terça-feira, 7 de agosto de 2012

Construir uma nação: ideologias de modernidade da elite moçambicana, por Jason Sumich*


O presente artigo analisa a importância, para a elite moçambicana politicamente dominante, de uma ideologia de modernidade unificadora. Argumento que esta ideologia de modernidade constitui uma categoria «nativa», sendo utilizada pelas elites para reivindicarem o seu poder social e legitimarem as suas posições de privilégio perante a sociedade em geral. Não se trata de uma ideologia estática, mas antes profundamente enraizada nos antecedentes sociais da elite durante o período colonial e que acompanhou as transformações resultantes da independência do país. Aquilo que foi em tempos um projecto autoritário, mas potencialmente emancipatório, de recriação da nação, está hoje firmemente confinado às próprias elites e a antiga base do nacionalismo tornou-se cada vez mais um indicador de estatuto e de diferença social.

INTRODUÇÃO

Um dia, durante o meu trabalho de campo em Maputo, a capital moçambicana, tive uma conversa com uma amiga, Josina. Na altura eu investigava a formação da elite governante de Moçambique e os seus modos de auto--reprodução social. Os pais de Josina tinham estado envolvidos na luta pela libertação, tornando-se membros destacados da FRELIMO após a independência.

1. Embora alguns membros da sua família tenham militado num movimento revolucionário socialista, Josina autodefine-se como uma capitalista fervorosa e durante a nossa conversa defendeu reformas neoliberais puras e duras para Moçambique. Quando exprimi as minhas dúvidas de que semelhante modelo pudesse ajudar os mais pobres, ou seja, a esmagadora maioria da população, Josina respondeu que o meu problema era estar profundamente equivocado em relação à natureza da sociedade moçambicana. Na sua opinião, os pobres não tinham falta de oportunidades — simplesmente, não estavam interessados nelas:

Há aqui uma enorme diferença que tu não compreendes, acho eu. Passas o tempo todo com pessoas como nós, instruídas e ocidentalizadas. Aqueles que são privilegiados, como nós, têm gostos e desejos que são muito diferentes dos das outras pessoas todas. É realmente uma questão de interesses. A maioria dos moçambicanos são camponeses, têm uma machamba [um pequeno lote de terra], vivem da agricultura, e é isso que lhes interessa e que os satisfaz. A sério que não precisam de instrução nem de mais nada, e a verdade é que nem sequer a desejam. Por exemplo, o meu pai tem raízes pobres, rurais. Gostava de ler, mas não estava assim tão interessado em continuar a estudar.

2. Nunca se interessou por essas coisas até ao momento em que percebeu tudo o que os portugueses tinham, em comparação com o pouco que ele tinha. A maioria das pessoas deste país não está simplesmente interessada em nada disso. Só querem que as deixem cultivar as suas machambas em paz. Nós, os privilegiados, é que queremos e precisamos dessas coisas.

Aquilo que me interessou na resposta de Josina foi não apenas a sua semelhança com algumas das antigas justificações coloniais para a desigualdade, mas também o facto de ser um discurso bastante comum entre as pessoas ligadas à elite dominante, baseada no partido da FRELIMO.

3. Ao longo da minha investigação notei que existia frequentemente entre os membros desta elite o pressuposto implícito de que, por serem instruídos e «modernos», eles eram fundamentalmente diferentes da vasta maioria da população do país. Este sentido de diferença interessou-me, já que era bastante comum entre pessoas que deviam a sua posição de privilégio a uma ligação pessoal ou familiar a um movimento político que, no seu período revolucionário, defendera um nacionalismo supostamente igualitário. Aparentemente, as noções de modernidade que outrora tinham estado na base de uma ideologia potencialmente emancipatória eram agora indicadores de diferença social.

O presente artigo traça as mudanças e continuidades de uma ideologia de modernidade entre uma elite baseada em Maputo desde as suas formulações iniciais sob o regime revolucionário de Samora Machel (1975-1986), passando pela queda do socialismo, até à introdução da democracia neoliberal sob a presidência de Joaquim Chissano (1986-2005). Após a independência, Moçambique conheceu um turbilhão de mudanças políticas e sociais. Em 1977, a FRELIMO apresentava-se como um partido marxista-leninista de vanguarda; em 1983, durante uma brutal guerra civil, foram introduzidos os primeiros esforços de uma Perestroika moçambicana e, a partir de 1989, o partido começou a evoluir no sentido da democracia neoliberal. Contudo, subjacente a estas mudanças dramáticas, tem persistido, ainda que em mudança também, uma ideologia de modernidade que se tem revelado central nos esforços da elite para legitimar o seu papel e o seu estatuto em Moçambique, tanto dentro do próprio grupo como perante a nação em geral. Baseio-me aqui no trabalho de Ferguson, o qual defendeu que, em África, a «modernidade» deve ser entendida como uma categoria «local» utilizada pelos indivíduos como meio de explicarem o seu lugar no mundo e como poderosa afirmação de igualdade (1999, 2002 e 2006). Em Moçambique, as ideias são também categorias «locais» utilizadas pelos indivíduos para explicarem o mundo, mas é importante sublinhar que há frequentemente mais do que uma única e incontestada categoria local. Além disso, no caso de Moçambique, esta categoria «local» tem diversos significados; a ideologia de modernidade da elite baseia-se em ideias de igualdade com o mundo exterior, das quais retira legitimidade, mas constitui também um poderoso instrumento para a criação de desigualdade. A promoção da elite enquanto modelo ideal de modernidade e enquanto único sector social capaz de introduzir essa modernidade na nação constitui, por si só, uma reivindicação de poder.

Fornece um plano para a estruturação e implementação de um conjunto de crenças partilhadas e uma justificação para a hierarquia; nesse sentido, serve de «campo unificador» que promove a coesão das elites (v. Gledhill, 2002)

4. Para compreendermos adequadamente esta ideologia de modernidade teremos de a analisar etnográfica e historicamente desde a independência do país até à actualidade.

Não pretendo afirmar que esta ideologia é incontestada — os debates são frequentes e acalorados no seio da elite da FRELIMO. Defendo, sim, que esta ideologia fornece as bases do discurso utilizado pela elite, bem como muitas das premissas, mesmo para perspectivas rivais.

Nas páginas seguintes analisarei o modo como esta ideologia se converteu no projecto de uma elite nacionalista para a criação de uma nação independente. Como veremos, durante o período imediatamente posterior à independência a ideologia de modernidade da elite, na sua forma nacionalista revolucionária, exprimiu-se por meio de uma vasta tentativa de redefinição do lugar de Moçambique no palco mundial, já que o território passara de colónia dependente a nação soberana com base na mobilização massiva da população.

Este primeiro esforço fracassou devido à crise económica e a uma devastadora guerra civil que estalou em 1977 e se prolongaria até 1992. O colapso da versão nacionalista revolucionária da modernidade não lançou o descrédito total sobre o ideal; pelo contrário, conduziu à reformulação conceptual do mesmo. No período pós-socialista, a ideologia de modernidade foi despojada de grande parte da sua antiga ênfase sobre a mobilização de massas. Em vez de redefinirem o lugar de Moçambique entre a comunidade global das nações, muitos membros da elite procuram agora integrar-se a si próprios em poderosas redes internacionais.

Assim, esta ideologia funciona actualmente, cada vez mais, como um sinal de  status e uma afirmação de poder social por parte da elite. Por um lado, continua a legitimar a posição das elites ao manter de pé a promessa de progresso e, por outro, permite a essas mesmas elites afirmarem-se como as únicas detentoras das competências e capacidades necessárias ao cumprimento dessa promessa. Na prática, a ideologia de modernidade funciona também como um símbolo de afirmações quotidianas de poder social, as quais, ainda que possam ser contestadas, são normalmente compreendidas pela população em geral — pelo menos em Maputo, a zona que me é mais familiar.

Para ilustrar a minha argumentação começarei por examinar as origens e as transformações sociais da elite em questão e o modo como esse processo permitiu o desenvolvimento da ideologia de modernidade. Passarei de seguida a analisar o modo como esta ideologia é inculcada nas gerações mais jovens através da educação e a forma como se exprime através da auto-apresentação e do consumo. Concluirei o artigo com uma breve análise do contributo do caso moçambicano para a literatura antropológica e, mais especificamente, para os temas de África e da modernidade.



AS ORIGENS E TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS DA ELITE MOÇAMBICANA DOMINANTE

Existem em Moçambique diversos grupos que podem reivindicar o título de elite — os

régulos (autoridades «tradicionais»), os líderes religiosos, os estrangeiros associados a organizações internacionais poderosas, os membros mais importantes da classe mercantil indiana e os altos membros da RENAMO, antigos rebeldes que constituem hoje o partido de oposição oficial.

Neste artigo concentrar-me-ei num grupo específico que parece constituir a elite socialmente dominante, ainda que não incontestada, de Moçambique e que é essencialmente composto pelos membros do partido governante da FRELIMO e pelos seus familiares e associados próximos. Não pretendo afirmar que este grupo é completamente homogéneo; de facto, existem diversas facções e clivagens sociais no seu seio. Tais clivagens estão relacionadas com os diversos antecedentes sociais dos membros da elite e incluem a etnia, a região, a religião e o nível de instrução. Existem também fissuras entre a velha guarda revolucionária, que participou na luta pela libertação, aqueles que aderiram ao partido pouco depois e a nova geração de «tecnocratas» que assumiram posições de destaque na fase final do período socialista ou já depois do mesmo. Algumas das actuais facções dentro da hierarquia da FRELIMO resultam destas diferenças, ainda que tendam geralmente a emergir em torno de tópicos como o papel da economia de mercado, a democratização e outras grandes questões. Embora muitos membros da elite tenham sérias divergências de opinião e, em privado, possam manifestar verdadeira animosidade uns pelos outros, há que não exagerar a importância destas clivagens. Para a liderança baseada em Maputo, pelo menos até ao momento, essas diferenças tendem a ser limitadas por um conjunto mais alargado de interesses comuns. É frequente a pertença simultânea a diversas facções, com pessoas a juntarem-se a uma ou outra em função do assunto em causa (Sumich e Honwana, 2007; Sumich, no prelo). Grande parte da liderança baseada na FRELIMO mantém-se unida através de laços de lealdade mútua, de amizade e por vezes de parentesco, bem como por meio de um sentido de identidade partilhada, resultante de experiências similares e reforçada por uma base ideológica. Embora as fissuras internas sejam muito reais, a elite de Maputo tem conseguido apresentar ao mundo exterior uma frente mais ou menos unida. Passarei de seguida a explicar as origens desta ideologia partilhada e as razões pelas quais constitui uma característica tão marcante dos estratos mais destacados da elite de Maputo.

A ideologia de modernidade defendida pelos membros da elite da FRELIMO está intimamente relacionada com os seus antecedentes sociais e a sua situação dentro do sistema colonial. A FRELIMO surgiu em 1962 como uma frente alargada que aliava três partidos de cariz mais regional (Mondlane, 1969; Newitt, 1995). Os primeiros anos do partido foram marcados pelo facciosismo e pela dissenção interna (Opello, 1975). Finalmente, entre 1968 e 1970, após uma série de lutas intestinas e do assassinato do primeiro líder, Eduardo Mondlane, as divisões internas atingiram o seu desfecho.

A principal divisão do partido resultava da oposição entre as duas facções principais — uma radical e outra mais conservadora. A facção conservadora pretendia centrar os esforços na independência e, regra geral, seguia uma linha afro-nacionalista, enquanto a facção radical estava empenhada em universalizar a revolução social, vendo a independência apenas como um primeiro passo. O objectivo dos radicais era assumir o controlo do Estado e utilizar esse poder para remodelar completamente Moçambique e construir uma nova sociedade. Em 1970, a facção radical tinha triunfado sobre os seus adversários mais conservadores e unira o partido sob a sua liderança, ou, pelo menos, decidira adiar as divergências internas para depois da obtenção da independência (Vines, 1996). A facção radical assentava numa aliança entre uma pequena coligação de

assimilados urbanos do Sul, mulatos, brancos e indianos, e uma elite emergente, mais rural, de moçambicanos do Norte educados em missões, excluindo frequentemente muitas elites do Centro do país que tinham antecedentes sociais diferentes (Hall e Young, 1997)

5. Embora os nortenhos, mais rurais, representassem uma secção importante da elite governante, concentrar-me-ei aqui nos assimilados do Sul, já que grande parte da ideologia da elite de Maputo é o resultado das experiências deste grupo, constituindo a base do «campo unificador» dentro do qual a elite tem operado. Os radicais do Sul eram não apenas comparativamente mais instruídos e mais empenhados na implementação da política geral da FRELIMO, como também desempenharam um papel central na formação da ideologia de modernidade, tendo deixado no partido e no Estado uma marca profunda que se manteve até ao período actual, mais tecnocrático.

Para compreendermos os tipos de posições ideológicas defendidas pela liderança da FRELIMO teremos de recuar à fase tardia do período colonial (1930-1975). Os assimilados constituíam uma elite africana emergente, em grande medida criada pelo Estado colonial com vista a limitar o poder das velhas elites crioulas (Cahen, 1992 e 1993). Este grupo tinha, geralmente, laços muito mais fracos com as formas de poder «tradicionais», constituindo, durante o período colonial, uma espécie de pequena burguesia africana, que era uma reduzidíssima minoria dentro da população indígena de Moçambique.

Uma das estimativas mais comuns contabiliza-os em cerca de 5000 indivíduos numa população que rondaria os 8 200 000 antes da libertação (Sheldon, 2002). A estimativa talvez peque por defeito, já que inclui apenas as famílias mais importantes da classe dos

assimilados.

Durante o período colonial, os assimilados constituíam uma categoria privilegiada e detinham «tecnicamente» os mesmos direitos que os colonos portugueses. Se bem que muitos destes direitos não tivessem expressão prática, estes indivíduos gozavam de vantagens significativas em comparação com os chamados  indígenas, que constituíam a vasta maioria da população africana de Moçambique.

De acordo com uma comunicação pessoal de Paulo Granjo, fontes primárias (AHM 1961) contabilizam 1658 pessoas, incluindo as crianças, que obtiveram o estatuto de assimilado em Moçambique desde o início de 1950 até ao final de 1960, último ano em que este vigorou oficialmente. Tendo este estatuto sido instituído em 1917, é plausível que o número global de assimilados fosse superior à estimativa citada, mas não de uma forma muito marcante.



No entanto, independentemente do seu número total, os  assimilados exerceram até à abolição oficial do sistema, em 1961, uma influência desproporcionada em relação à sua pequena dimensão numérica. Para se obter o estatuto de assimilado era necessário satisfazer determinados critérios legais. Os candidatos tinham de jurar lealdade ao Estado colonial, falar apenas português nas suas casas, adoptar hábitos «europeus», abandonar crenças «bárbaras» e obter um atestado de um funcionário português que garantisse a sua probidade. Quem cumprisse estes requisitos recebia, teoricamente, os mesmos direitos legais que os portugueses. Embora assim não fosse na prática, os assimilados obtinham de facto uma ampla variedade de privilégios, como a isenção de trabalhos forçados, o acesso facilitado à residência urbana, à educação e ao emprego, e um pequeno conjunto de direitos civis, passando a estar sob a alçada da lei civil, ao contrário dos indígenas, que estavam sujeitos à lei «consuetudinária» (Mondlane, 1969; O’Laughlin, 2000; Penvenne, 1982 e 1989). Os assimilados tinham a possibilidade de obter um emprego nos mais altos bastiões da economia colonial a que um indivíduo de cor poderia aspirar, tornando-se assim enfermeiros, professores, ferroviários e pequenos funcionários públicos.

O sistema colonial tendia a concentrar o capital mercantil nas mãos de interesses estrangeiros, pelo que a burocracia era a única via acessível a esta elite colonial emergente (Cahen, 1993, p. 49). Graças a estes privilégios, os assimilados eram geralmente vistos como um grupo à parte, distinto dos portugueses, bem como do resto da população africana (Penvenne, 1982).

Os assimilados que constituíam a facção radical da FRELIMO eram sobretudo oriundos do Sul, em particular da capital e da região interior vizinha (Minter, 1996). Embora os críticos do partido usassem este facto para afirmar que a FRELIMO sofria de um «domínio sulista», o problema talvez esteja mais relacionado com a economia política colonial, os antecedentes sociais e as oportunidades educacionais do que com laços étnicos ou regionais específicos. Devido à localização da capital no Sul e à proximidade desta região com os mercados da África do Sul, verificavam-se aqui mais oportunidades de envolvimento no comércio e na migração laboral e de acesso ao sector governamental, de base urbana (Pitcher, 2002). Além disso, os sulistas beneficiavam do acesso às escolas das missões protestantes, que tinham sido impedidas de trabalhar no Centro e no Norte do país. Estas escolas proporcionavam a melhor educação disponível aos negros (Cruz e Silva, 1998 e 2001; Pitcher, 2002). Os sulistas eram, pois, maioritariamente oriundos de contextos urbanos ou periurbanos e, embora muitos deles procedessem de famílias com origens nobres ou de alto estatuto no período pré-colonial, estavam já profundamente integrados na economia colonial e o seu estatuto assentava na posição que ocupavam dentro da hierarquia colonial. Contudo, tornou-se visível que a sua mobilidade social seria sempre limitada e o aumento da imigração portuguesa após a Segunda Guerra Mundial deixou-os numa situação precária. Muitos sentiam uma forte atracção pelos aspectos do progresso que o colonialismo afirmava representar; porém, devido às restrições do sistema, a modernidade à qual aspiravam parecia estar sempre para lá do seu alcance (Hall e Young, 1997). O descontentamento cresceu entre os  assimilados, que se uniram na defesa de causas comuns a outros grupos igualmente insatisfeitos com o sistema colonial — brancos radicais,  mulatos (miscigenados) e indianos. Durante a luta pela libertação, estes grupos, aliados aos comandantes das guerrilhas do Norte, formaram a facção radical da FRELIMO. Isto não significa que todos os assimilados  tenham aderido à FRELIMO. De facto, muitos deles não o fizeram, e a liderança da FRELIMO olhava-os com profunda desconfiança, pois não tinham sido «purificados» pela sua participação na luta (Hall e Young, 1997; Pitcher, 2002). A própria pequenez deste grupo — uma minoria dentro de uma minoria — contribuía para a sua unidade e coesão, mas causou também muitos problemas no período após a independência. Como me foi dito por um professor universitário moçambicano: «O nosso problema era que tínhamos uma elite suficientemente grande para formar um movimento, mas não suficientemente grande para governar o país.» Porém, as origens comuns dos membros deste grupo, oriundos da classe assimilada sobretudo urbana ou não agrícola, ajudaram a criar uma visão específica sobre a criação de uma nova nação após a obtenção da independência, que ocorreria em 1975. Tratava-se de uma visão grandiosa de modernização construída com base nas raízes e preconceitos do grupo, que tendia a ver os camponeses, a grande maioria da nação, como tabula rasa, ou seja, algo que podia ser completamente remodelado de acordo com os seus planos para o futuro (Geffray, 1991; Hall e Young, 1997; O’Laughlin, 2000).

Como fez notar Fry, o período marxista-leninista de Moçambique (1977--1983) seguia, de facto, uma lógica assimilacionista: Apesar do discurso anticolonial do centro e da FRELIMO, em geral, é impossível deixar de observar que o projecto socialista em Moçambique era acima de tudo mais «assimilacionista» do que os portugueses jamais se atreveriam a imaginar e é tentador sugerir que esta é uma das razões pelas quais a elite moçambicana considerava tão atractivo o programa socialista.

Em termos estruturais, havia pouca diferença entre um Estado autoritário capitalista governado por um pequeno grupo de portugueses e assimilados «esclarecidos» e um Estado autoritário socialista gerido por um igualmente reduzido e esclarecido grupo de vanguarda [2000, p. 129].

Fry sugere que, a partir do fim da guerra civil, a elite da FRELIMO começou a reconceptualizar o seu lugar no tecido nacional e a defender uma perspectiva mais local e menos elitista. Esta evolução acompanha a mudança da lógica de poder em Moçambique, pois torna-se agora necessário à FRELIMO distanciar-se das suas raízes  assimiladas e alargar a sua base de apoio. Assim, para Fry, é como se a FRELIMO, que desde sempre desprezara o quadro cultural da maioria da nação, tivesse, finalmente, de se submeter a ele, ou pelo menos de o respeitar (2000, p. 135).

Fry defende um ponto importante ao reconhecer algumas das continuidades ideológicas entre o sistema da assimilação e o projecto socialista pós--independência. Ao contrário do que se passava no período colonial, em que os benefícios da assimilação eram restritos a alguns poucos que serviam de exemplo aos seus irmãos mergulhados nas trevas da ignorância, a elite da FRELIMO pretendia recriar toda a nação à sua imagem. Não pretendo afirmar, porém, que o socialismo em Moçambique tenha sido apenas um projecto mais ambicioso de assimilação. Embora o sistema assimilacionista possa ter fornecido uma base ao socialismo da FRELIMO, as diferenças entre ambos são muito reais. Para alcançar o estatuto de assimilado, um indígena tinha necessariamente de satisfazer determinados critérios legais, e a verdade era que esse seu novo estatuto não era mais do que uma entrada parcial no projecto de modernização colonial. Pelo contrário, o objectivo da FRELIMO era subverter inteiramente este sistema e criar a sua própria forma de modernidade.

Durante a fase inicial do período socialista, o âmago do programa da FRELIMO para a construção de uma nação moderna era a criação de um homem novo. Na perspectiva dos líderes revolucionários, este processo tinha já começado nas zonas libertadas que a FRELIMO tivera sob o seu controlo durante o período de luta armada contra os portugueses. O homem novo seria algo completamente diferente. De acordo com um dos principais teóricos da FRELIMO neste domínio específico, Sérgio Vieira, o  homem novo representava uma ruptura decisiva com as suas encarnações anteriores — homem feudal, homem colonial e homem burguês (1977, p. 3). O homem burguês era de importância relativamente menor na análise de Vieira, já que em Moçambique, durante o período colonial, não se tinham desenvolvido as condições necessárias à criação em ampla escala de uma burguesia independente.

Após a partida dos portugueses existia apenas uma pequena burguesia (ibid., p. 9). De muito maior importância eram o homem feudal e o homem colonial. O primeiro estava ligado à cultura e às estruturas de poder «tradicionais», descritas como desiguais, patriarcais, gerontocráticas, supersticiosas e estáticas. Todavia, de acordo com Vieira, este sistema não existia por

si só, mas enquanto subsidiário do colonialismo, já que até o mais poderoso

chefe indígena devia obediência ao mais subalterno dos funcionários coloniais

(

ibid., p. 11). A última categoria, a do homem colonial, correspondia

328

Jason Sumich

aos

assimilados: «[o homem colonial] é um pequeno-burguês que procura

recuperar e integrar modelos tradicionais, feudais, na sociedade burguesa»

(

ibid., p. 9).

À excepção dos antigos

assimilados, ninguém sabia ao certo o que seria

este

homem novo. Teria de se basear na ciência, na «racionalidade» e no

trabalho colectivo, mas estava ainda em processo, era algo que não nascera

ainda por completo (

ibid., p. 25). Os assimilados tomavam como modelo a

identidade nacional portuguesa; pelo contrário, o

homem novo seria um ser

universal, bem como a encarnação da emergente personalidade e cidadania

moçambicana. De acordo com Cahen, este processo era uma criação de uma

elite que não concebia a existência de um Estado sem uma nação e procurava,

assim, criar uma nação à sua imagem (1992 e 1993). Ainda que esta ideia de

uma recriação dramática da personalidade moçambicana pudesse ter interessado

relativamente pouco à vasta maioria da população, o seu poder de atracção

para os militantes da FRELIMO era bastante real. Como me foi dito por um

antigo membro do partido: «Ser chamado um

homem novo por Samora

Machel era verdadeiramente emocionante. Nós íamos construir uma nova

nação, parte de um novo mundo, era tudo urgente […] vivíamos num estado

permanente de exultação.» O

homem novo seria a expressão concreta — ou,

para usar a terminologia da época, a vanguarda — do grande projecto de

modernização. Seria um novo tipo de cidadão, a verdadeira encarnação da

ideologia de modernidade da FRELIMO.

Grande parte dos fundamentos da ideologia de modernidade da FRELIMO

provinha das experiências daqueles que a lideraram durante o colonialismo e

as cisões da luta de libertação. Assim, entrava frequentemente em choque

com outras correntes nacionalistas que prevaleciam em África, já que a

FRELIMO aliava o nacionalismo a uma ideologia socialista universalista, em

detrimento de valores mais comuns, como o afro-nacionalismo e a «autenticidade

». Porém, a formação desta ideologia assentava também em aspectos

que tinham inspirado muitos outros movimentos nacionalistas e revolucionários.

A FRELIMO esperava que uma experiência partilhada de opressão

colonial pudesse criar a base para um sentimento de cidadania comum

(Mondlane, 1969; Pitcher, 2002). Como nas teorias de Frantz Fanon, pensava-

se também que a participação na luta de libertação e o combate ao jugo

colonial através de actos de violência «purificadora» pudessem ajudar a criar

um

homem novo (Fanon, 1963; Museveni, 1971). Foi com base neste sentido

heróico da luta de libertação que os líderes da FRELIMO procuraram

criar os alicerces de uma nova cidadania, enfrentando desse modo um

problema que aflige frequentemente os movimentos nacionalistas. O nacionalismo

é legitimado através de um sentido do carácter único da nação; porém,

não é invulgar que os modernizadores nacionalistas pareçam de certo modo

329

Ideologias de modernidade da elite moçambicana

emular aqueles que anteriormente os oprimiam (Chakrabarty, 1997; Chatterjee,

1986).

A criação de um sentido partilhado de identidade nacional era uma preocupação

central para os líderes da FRELIMO, como é atestado pela ênfase

dada ao conceito de

homem novo. Embora a participação na luta de libertação

devesse lançar os alicerces desta nova cidadania, só uma pequena minoria de

cidadãos da nova nação tinha participado efectivamente nela. Relativamente

ao resto da população, o partido enfrentava o dilema de construir uma identidade

nacional ao mesmo tempo que tentava destruir os vestígios da velha

sociedade. A abordagem adoptada pela FRELIMO foi extremamente ambiciosa,

tendo em conta a falta de recursos e a fragilidade da nação que

procurava criar. Uma das principais bases da identidade nacional seria a

oposição a qualquer tipo de tradição «primordial». Certas formas culturais,

como a dança e as artes, eram encorajadas, já que demonstravam uma

identidade nacional única; porém, os comportamentos culturais «tradicionais

» deviam ser abandonados (Mondlane, 1969). Agostinho Neto, o líder do

MPLA angolano, definiu o tipo de posição que a FRELIMO viria a assumir

ao afirmar o seguinte sobre o objectivo cultural do seu partido: «Estamos a

tentar libertar e modernizar o nosso povo através de uma dupla revolução:

contra as suas estruturas tradicionais que já não lhe são úteis, como o

separatismo étnico, a crença na feitiçaria, a opressão das mulheres — e

contra o domínio colonial» (cit. por Davidson, 1984, p. 800).

A FRELIMO estava também empenhada em esmagar as estruturas tradicionais

que, na sua opinião, já não serviam o povo. Todavia, esta perspectiva

sobre a tradição era profundamente influenciada pelos antecedentes

sociais dos líderes revolucionários, que aspiravam à modernidade e se ressentiam

profundamente do facto de o colonialismo lhes ter negado o acesso

total à mesma. Para esta elite, um regresso à «cultura tradicional» não era

uma opção realista. A cultura tradicional estava associada à derrota e à

humilhação; era a causa da fraqueza que possibilitara a subjugação de Moçambique

pelos portugueses. Como fizeram notar Hall e Young, «a elite da

FRELIMO e os estratos sociais que a apoiavam estavam profundamente

convictos da superioridade da civilização moderna e da necessidade de evoluir

até ao seu nível. A única forma de resolver estes dilemas era ver o

«povo» como um vazio, mas possuidor de potencial para o desenvolvimento

» (1997, p. 65). Obviamente, «o povo» não era um recipiente vazio; no

entanto, para que houvesse desenvolvimento era necessário destruir as suas

estruturas tradicionais. Assim que assumiu o controlo das estruturas do

Estado, a FRELIMO utilizou o seu poder para cumprir esse objectivo. Pouco

depois da independência, o novo governo emitiu uma enorme abundância de

decretos. A autoridade tradicional foi abolida, o

lobolo (dote pago pela fa330

Jason Sumich

mília do noivo à da noiva) foi declarado ilegal, os homens polígamos estavam

impedidos de se filiarem no partido, as cerimónias tradicionais foram proibidas,

as instituições religiosas passaram a ser olhadas com desconfiança e

os praticantes de «feitiçaria» corriam o risco de serem enviados para campos

de reeducação. Ao mesmo tempo, empreenderam-se esforços no sentido de

transferir os camponeses dos seus pequenos agregados residenciais dispersos

para aldeias comunais centralizadas, que se tornariam «cidades no mato».

A FRELIMO travou uma intensa batalha contra aquilo a que chamava superstição

ou «obscurantismo», procurando substituí-lo pela racionalidade e

pelo socialismo científico. A enorme ambição dos seus propósitos era limitada,

na prática, pela fraqueza do Estado no período que se seguiu à independência.

O partido monopolizara o poder, mas o país estava efectivamente

na bancarrota e havia poucos recursos ou pessoal habilitado para levar a

efeito os planos do novo regime. Com o esmorecer do entusiasmo entre

alguns sectores do campesinato, a FRELIMO viu-se cada vez mais forçada

a recorrer a métodos coercivos como forma de combater a resistência

popular aos seus planos de modernização.

A reacção aos planos modernizadores da FRELIMO variou de região para

região. Em algumas zonas, os planos foram relativamente bem sucedidos.

O trabalho de Norman (2004) na província de Gaza, no Sul, dá testemunho

de como, após uma cheia que destruiu as antigas casas e devido a uma

desconfiança prévia resultante do papel da autoridade tradicional no recrutamento

de trabalhadores forçados durante o período colonial, os planos da

FRELIMO para transferir os camponeses para aldeias comunais e abolir a

autoridade tradicional gozaram de grande popularidade. Na província

nortenha de Cabo Delgado, um dos bastiões da FRELIMO, os efeitos foram

desiguais. De acordo com o estudo de West (2001) no planalto de Mueda,

alguns aspectos do programa das aldeias comunais foram bem acolhidos pela

população e a concentração de grandes grupos de pessoas criava novas

oportunidades de sociabilidade; porém, verificaram-se também numerosas

acusações de bruxaria, já que as sanções contra a feitiçaria se revelaram

ineficazes quando aplicadas a uma população tão vasta. Noutras áreas ainda

as medidas da FRELIMO destruíram formas de organização social muito

subtis, sem proporcionarem um modelo de substituição coerente. O trabalho

de Geffray (1991) no distrito de Erati descreve a fúria popular contra a

destituição dos líderes tradicionais e os esforços empreendidos para transferir

a população para aldeias comunais. O sucesso ou fracasso da revolução social

modernizadora da FRELIMO dependia frequentemente de condições locais,

que raramente eram tomadas em linha de conta pelos líderes em Maputo.

Na época em que tomou o poder, a FRELIMO gozava de um formidável

grau de apoio popular, pelo que os seus líderes acreditavam ser capazes de

mobilizar a população para o esforço heróico da modernização do país.

331

Ideologias de modernidade da elite moçambicana

Como se pode ver no estudo de Donham (1999) sobre os derg da Etiópia,

grande parte do poder de atracção do comunismo para os movimentos

radicais africanos não estava na eventual utopia prevista por Marx, mas nos

exemplos concretos da URSS e da China, onde uma pequena mas determinada

elite assumira o poder em nações agrárias «retrógadas», convertendo-

-as em potências industriais à escala mundial no espaço de poucas décadas.

A maioria da população moçambicana acolheu com júbilo a conquista da

independência, mas mostrar-se-ia mais ambivalente com a revolução social

modernizadora da FRELIMO. No entanto, alguns segmentos da população

acreditavam verdadeiramente no projecto da FRELIMO — sobretudo os

mais jovens e, ironicamente, os mais ricos —, o que legitimava o poder do

partido. Outros, porém, eram-lhe totalmente hostis. Apenas dois anos após

a guerra da independência Moçambique mergulhava numa nova guerra.

A FRELIMO apoiava o movimento de libertação da vizinha Rodésia e, em

retaliação, o regime rodesiano dominado pela minoria branca constituiu um

exército rebelde, a RENAMO (Resistência Nacional de Moçambique), composto

por dissidentes moçambicanos. Após a queda do regime rodesiano e

a declaração de independência do novo Zimbabwe, a África do Sul tornou-

-se o patrocinador da RENAMO e a guerra civil devastou o país, causando

a morte de 1 milhão de pessoas numa população de cerca de 16 milhões.

Muitos dos progressos reais do governo da FRELIMO em termos de educação

e saúde foram destruídos. Apesar da sua brutalidade, a RENAMO conquistou

apoios nas regiões mais hostis à revolução social da FRELIMO. Em algumas

zonas, a RENAMO foi inicialmente recebida como uma força de libertação;

noutras, porém, a população não tomou qualquer partido, mantendo-se indiferente

a ambas as forças em conflito (Geffray, 1991; Hall e Young, 1997). Com

base nas ideias de Cahen, Geffray defendeu que a FRELIMO habitou em

grande medida um «país imaginário» construído sobre um sonho ideológico de

futuro e que as tentativas de implementação deste sonho alienaram profundamente

uma grande parte da população, permitindo à RENAMO — um

movimento que começara por ser uma agressão financiada por fundos estrangeiros

— construir uma base social e embarcar em algo que viria a

transformar-se numa verdadeira guerra civil (Geffray, 1991). Embora o trabalho

de Geffray tenha suscitado um grande número de críticas, existe muita

verdade nas suas ideias fundamentais

7. Contudo, há sempre o risco de se

levarem demasiado longe tais ideias; temos de reconhecer que determinados

elementos da ideologia de modernização da FRELIMO exerceram também

algum poder de atracção sobre alguns sectores da população do país.

Independentemente do poder de atracção das duas visões em conflito, a

verdade é que a nação moçambicana estava em crise. Em 1984, a elite do

partido começou a compreender a gravidade da situação e a tentar distanciar-

7

Para uma crítica em profundidade de Geffray, v. Dinerman (1994).

332

Jason Sumich

-se das suas posições mais radicais — mas por essa altura era já demasiado

tarde, pois a FRELIMO tinha já perdido o controlo sobre uma grande parte

do país, mantendo-se firme apenas nas principais cidades. As tentativas de

afastamento da ideologia socialista, iniciadas em 1983 e 1984, ganharam

alento a seguir à morte do primeiro presidente, em 1986. Após o colapso da

União Soviética, e numa tentativa para desconcertar a RENAMO «anticomunista

», a facção pró-capitalista da FRELIMO ganhou ascendência e o socialismo

acabaria por ser abandonado em 1989 (Pitcher, 2002). A paz chegou,

finalmente, em 1992 e foi baseada num acordo para abandonar o sistema de

partido único e adoptar uma democracia multipartidária capitalista. Embora

a FRELIMO tenha vencido todas as três eleições que se celebraram no pós-

-guerra, em 1992 a impressão preponderante era que a sua ideologia de

modernidade jazia despedaçada entre as ruínas fumegantes da nação.

Todavia, apesar de todas as mudanças, da passagem de um Estado socialista

de partido único para uma democracia capitalista liberal, a ideologia

de modernidade sobreviveu e continua a funcionar como uma afirmação de

poder, ainda que tenha mudado de forma. Como fizeram notar Hall e Young

(1997, p. 219), após o fracasso do socialismo no esforço de modernização

do país, a elite do partido decidiu seguir o outro grande caminho para a

modernidade — o liberalismo. O capitalismo neoliberal possui similaridades

raramente mencionadas com o socialismo revolucionário, no sentido em que

ambos têm presunções messiânicas quanto à sua capacidade de reformarem

profundamente a sociedade e de criarem algo de novo (West, 1997). Na

prática, ambos assentam também numa intervenção estatal maciça com vista

ao estabelecimento das condições para a sua implementação (Hall e Young,

1997, p. 221). Embora existam divergências entre as facções rivais da

FRELIMO relativamente ao modo de implementação da sua ideologia de

modernidade, esta continua a constituir uma das bases do poder da elite.

A ideologia de modernidade da elite nasceu como uma grandiosa tentativa de

redefinição do lugar de Moçambique dentro da comunidade internacional.

Após a queda do socialismo, esta tornou-se progressivamente um importante

indicador de

status e uma persistente reivindicação e afirmação de

poder social por parte da elite. A capacidade das elites de se verem a si

mesmas como «modernas» — dentro de uma nação que, segundo elas, o

não é — permite-lhes afirmar a sua diferença, criando um sentido de identidade

e de coesão. Até mesmo certos elementos do antigo conceito de

homem novo

sobrevivem actualmente entre os membros mais jovens da elite,

ainda que sob uma forma muito diferente. Para o exemplificar transcrevo de

seguida uma conversa que tive com uma jovem mulher de uma família de

elite, durante a qual ela me transmitiu a sua visão pessoal sobre os principais

problemas que afligem Moçambique na actualidade. Em sua opinião, a causa

333

Ideologias de modernidade da elite moçambicana

fundamental das dificuldades do país não era de natureza política ou económica,

antes radicava na própria população:

O problema é que nós, negros, continuamos duzentos anos atrasados.

Isso vê-se em toda a parte. Quando chegamos ao poder, a única preocupação

é encher os bolsos. O mais importante é a tua posição e os teus

contactos. Quando as coisas correm mal, culpa-se qualquer coisa de

fora, o Ocidente, ou os espíritos, o problema é sempre dos outros. Os

brancos e os indianos podem roubar este país à vontade, nós damos-lho

de graça. Se um negro abre uma loja numa zona de indianos, os outros

indianos unem-se todos para o obrigarem a fechar as portas. Nós não

somos assim, limitamo-nos a pedir dinheiro. Depois, se alguma coisa

corre mal, vão a um feiticeiro para tentar perceber o que aconteceu.

E não é só em caso de doenças, quer dizer, eles percebem de ervas e

nesses casos a coisa talvez funcione. Vão ao feiticeiro por razões estúpidas,

como problemas sentimentais. As pessoas acham que a magia

pode impedir o parceiro de as trair. Ficavas admirado se conhecesses

essas pessoas, pessoas que andaram na universidade, que têm estudos e

que deviam ter mais juízo.

Uma vez mais, os problemas da nação resultam do facto de os seus

habitantes serem «supersticiosos», em vez de «racionais». De facto, os

principais alvos desta crítica são as pessoas que deviam estar mais perto do

ideal do

homem novo — aquelas que têm estudos e que deviam ter mais

juízo.

Embora a retórica e os métodos tenham mudado, esta jovem mulher

parece continuar a acreditar nos objectivos gerais da ideologia de modernidade,

se bem que não esteja certa de que eles tenham sido alcançados. Na

secção seguinte analisarei o modo como esta ideologia é inculcada através de

práticas educacionais específicas e o modo como as suas afirmações de

poder social são apresentadas através de determinadas formas de consumo,

particularmente entre uma nova geração que nasceu após a independência e

para a qual o socialismo não passa de uma memória de infância. A meu ver,

a ideologia de modernidade, nas suas formas em mudança, tem sido fundamental

no reforçar da coesão da elite, bem como na abertura de novas

oportunidades de expansão desse mesmo grupo, cujo poder assenta na sua

ligação ao partido e, por extensão, no seu controlo do Estado.

DISTINÇÃO PELA EDUCAÇÃO

Em Moçambique a educação é imensamente respeitada, em parte talvez

devido ao péssimo historial do Estado colonial nessa matéria, como é atestado

por um dito popular entre a geração mais velha de Maputo: «As antigas

colónias britânicas tiveram escolas, estradas, caminhos-de-ferro e hospitais,

334

Jason Sumich

ao passo que os portugueses só serviam para construir igrejas.» Ainda que

exagerada, esta acusação encerra um fundo de verdade. Mesmo pelos padrões

coloniais, geralmente baixos, Portugal investiu uma insignificância na

educação da população africana, delegando normalmente essa responsabilidade

na Igreja Católica (Cruz e Silva, 1998 e 2001; Pitcher, 2002). Na década

de 1960, o Estado colonial aumentou drasticamente as oportunidades educativas

ao dispor da população africana, num esforço para conquistar «o coração

e o espírito» do povo, para o dissuadir de lutar pela libertação, ainda

que com escassos resultados práticos: «Apenas 1% da população — cerca

de 80 000 pessoas — tinha ido além dos quatro anos de ensino básico e a

maioria destes eram colonos portugueses. Em 1973 apenas 40 dos cerca de

3000 estudantes universitários eram africanos» (Minter, 1996, p. 22).

De acordo com as estimativas, a taxa de analfabetismo aquando da independência

do país ultrapassava os 90% (Hanlon, 1990; Munslow, 1983).

Durante o período colonial, a melhor instrução a que a maioria da população

podia aspirar não ia além de alguns anos de catecismo na missão católica

local a troco de emolumentos e de trabalho manual (Cruz e Silva, 2001;

Gómez, 1999). Devido à sua raridade, o acesso a uma educação adequada

tornou-se um sinal de distinção, funcionando como uma entrada simbólica

numa modernidade mais ampla

8. O facto não deverá surpreender-nos, já que

um indivíduo teria de pertencer a uma família de estatuto relativamente

elevado para ter acesso à educação, a qual lhe permitia reforçar o seu

estatuto como membro da elite. Por meio da educação, um indivíduo podia

obter emprego no funcionalismo público, nos caminhos de ferro, ou abraçar

uma carreira de enfermeiro, professor ou tradutor. Estes empregos, quer

através da sua relativa importância, quer através dos seus adereços simbólicos

— um fato e uma gravata, uma casa num bairro de assimilados e,

acima de tudo, um automóvel —, tornavam bem evidente o lugar de destaque

que os seus detentores ocupavam na hierarquia social. A educação permitia

a uns poucos afortunados progredir (tanto quanto possível) no sector «moderno

» e predominantemente urbano da economia colonial, e é precisamente

aqui que podem ser encontradas as raízes da ideologia de modernidade. Não

pretendo com isto afirmar que todos os assimilados aderiam inteiramente ao

sistema ou que esta forma de entrada no conceito colonial de modernidade

eliminava tudo o que existia previamente — porém, não há dúvida de que o

modificava. Um excelente exemplo pode ser encontrado numa história que

ouvi contar. Durante o período colonial, um assimilado mais velho, compreendendo

que já não poderia exigir o

lobolo pelo casamento da filha, pediu,

8

Havia diferenças em relação às missões protestantes suíças que operavam no Sul, se bem

que muitos dos seus alunos pertencessem também a famílias relativamente abastadas. Para mais

pormenores, v. Teresa Cruz e Silva (1998 e 2001).

335

Ideologias de modernidade da elite moçambicana

em vez disso, como pagamento simbólico, uma gravata, caso o pretendente

fosse aceite. Com isto, o homem não só contornava as restrições impostas

pela assimilação, como também reforçava o seu estatuto social, já que a

gravata era um símbolo da sua integração na economia «moderna». Para os

assimilados, uma gravata era praticamente um distintivo de posto (comunicação

pessoal de Granjo). Outros ex-assimilados disseram-me que, quando

frequentavam escolas portuguesas de elite durante o período colonial, muitos

dos seus colegas deixavam de os ver como negros. A educação conferia

estatuto e autoridade a um indivíduo, não só aos olhos da população africana

em geral, como também, tanto quanto possível, perante a minoria portuguesa.

Não deixa de ser muito revelador o facto de Eduardo Mondlane, o

primeiro líder da FRELIMO, ter sido também o primeiro negro a concluir um

curso universitário em Moçambique.

Quando tomou o poder, a FRELIMO estava determinada a introduzir

grandes melhorias no sistema educacional da sua nova nação. Isto porque a

vasta maioria da população portuguesa tinha abandonado o país, o que decapitara

virtualmente a classe profissional e administrativa de Moçambique,

mas também porque a educação seria um dos alicerces de um novo sentido

de identidade nacional. Por meio da educação, os ideais da FRELIMO poderiam

ser disseminados entre sectores da população que tinham participado

pouco ou nada na luta da libertação — as escolas formariam um novo tipo de

cidadão, o

homem novo baseado na ciência e na «racionalidade» (Gómez,

1999). Foram empreendidos esforços no sentido de alargar o sistema

educativo a todo o país, mas a falta de recursos e de pessoal habilitado

dificultava o estabelecimento do sistema nas zonas rurais. Assim, os esforços

do governo concentraram-se sobretudo nas cidades, particularmente em Maputo,

o coração do regime. Naema, actualmente professora, descreveu do

seguinte modo o sistema de educação revolucionário durante os primeiros

tempos da independência:

Era tudo muito empolgante. Antes da libertação não sabíamos grande

coisa sobre a FRELIMO. Eu lembro-me de ter visto a palavra FRELIMO

escrita numa parede, mas o meu tio disse-me que nunca a repetisse a

ninguém, caso contrário podia meter-me em sarilhos. Quando a FRELIMO

chegou e expulsou os portugueses, toda a gente festejou, em especial os

mais novos. Íamos construir um novo Moçambique. Eles [a FRELIMO]

vinham às nossas escolas para nos ensinarem coisas sobre o nosso país.

Havia muitas manifestações, as pessoas pegavam em cartazes e, todas

juntas, formavam uma bandeira, como fazem os norte-coreanos, sabe.

Aos domingos fazíamos serviços de limpeza voluntários na cidade; eles

queriam que fôssemos bons cidadãos. Era uma maravilha. Hoje em dia

a cidade está imunda e ninguém faz nada. Muitos dos meus alunos nem

336

Jason Sumich

sequer sabem a letra do hino nacional. O patriotismo já não significa

nada, e eles já nem tentam ensiná-lo como antigamente.

Naema apoiou com entusiasmo as tentativas de construção da nação e,

enquanto adolescente, foi contagiada pela euforia desses tempos. Outras

pessoas, porém, puseram em dúvida a qualidade do muito ampliado sistema

educativo, inclusivamente em Maputo, onde as instalações eram geralmente

de qualidade superior. Uma jovem mulher descreveu do seguinte modo a

educação que recebeu pouco depois da independência:

Foram tempos estranhos. Os antigos guerrilheiros apareciam nas escolas

e davam aulas. Muitos deles nem sequer tinham recebido qualquer

tipo de instrução, mas, uma vez que tinham acabado de libertar a nação,

estavam convencidos de que isso era o suficiente. Sentavam-se em frente

às turmas e falavam das suas vidas. Pensavam que era assim que se

ensinava. Mesmo os outros professores quase não tinham experiência

nenhuma. Muitos deles eram muito jovens, com apenas alguns anos de

escola. Os meus professores e eu aprendemos a ler juntos.

Muitos membros da FRELIMO fazem eco desta apreciação bastante

desfavorável. Um antigo oficial contou-me o seguinte:

«Foram tempos de grande entusiasmo. Estávamos convencidos de

que podíamos fazer um melhor trabalho do que os portugueses. Eles

eram estrangeiros e queriam explorar o nosso país para seu próprio

benefício. Nós íamos dar uma vida melhor ao nosso povo. Éramos muito

ambiciosos e muito jovens; para pessoas da nossa idade, tínhamos enormes

responsabilidades. Era aí que estava uma parte do problema, julgo

eu. Queríamos educar a nação, mas nós próprios não tínhamos educação

praticamente nenhuma.

De início, a revolução social da FRELIMO visava modernizar toda a

nação e a educação era a pedra angular dessa política. Contudo, este

ambiciosíssimo plano tinha de ser posto em prática com recursos mínimos

e muito pouco pessoal habilitado. Aquilo que começou por ser um grande

esforço em benefício de toda a nação em breve começaria a ser restringido

à população urbana, em geral, e à elite, em particular. Embora pretendesse

eliminar por completo o antigo sistema de diferenciação social, a FRELIMO

começou a reproduzir determinados aspectos do mesmo.

Um dos exemplos mais visíveis do aparecimento de novas distinções foi

a criação da escola da FRELIMO em Maputo, destinada aos filhos dos altos

membros do partido. O propósito desta escola era instruir os líderes do

337

Ideologias de modernidade da elite moçambicana

futuro, e aqui a ligação entre educação de qualidade e estatuto e poder era

bastante explícita, como é demonstrado pelo exemplo seguinte.

Catarina nasceu em 1975 no seio de uma família ligada à FRELIMO; o

seu pai foi ministro do governo. Foi educada na escola da FRELIMO até aos

9 anos. Havia mais 30 alunos na sua turma, todos eles oriundos de famílias

de elite. De acordo com Catarina, as regras de disciplina da escola eram

muito rígidas. Quando um professor entrava na sala, os alunos tinham de

se levantar, saudar o professor e aguardar permissão para se sentarem.

O programa de estudo era rigoroso e os alunos tinham melhores professores

(na sua maioria expatriados), melhor comida e melhores materiais. Tinham

até um autocarro para os levar e trazer, um luxo praticamente inaudito

naquela época. Os estudantes normais, que iam a pé para a escola, costumavam

zombar deles quando os viam passar, comparando-os a gado numa

camioneta. Outra amiga minha lembra-se de sentir ódio pelos privilégios dos

alunos da escola da FRELIMO, confessando-me que ela e os amigos costumavam

arremessar pedras contra o autocarro escolar quando este passava

na rua.

O propósito declarado desta escola era ensinar os futuros líderes a construírem

o socialismo. Porém, apesar da retórica igualitária, a escola desempenhou

um papel essencial na criação de um grupo privilegiado de pessoas

enquanto classe à parte. A julgar pela hostilidade que a escola da FRELIMO

inspirava, fica-se com a impressão de que o seu propósito era amplamente

reconhecido. A crescente estratificação social foi inicialmente desencadeada

pelo enorme aumento da mobilidade social, particularmente em Maputo, que

se verificou após a independência do país. O êxodo dos portugueses deixara

vagos praticamente todos os cargos profissionais e administrativos do país

e, pela primeira vez, os moçambicanos viam-se promovidos às posições

anteriormente ocupadas pelos colonialistas. Durante o meu trabalho de campo

recolhi numerosos testemunhos de estudantes que se viam subitamente

promovidos a professores, de trabalhadores que davam por si, praticamente

de um dia para o outro, nas juntas que geriam as suas fábricas (Sumich, no

prelo). Quase todos aqueles que tivessem algum tipo de instrução conseguiam

arranjar emprego, se o desejassem. Com a abertura do sistema

educativo não apenas aos jovens, como também aos adultos, a oportunidade

de se obter distinção e poder sociais através da educação parecia de facto

ter sido alargada a toda a população urbana. No entanto, devido à crise

económica e à guerra civil que continuava a alastrar, em breve se desenvolvia

uma economia de privação, pelo que, para muitas pessoas, a educação

e a economia «moderna» continuavam a estar para além do seu alcance.

Pude compreendê-lo claramente durante um jantar com uma família de

Maputo. Depois da refeição, a anfitriã mostrou-nos um álbum de fotografias

dos primeiros anos do seu casamento, logo a seguir à revolução. Ao olharem

338

Jason Sumich

para as fotografias, os filhos dela e alguns dos parentes mais jovens desataram

a rir. Como acontece com os adolescentes de todo o mundo, os

jovens achavam divertidos os enormes penteados «afro» e as roupas fora de

moda dos pais, mas estavam também chocados ao notarem a extrema

magreza de todos os fotografados e a péssima qualidade das suas roupas e

das peças de mobiliário. A anfitriã tentou explicar que naquele tempo —

o

tempo de fome,

como lhe chamou — não havia mais nada para comprar.

Ouvi com frequência comentários semelhantes durante as discussões furiosas

a que assisti durante o meu trabalho de campo sobre o legado do período

socialista. Alguns afirmavam que no

tempo de Samora (a presidência de

Samora Machel) as coisas eram melhores, já que pelo menos havia ordem,

um objectivo claro e pouca criminalidade; outros, mais cínicos, contrapunham

que a criminalidade era rara porque não havia nada para roubar. Outros

ainda defendiam essa espécie de solidariedade negativa do período socialista,

afirmando que, pelo menos nessa altura, todos (a elite e a população em

geral) eram igualmente pobres, ao contrário do que se verifica no presente,

dominado por elites abastadas que tudo monopolizam. Porém, mesmo os

mais fervorosos defensores do tempo da revolução admitiam que, apesar da

solidariedade e da euforia em torno da construção da nova nação, os tempos

eram muito difíceis e a maioria das pessoas passava fome — um caso à

parte era o dos poucos felizardos que tinham contactos em Portugal e que

regressavam das suas viagens tão carregados de produtos que o aeroporto

mais parecia um mercado de rua. Embora a FRELIMO tivesse conseguido

alargar o sistema, a distinção e o estatuto que ele simbolizava continuavam

a ser difíceis de alcançar, mesmo para a elite privilegiada da capital.

A transição para o capitalismo não atenuou necessariamente esta situação.

Em alguns casos houve talvez um agravamento das diferenças de estatuto e,

uma vez mais, a disponibilidade de novos tipos e formas de educação assinalou

mudanças mais alargadas dentro da ideologia de modernidade. A escola

da FRELIMO há muito foi encerrada, mas tal não significa que os filhos da

elite tenham sido reintegrados no sistema de ensino público frequentado pela

maioria da população; na verdade, afastaram-se ainda mais dele graças a uma

rede emergente de escolas privadas e internacionais. Bastará hoje um rápido

passeio por Maputo para que notemos as diferenças entre as escolas da elite

e as escolas públicas. A cidade tem muitas escolas, mas a maioria delas está

em mau estado de conservação, com a tinta das paredes descascada e os

vidros das janelas partidos. Os estudantes passam por estes edifícios ao

longo do dia, vaga após vaga, já que o excesso de alunos obriga as escolas

a trabalharem por turnos. No outro lado da cidade, no Bairro Triunfo (uma

zona de elite), a situação é muito diferente. É numa rua sem saída, algo

resguardada, ligeiramente desviada da estrada principal, que se situam muitas

das escolas privadas e internacionais da capital. Embora a rua não esteja

339

Ideologias de modernidade da elite moçambicana

alcatroada, a diferença entre estas escolas e as instituições públicas é evidente.

Muitas delas têm dois ou três andares, as paredes estão pintadas de

fresco, as janelas intactas e os alunos são deixados à porta por uma grande

variedade de carros e jipes de luxo. As instalações são de qualidade muito

superior, os professores (moçambicanos e estrangeiros) contam-se entre os

mais competentes do país e as propinas mensais oscilavam, em 2002-2004,

entre os 100 dólares — um montante muito elevado, mesmo para uma

família de classe média — e os 1000 dólares, um valor que excede em muito

as possibilidades de todos os moçambicanos que não pertençam à elite.

Embora muitos dos jovens da elite frequentem escolas no estrangeiro — a

África do Sul, a Suazilândia, o Brasil, Portugal e o Reino Unido encontram-

-se entre os destinos mais comuns —, a maioria deles completa a instrução

básica nestas escolas privadas e internacionais. A maior parte destes jovens

de elite desconhece em absoluto as escolas públicas, e as diferenças de

classe em Maputo são claramente demonstradas pelo tipo de escola que se

frequenta.

Uma vez que a educação é um dos pontos fundamentais da ideologia de

modernidade da elite, as diferenças de acesso à mesma revestem-se de um

poder tanto simbólico quanto real. A elite dominante de Moçambique obtém

o seu poder por meio da sua ligação ao Estado e ao partido da FRELIMO.

Sob este aspecto, desenvolveu algumas das características de algo a que se

tem chamado

burguesia estatal (Leys, 1982; Cohen, 1982). Todavia, a

queda do socialismo abriu novas oportunidades aos membros desta elite, que

se mostram cada vez mais propensos a ultrapassarem as fronteiras de

Maputo e a expandirem-se para redes internacionais. A privatização dos bens

do Estado permitiu à elite da FRELIMO adquirir empresas, propriedades e

casas e o influxo de companhias multinacionais e de organizações de apoio

ligadas à comunidade internacional proporcionou também novas e lucrativas

oportunidades aos antigos membros do governo e suas famílias. Muitos dos

membros da elite passam a sua vida profissional numa rotatividade entre o

governo, a comunidade internacional e as empresas privadas. A educação de

qualidade superior proporciona à elite as qualificações necessárias para tirar

proveito destas novas oportunidades, as quais permanecem inacessíveis ao

resto da população, ainda que se afirme que o sistema se baseia no mérito

pessoal. Isto não significa que não existam divisões no seio da elite; muitos

dos membros mais estudiosos desprezam os menos aplicados, alguns dos

quais, pelo que se ouve dizer, passam sete anos na Cidade do Cabo a

tentarem concluir um curso de três anos. Continuam a travar-se debates

ferozes sobre a direcção futura do país. Porém, os membros da elite podem

recorrer ao argumento de que a sua posição elevada se justifica plenamente,

já que eles são os únicos que possuem as qualificações e a experiência

necessárias para governarem uma nação moderna. Esta ideologia cria um

340

Jason Sumich

«campo unificador» que garante a coesão das diferentes facções da elite e

constitui o núcleo da sua identidade de grupo (Gledhill, 2002).

A educação e o estatuto de elite tendem a reforçar-se mutuamente, com

a educação a fornecer as qualificações necessárias e a entrada na elite, o que,

por sua vez, permite o acesso a redes sociais extremamente poderosas. Esta

posição de domínio é expressa pelos membros da elite através de determinados

padrões de consumo e de auto-apresentação. O facto tornou-se-me

evidente durante uma conversa com uma mulher cujos pais são membros

destacados da FRELIMO. Na opinião desta moçambicana, a RENAMO não

tem capacidade para dirigir o país, já que os seus membros não passam, de

acordo com as suas palavras, de camponeses incultos. A mulher ilustrou as

suas afirmações com o seguinte exemplo:

Lembro-me do que se passou em 1992, quando foi declarada a paz

e a RENAMO saiu do mato. Deram-lhes casas — pelo menos aos sujeitos

mais importantes do partido. Era um dos termos do acordo de paz.

Quando eles [RENAMO] aqui chegaram, não faziam ideia de como se

vive numa cidade. Costumavam estender a roupa nos relvados à frente

das casas, imagina! E esta gente acha que consegue dirigir um país.

É uma anedota; eles nunca tinham saído do mato.

Perguntei-lhe se as coisas não teriam sido similares quando a FRELIMO

«saiu do mato» pela primeira vez, terminada a guerra da independência. Ela

retorquiu, surpreendida: «Claro que não. Os da FRELIMO lutavam no mato,

mas sabiam viver numa cidade, não eram ignorantes.» Assim, a auto-apresentação

com base no consumo de bens de prestígio — automóveis, roupas

ocidentais e uma educação cara e de alta qualidade — constitui um factor

crucial da expressão de modernidade e de poder social (Bourdieu, 1984;

Vom Bruck, 2005). Trata-se de uma afirmação de superioridade em relação

à maioria da população moçambicana, bem como de uma afirmação de

igualdade em relação ao mundo exterior. Estas afirmações de estatuto e

poder são reconhecidas pela população de Maputo em geral, ainda que as

pessoas contestem a justiça das mesmas. Certa ocasião fui abordado num

café por um homem que procurou convencer-me de que eu, como estrangeiro,

tinha a obrigação de o ajudar a financiar a sua revolução contra o injusto

estado de coisas actual. Quando lhe perguntei o que resultaria da sua revolução,

o homem sorriu e replicou: «Nessa altura serei eu a andar de

Mercedes

Embora afirmasse desejar uma revolução, o homem apresentava uma lógica

semelhante à das elites. Não defendia argumentos de redistribuição da riqueza,

limitando-se a argumentar que os símbolos de poder social (no caso, um

Mercedes,

o automóvel usado pelos ministros do governo) estavam nas mãos

341

Ideologias de modernidade da elite moçambicana

das pessoas erradas. A sua revolução garantiria que esses objectos passassem

para as pessoas certas — neste caso, ele próprio.

CONCLUSÃO: MODERNIDADE E PODER

No presente artigo vimos que a ideologia de modernidade defendida pela

elite política dominante de Moçambique constitui um elemento crucial na

estruturação das relações de poder social. Embora tenha assumido aspectos

variados desde a independência do país, esta ideologia continua a ser uma

forma simbólica de afirmação de legitimidade, proporcionando à elite um

sentido coerente de unidade, na medida em que lhe permite monopolizar

oportunidades dentro do Estado e da economia de mercado em expansão,

bem como outras vantagens menos tangíveis. Através das suas oportunidades

educacionais e culturais, e devido ao facto de serem, com frequência,

fluentes em português e em inglês, estas elites têm a possibilidade de se

«misturarem» mais facilmente com os estrangeiros que gerem as empresas

multinacionais e as organizações da comunidade internacional. Através da

análise desta ideologia e do seu desenvolvimento histórico, espero ter demonstrado

as ligações existentes entre o poder e um tipo muito particular de

ideologia de modernidade, contribuindo assim para o debate sobre o papel da

modernidade no contexto africano.

A modernidade tem sido, para a antropologia africanista, um conceito muito

debatido, mas frequentemente vago. As antigas certezas de uma trajectória

linear ao longo de uma sequência de estádios de desenvolvimento — com o

resultado final de o mundo se tornar mais semelhante ao «nosso», o do

Ocidente «moderno» — têm sido justamente atacadas pelo seu etnocentrismo

subjacente (Asad, 1973; Moore e Sanders, 2001). Muitos antropólogos fizeram

notar que certos traços e crenças supostamente pré-modernos, como a

feitiçaria ou a importância das identidades étnicas, são, na verdade, respostas

muito subtis a determinadas condições específicas (Comaroff e Comaroff,

1993; Geschiere, 1997; Moore e Sanders,

ibid.). Alguns analistas chegaram ao

ponto de afirmar que o desenvolvimento pós-colonial em África aponta para

uma «retradicionalização», que conduzirá a uma forma de modernidade especificamente

africana baseada, em parte, na etnicidade, na feitiçaria e no

clientelismo (Chabal e Daloz, 1999).

Embora estes estudos tenham demonstrado a inadequação das simplificações

da visão de Rostow da inevitabilidade dos processos teleológicos de

modernização, alguns estudiosos têm mais recentemente perguntado se o interesse

académico pela modernidade não terá obscurecido, mais do que

elucidado, o assunto. De acordo com Cooper, o problema é que o termo

«modernidade» é utilizado como uma moldura temporal (englobando diferentes

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Jason Sumich

períodos), uma posição ideológica, uma apreciação crítica, um conceito popular

e uma categoria analítica (2005, pp. 113-114). Assim, determinados processos

complexos observados no terreno são frequentemente apresentados

como uma forma de modernidade à qual o próprio analista está ideologicamente

associado.

Como referi no início deste artigo, Ferguson logrou evitar este problema

ao concentrar-se na modernidade enquanto categoria especificamente «nativa

» (1999, 2002 e 2006). Segundo este autor, a ideia de uma modernidade

alternativa ou especificamente africana baseada na feitiçaria encheria de

horror os seus informadores, bem como as pessoas que eu próprio conheço

em Moçambique. Pelo contrário, uma ideia de modernidade universal constitui

uma expectativa justa e uma afirmação de igualdade em relação ao

mundo mais vasto: também os africanos deveriam poder beneficiar dos

frutos da economia supostamente global. Existem muitas semelhanças entre

a análise de Ferguson e a realidade que observei em Maputo. Poderíamos

argumentar que a nação independente de Moçambique é uma criação da

ideologia de modernidade da FRELIMO (Bertelsen, 2004; Minter, 1996), ou,

como argumentaram alguns críticos da FRELIMO, como Cahen, que a elite

do partido se vê a si própria como a nação e tenta remodelar o resto da

população à sua imagem mediante um processo de opressão uniformizadora

(1992 e 1993). Embora Cahen esteja certo em muitos aspectos, parece existir

uma visão mais ampla da nação, ao menos para alguns, o que permite ao

partido utilizar o seu papel enquanto criador dessa visão para fazer uma forte

afirmação de legitimidade moral. Contudo, a ideologia de modernidade da

elite é também uma afirmação de diferenciação e de desigualdade social.

A asserção de que, dentro da nação, alguns são mais modernos do que

outros constitui também a base da hierarquia social, particularmente em

Maputo. Cahen está correcto quando identifica os aspectos opressivos desta

versão de uma ideologia de modernidade; porém, é também certo que esta

ideologia cria desigualdade e uma base social porque a população mais

alargada responde a pelo menos alguns aspectos dessa visão. Para compreendermos

de que modo as ideologias de modernidade ajudam a moldar as

estruturas de domínio temos de nos concentrar no facto de que existem

diversos modelos «nativos» ou populares dentro de um contexto social e de

estudar o modo como esses modelos interagem e divergem. E temos de

compreender também que tais modelos são condicionados pelos acontecimentos

correntes e sofrem alterações ao longo do tempo. As mudanças do

clima político em Moçambique, tal como a eleição de um presidente mais

nacionalista em 2005, parecem apontar para o início de uma nova fase do

velho modelo da FRELIMO. O desabafo de uma pessoa amiga, que é também

membro da FRELIMO, talvez nos dê uma indicação desta mudança:

«Começo a pensar que a democracia é inimiga do desenvolvimento.» Esta palavras talvez sugiram que o liberalismo começa a esmorecer enquanto epítome actual da modernidade e que uma nova forma se encontra já em desenvolvimento.

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