aprofundamento imagético da concepção de Karl Mannheim no seu livro “Ideologia e utopia”, para quem ideologia é o conjunto de idéias que visam manter um determinado tipo de sociedade e utopia, o conjunto das ideias destinadas a criar um outro tipo de sociedade.
A frente crítica aqui em questão é formada por pessoas portadoras de horizonte utópico, pessoas crentes de que é preciso ir muito para além do que o pedagogo brasileiro Paulo Freire chamou acções-aspirina, aquelas acções “cujo pressuposto fundamental é a ilusão de que é possível transformar o coração dos homens e das mulheres deixando intactas as estruturas sociais dentro das quais o coração não pode ter “saúde” (“A mensagem de Paulo Freire e a prática da libertação”).
7. Conclusão: o futuro
Os três membros da frente crítica - Graça Machel, Marcelino dos Santos e Jorge Rebelo - são utópicos no sentido de Mannheim e virados para o horizonte utópico no sentido de Mbonimpa: desejam ver um social diferente, “nadam” em direção à “bola” do futuro.
São - diversamente que seja — herdeiros da epistemologia de Mondlane e de Samora.
Como utópicos, geram inquietações nos ideólogos (atenho-me à classificação de Mannheim), naqueles que pretendem inalterada a medula do actual sistema de relações sociais.
Estamos perante uma luta entre dois tipos de mentalidade.
A terminar este trabalho, vou permitir-me usar três aforismos
1. Boa é a temperatura epistemológica de um país, quando existem utópicos sempre remando atrás da “bola” do futuro.
2. Boa é a temperatura partidária de um país quando um partido pode crescer na interface e na competição entre ideólogos e utópicos.
3. Bom é para o futuro de um país quando se discute não o que é, mas o que podia/devia ser. É aí — nesse questionamento, nesse plebiscito diário, nessa vertigem do futuro - que pode habitar uma das dimensões da eterna juventude de uma nação e do seu pleno desenvolvimento, desenvolvimento medido não em termos de riquezas naturais, de carvão ou de praias, mas em termos de riquezas cognitivas e transformadoras.
O passado de Mondlane e Samora já era, afinal, o futuro da nossa pátria. E - acredito - vai continuar a sê-lo na dialéctica entre os estabelecidos e os que desejam estabelecer-se.
SAVANA – 19.11.2010
2. Com o que está dentro
Os protestos populares de Fevereiro de 2008 e de Setembro deste ano revelaram insatisfação social. De forma apressada nuns casos, conveniente noutras, tentou-se mostrar que (1) tudo tinha a ver com preços elevados e que (2) esses preços eram resultado único da crise financeira mundial e de oscilações de mercado. Por outras palavras, quis-se mostrar que, não havendo preços elevados e não havendo perversidade internacional, tudo estaria bem, especialmente porque o nosso povo é pacífico “por natureza”. Tudo? Tudo não: foi ainda preciso dar conta dos desígnios de uma mão oculta, da maldosa mão que sempre é suposto aparecer para desviar o nosso povo dos bons e ajuizados caminhos. E de quem podia e pode ser essa mão oculta? Evidentemente que de um tenebroso inimigo externo fazendo uso de submãos caseiras, de submãos caseiras “naturalmente” pertencentes à oposição. Não havendo alta de preços, mercado internacional, mãos externas e oposição, o paraíso reinaria definitivamente nesta terra.
Mas o grande problema, agora, é a variada crítica oriunda de Graça Machel, de Marcelino dos Santos e de Jorge Rebelo (excluo referir outros críticos, especialmente os de matriz universitária). Não pertencem aos bairros das periferias urbanas, não são dos partidos da oposição, não partiram montras nem assaltaram padarias, não são vândalos, não estão ao serviço de tenebrosos inimigos externos. São figuras de grande nobreza histórica, são figuras proeminentes da luta de libertação nacional, são patriotas, são figuras do partido no poder. Os seus temas não são os preços, o mercado internacional, as mãos externas e os partidos da oposição. Os seus temas têm a ver com o partido no poder (o seu próprio partido) e com o Estado (que conhecem e do qual fizeram parte), os seus temas têm a ver não com o externo, mas com o interno; não com o que está fora, mas com o que está dentro.
Há, então, quem se surpreenda no geral, quem se horrorize no particular.
Receio que aqui e acolá surja a ideia do patológico. Parodiando Shakespeare: há algo de podre não no reino da Dinamarca, mas no reino das coisas sensatas.
3. As causas do espanto
Começo pelo espanto mais comezinho, o espanto em si.
Na verdade, aos mais variados níveis, as afirmações de Graça Machel, de Marcelino dos Santos e de Jorge Rebelo têm causado espanto.
Espanto porque eles dizem coisas que - julgo que muitos pensam da forma que segue - lhes deviam estar vedadas.
Vedadas por quê? Eis exemplos de respostas que, creio, fazem sentido: porque são membros do Partido Frelimo, porque têm responsabilidades acrescidas, porque não deviam ser como os críticos fáceis, porque deviam colocar os problemas em círculos partidários internos, porque estão a fazer o jogo da oposição, etc. O ideal seria fazerem como os seus camaradas da Assembleia da República: o culto absoluto do seguidismo genuflexivo.
Mas permitam-me considerar uma segunda modalidade de espanto, o espanto do espanto. Na verdade, o espanto pode ser visto num segundo prisma, aquele que situa os três críticos numa frente cúmplice com o seu partido. Então, nesse nível, espantam-se alguns com o espanto do geral dos outros. Por quê? Por que ninguém se devia espantar com o facto de a Frelimo - velha matreira que é, ajuíza-se - querer simular um falso jogo democrático, colocando em aparente disfunção três engenhos de ludíbrio. Por outras palavras: os três críticos são falsos críticos.
Primeira pergunta: por que nos espantamos em geral com as críticas de Graça, Marcelino e Rebelo?
Segunda pergunta: por que achamos em particular que os três são falsos críticos?
Vou avançar algumas hipóteses. Primeira: culto da unanimidade e do secretismo. Muitos de nós fomos educados a pensar numa só direcção, a silenciar as bifurcações, a punir na alma os demónios da dúvida e da diferença. Mais: fomos educados no secretismo, a esconder a crítica frontal, os olhos-nos-olhos. Divergir e, ainda por cima, fazê-lo publicamente, pode ser entendido como falta de respeito, como procedimento não africano. Segunda hipótese: culto do patriotismo do sim conveniente em geral, do sim politicamente conveniente em particular, estimulado e pregado aos mais variados níveis pelos evangelizadores políticos oficiosos e pelos polícias ideológicos como sendo o verdadeiro patriotismo. O “não”, o patriotismo que envereda pelo “não” crítico no sentido de melhorar coisas, veredas e situações, é considerado heresia, ultrage, antipatriotismo. Terceira hipótese: culto da fidelidade partidária com uma só linha de pensamento. Este é um culto tão mais forte em suas exigências quanto mais amplo é o campo de luta interpartidária (a Assembleia da República é, em meu entender, a este nível, um exemplo paradigmático). Quarta hipótese: culto da crença na venalidade de qualquer acto produzido por um partido no poder. Qualquer produto, pequeno ou grande, modesto ou imponente, de um dado partido no poder, é, por inteiro, considerado como uma característica irremediável de cada um dos seus militantes, como um ADN irrecusável de todos os membros desse partido. Quinta hipótese: culto do pecado permanente. Falhas, faltas, erros, fissuras comportamentais, “pecados” cometidos no passado segundo a métrica dos sistemas morais, são considerados transfronteiriços e transtemporais: acompanham os supostos autores toda a vida. Sexta hipótese, espécie de súmula das hipóteses anteriores: culto do sagrado em geral, do sagrado político em particular. O sagrado não se discute, aceita-se.
Discutir o sagrado é impugnar gravemente a divindade ab initio.
Aqui e acolá - falta acrescentar - surgem as ideias de que os três (1) estão saudosos do passado monopartidário (Rebelo parece ser o mais visado neste como nos pontos seguintes), (2) são defensores da pobreza (são contra o enriquecimento dos Moçambicanos), (2) estão descontentes com este presente e (4) sentem-se aborrecidos por não terem mais relevância no comando partidário-estatal. Por outras palavras, uma bateria de críticas que (1) evacua e/ou minimiza o que os três criticam e (2) descredibiliza a sua honestidade.
4. Os temas da frente crítica
Quais são os temas da frente crítica?
São essencialmente três:
(1) corrupção (Graça/Rebelo/Marcelino);
(2) o frenesim do mundo de negócios (Marcelino) e
(3) tecnocracia e falta de real diálogo com o povo (Rebelo).
A corrupção é um tema recorrente na paisagem política do país. O que os artífices da frente crítica põem em questão não é - creio - o enriquecimento em si (já agora: a legimitidade do enriquecimento é diariamente promovida pelas igrejas neopentecostais milagreiro-salvacionistas do tipo IURD e Maná), não é que os Moçambicanos vivam melhor ou bem, mas, por um lado, que o enriquecimento se faça via acumulação ostensiva através do Estado e, por outro, que essa acumulação seja também motivo para uma exposição ostensiva de bem-estar em meio a um povo pobre.
O segundo ponto da frente crítica assenta na publicidade incessante do mundo de negócios. Aqui, Marcelino de Santos é a referência. Na verdade, o veterano da Frelimo toca num ponto importante: o mundo dos negócios, o mundo do lucro, do enriquecimento, do Capital (preste-se atenção aos cursos oferecidos a trouxe-mouxe por várias universidades do país), esse mundo é hoje o tema vector dos discursos de líderes urbanos de vários tipos e de várias ambições, discursos acompanhados do apelo à “cultura do trabalho” (o que significa que se admite que as pessoas trabalham pouco ou que, simplesmente, não trabalham - tema assíduo do discurso colonial, acrescento) e simbolicamente homologados, todos os dias, pelos pastores das igrejas neopentecostais do tipo milagreiro-salvacionista.
O terceiro tema a considerar na frente crítica tem a ver com a tecnocracia e com a falta de real diálogo com o povo. O que quer isso dizer? Quer isso dizer que a comunicação pretendida não tem a ver com governação auto-omnisciente exclusivamente ancorada no topo e cujos actos são comunicados com solenidade distante através dos órgãos de informação, governação que faz do povo um mero recipiente de decisões ou de auscultações cosméticas.
5. O novo social com Mondlane e Samora
Mas a frente crítica surge apenas agora ou tem precursores?
A frente crítica tem precursores, tem dois pais fundadores. Quem são? São Eduardo Mondlane e Samora Machel. É usual apresentar Eduardo Mondlane como a figura “moderada” da Frelimo e Samora Machel como a figura “radical” (mas não menos usual é apresentar ambos como figuras ao sabor de determinados interesses e grupos internacionais, como figuras sem vida própria, sem autonomia, marionetes de Washington, Moscovo ou Pequim). Para simplificar: Mondlane seria o democrata liberal, Samora o autocrata comunista (talvez um dia me decida a estudar este tipo de etiquetagem).
Vou procurar mostrar que o segundo é o continuador e amplificador do primeiro.
De que maneira podemos sintetizar os temas principais de ambos? Da seguinte maneira:
(1) Tipo de sociedade e de relações sociais de produção no Moçambique pós-colonial
(2) Tipo de dirigentes adequados
Na sua obra “Lutar por Moçambique”, a libertação nacional não significava para Eduardo Mondlane a simples expulsão dos Portugueses, mas a reorganização da vida nacional em todas as frentes, reorganização que permitisse ao povo obter um nível de vida “tolerável” (sic), aí compreendida a possibilidade de participar no governo. Um dos pensamentos de Mondlane era o de que para se obter o que chamou “progresso económico e social em largas bases”, era indispensável “eliminar as forças económico-sociais que favorecem as minorias”, que favorecem os “grupos africanos privilegiados”, era necessário evitar “a concentração de riqueza de serviços em pequenas áreas do país e nas mãos de poucos” (Mondlane, Eduardo, Lutar por Moçambique. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1976, 2.ª ed.ª, pp. 181-219, 248-251; diálogos em
1978/1981 do autor deste trabalho com Aquino de Bragança). Na verdade, Mondlane não foi apenas o orientador da libertação nacional, foi igualmente o proponente da luta de libertação social. Esse Mondlane crítico da estrutura social, seja colonial seja pós-colonial, o Mondlane ledor dos conflitos grupais e classistas, o Mondlane do futuro pensando numa sociedade diferente para o “Moçambique novo” (sic), esse Mondlane subvertor raramente surge nos quadrantes de cautela citativa daqueles que estão unicamente interessados em o apresentar como mero guia e unificador da luta de libertação nacional, enchendo-o de predicados amorfos e universais convenientes.
O continuador e ampliador de Eduardo Mondlane, foi Samora Machel, primeiro presidente do nosso país. Logo em 1974, quando da posse do governo de transição, Samora deu a conhecer aquele que devia ser o quadro comportamental dos dirigentes:
“O poder, as facilidades que rodeiam os governantes podem corromper o homem mais firme. Por isso queremos que vivam modestamente com o povo, não façam da tarefa recebida um privilégio e um meio de acumular bens ou distribuir favores. A corrupção material, moral e ideológica, o suborno, a busca do conforto, as cunhas, o nepotismo, isto é, os favores na base de amizade, e em particular dar preferência nos empregos aos seus familiares, amigos ou a gente da sua região fazem parte do sistema de vida que estamos a destruir. O tribalismo, o regionalismo, o racismo, as alianças sem princípios constituem atentados graves contra a nossa linha e dividem as massas. Porque o poder pertence ao povo, quem o exerce é servidor do povo. Quem desviar assim a nossa linha não encontrara qualquer tolerância da nossa parte.”
A 14 de Junho de 1975, a onze dias da independência nacional, o presidente Samora Machel realizou um comício na
cidade da Beira. O que se segue é uma pequena parte do discurso recolhido e transcrito pelos historiadores Colin Darch e David Hedges, discurso que obtive em 2007 graças ao primeiro:
“Vão tentar nascer aqui em Moçambique capitalistas pretos - a chamada burguesia nacional. Aqueles que têm vocação capitalista, agora com a chegada da independência, estão a deitar barba agora, não é? (aplausos) Ganância de fazer ressuscitar o Colégio Luís de Camões - Luís de Camões. Agora que foi... que faliu o dono, vou ser eu. Como sou preto vão tolerar explorando outros pretos, hem! (Aplausos) É que no sistema capitalista, o médico quando estuda é para explorar. O médico, o médico não quer fazer outra coisa que se não fazer votos para que haja muitos doentes. Havendo muitos doentes, terá mais dinheiro. Ouviram? (Ouviram) Ouviram? (Ouviram) Agora, o conhecimento é um instrumento explorador no sistema capitalista.
O conhecimento do indivíduo — estudou um poucoxinho ou licenciou-se. Bem, tem o seu diplomazito, pronto, está pronto, está autorizado a explorar. Fez lá... segui as... seguiu lá... Letras. É senhor doutor, chegou aqui, senhor doutor, senhor doutor, doutor de explorar. Ouviram? (Ouviram) Não é doutor para ensinar o povo. Doutor aonde também, com um conhecimento bastante reduzido, pequenino, fraco, débil, que necessita de outros, do apoio dos outros. Ele não produz senão uma repetição daquilo que foi inculcado pelo capitalismo. É uma repetição. Não cria absolutamente nada, porque está isolado do povo. Está isolado da prática.
A primeira ganância, primeira ganância, criar colégios. Quem vai a esses colégios? É o povo? Quem vai lá? Quem vai lá? A escola deixa de ser a base para o povo tomar o poder. É ou não é? (É) Passa a ser um instrumento de exploração. É ou não é? (É) Não queremos em Moçambique. Não queremos isso em Moçambique. Não há lugar para exploradores aqui.
Preto ou branco não pode explorar o povo. O dever de cada um de nós - dar tudo ao povo. Servir o povo. Os nossos conhecimentos devem morrer na terra. Os nossos conhecimentos devem ser examinados constantemente pelo povo.
Ouviram, camaradas? (Ouviram) Ouviram? (Ouviram)
Alguns já estão a organizar para comprar dez tractores. Já exploraram a zona onde vão produzir. Não é assim? Não há produção individual em Moçambique. Produção colectiva, para colectivamente matarmos a fome, matarmos a miséria no nosso País. Ouviram? (Ouviram) Ouviram? (Ouviram) Porque os individualistas são, ao mesmo tempo, instrumentos do imperialismo, não são, eles? Onde vão encontrar dinheiro? Vocês todos são pobres aqui. Pobres todos aqui, todos. Daqui a três anos nós vamos ver alguns levantar edifícios de quinze andares. Onde arranjou o dinheiro? Onde arranjou o dinheiro?
Hem? Não, é vocês aí! Vocês aí! E nós aqui também! E nós também aqui. Estou a dizer vocês e nós também. Se eu levantar um prédio, façam favor de me perguntarem. Ouviram? Perguntar, então, Camarada Samora, aonde arranjou o dinheiro? Três anos? (Risos, aplausos) Três anos de independência! Camarada Samora, então onde está o povo agora? O povo também já tem muitos prédios? Estão a ouvir? (Estão?).
Temos de combater contra os exploradores do povo e, se pudermos, liquidar ainda no estado embrionário, matar o pintainho no ovo, hem? (Dificuldades de tradução provocaram comentários e risos na audiência)”
Estavam Mondlane e Samora só na cruzada por uma sociedade diferente? Não, é imperativo recordar ainda uma terceira figura fundadora da concepçcão de um social diferente, Amílcar Cabral, que vou citar longamente:
“Nós, da CONCP (Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas), comprometemo-nos com os nossos povos, mas não lutamos simplesmente para pôr uma bandeira no nosso país e para ter um hino. Nós, da CONCP, queremos que nos nossos países martirizados durante séculos, humilhados, insultados, que nos nossos países nunca possa reinar o insulto, e que nunca mais os nossos povos sejam explorados, não só pelos imperialistas, não só pelos europeus, não só pelas pessoas de pele branca, porque não confundimos a exploração ou os factores de exploração com a cor da pele dos homens; não queremos mais a exploração no nosso país, mesmo feita por negros. Lutamos para construir, nos nossos países, em Angola, em Moçambique, na Guiné, nas Ilhas de Cabo Verde, em S. Tomé, uma vida de felicidade, uma vida onde cada homem respeitará todos os homens, onde a disciplina não será imposta, onde não faltará o trabalho a ninguém, onde os salários serão justos, onde cada um terá o direito a tudo o que o homem construiu, criou para a felicidade dos homens. É para isso que lutamos. Se não o conseguirmos, teremos faltado aos nossos deveres, não atingiremos o objectivo da nossa luta”.
6. O horizonte utópico
Seria possível multiplicar os testemunhos, as inquietações, digamos que a busca multilateral de uma linha moral face à maneira como é gerido e politicamente justificado o social no nosso país. Pessoas como Graça Machel, Marcelino dos Santos e Jorge Rebelo — possivelmente há muitas outras — estão preocupadas com a linha moral, estão preocupadas com o futuro, exigem o que um dia, a propósito de Samora Machel, Carlos Cardoso e Siba-Siba Macuácua, Graça Machel chamou “mãos limpas” (metical nº 1057 de 22 de Agosto de 2001).
Essa linha moral cabe inteira no horizonte utópico.
No seu sentido corrente, pejorativo, utopia significa fuga do real, evasão, demissão, fantasia, etc. Mas é possível ter em conta um outro sentido.
Num dos seus livros (“Ideologias da independência africana”) o filósofo burundês Melchior Mbonimpa usou uma imagem — para mim excepcionalmente bela - a propósito do que chamou horizonte utópico: cada protagonista desse horizonte assemelha-se a alguém que, tendo atirado uma bola a um rio no sentido da foz, se lança à água para a apanhar, sem nunca a recuperar mas ao mesmo tempo sem nunca a perder de vista e sem nunca desesperar de a recuperar. Há nisso, ao mesmo tempo, um horizonte, porque o objecto se afasta sempre; e um propósito, porque o alvo, ainda que inacessível, resta visível e leva sempre mais longe o nadador que acredita poder um dia apanhar a bola para a qual projecta o seu desejo infinito.
Temos, assim, o aprofundamento imagético da concepção de Karl Mannheim no seu livro “Ideologia e utopia”, para quem ideologia é o conjunto de idéias que visam manter um determinado tipo de sociedade e utopia, o conjunto das ideias destinadas a criar um outro tipo de sociedade.
A frente crítica aqui em questão é formada por pessoas portadoras de horizonte utópico, pessoas crentes de que é preciso ir muito para além do que o pedagogo brasileiro Paulo Freire chamou acções-aspirina, aquelas acções “cujo pressuposto fundamental é a ilusão de que é possível transformar o coração dos homens e das mulheres deixando intactas as estruturas sociais dentro das quais o coração não pode ter “saúde” (“A mensagem de Paulo Freire e a prática da libertação”).
7. Conclusão: o futuro
Os três membros da frente crítica - Graça Machel, Marcelino dos Santos e Jorge Rebelo - são utópicos no sentido de Mannheim e virados para o horizonte utópico no sentido de Mbonimpa: desejam ver um social diferente, “nadam” em direção à “bola” do futuro.
São - diversamente que seja — herdeiros da epistemologia de Mondlane e de Samora.
Como utópicos, geram inquietações nos ideólogos (atenho-me à classificação de Mannheim), naqueles que pretendem inalterada a medula do actual sistema de relações sociais.
Estamos perante uma luta entre dois tipos de mentalidade.
A terminar este trabalho, vou permitir-me usar três aforismos
1. Boa é a temperatura epistemológica de um país, quando existem utópicos sempre remando atrás da “bola” do futuro.
2. Boa é a temperatura partidária de um país quando um partido pode crescer na interface e na competição entre ideólogos e utópicos.
3. Bom é para o futuro de um país quando se discute não o que é, mas o que podia/devia ser. É aí — nesse questionamento, nesse plebiscito diário, nessa vertigem do futuro - que pode habitar uma das dimensões da eterna juventude de uma nação e do seu pleno desenvolvimento, desenvolvimento medido não em termos de riquezas naturais, de carvão ou de praias, mas em termos de riquezas cognitivas e transformadoras.
O passado de Mondlane e Samora já era, afinal, o futuro da nossa pátria. E - acredito - vai continuar a sê-lo na dialéctica entre os estabelecidos e os que desejam estabelecer-se.
SAVANA – 19.11.2010
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