sábado, 4 de agosto de 2012

A Opção pela Espada


LEGIÃO ESTRANGEIRA FRANCESA
Meados de 1972, Paris
Mala na mão esquerda, olho para trás contemplando Fonteneau-sur-le-Bois como um mundo a esquecer. Passo firme e decidido como sempre quando me sinto fraco e indeciso, aproximo-me do Fort de Nogent, carrancudo e atarracado Posto de Informação da Legião Estrangeira. Sorrio.
- "Deixe de ser idiota, aLegião não existe mais já faz uns vinte anos!!" Um Legionário de la classe com seu inefável quepe branco vem ao meu encontro, desconhecendo o fato de que ele não existe há mais de vinte anos, segundo meus colegas de Força Aérea.
-Volunter?
-Oui.
- Vien avec mói!
As cinco palavras bastam para me levar até um Adjudant alemão, responsável pelo recrutamento. Seu francês é regular, seu passado um tanto menos... Conversamos. Pergunta-me sobre Hitler, respondo em alemão, o que o faz sorrir largamente, deixando vagar suas recordações por algum tempo, ajeitando-se na cadeira.
Algumas perguntas de ordem técnica, apresento os meus documentos absolutamente desnecessários que são guardados em um envelope, juntamente com todos os papéis pessoais que possam me identificar. Torno-me, contra vontade, Pablo Riveira, nascido em Sant-Anna (?), Brasil, aos 16 de novembro de 1951. Nascido em 1949, ganho dois anos de vida sem qualquer ónus de minha parte, informa divertido o Adjudant. Não pude conservar meu nome verdadeiro.

II
MOÇAMBIQUE
Após uma entrevista num programa de rádio e uma reportagem numa revista católica, já como cidadão português, embarco num voo noturno na TAP com destino a Beira (Moçambique), via Luanda. A guerra já se faz presente: o Boeing 707 português não tem permissão para sobrevoar países africanos e sua rota é uma longa curva em torno do continente negro. O mesmo acontece com os aviões sul-africanos.
A noite passa tranquila e ao amanhecer estamos aterrissando em Luanda, capital de Angola. Piso em solo africano pela primeira vez, sinto-me bem. A escala é apenas para abastecimento e em seguida estamos no ar. Sobrevoamos Salisbury, capital rhodesiana, última cidade importante antes de chegarmos à Beira, centro urbano da costa do Oceano Índico e o porto que alimenta Rhodésia, isolada do mundo por um bloqueio económico imposto pela Inglaterra.
Uma Kombi me leva para o Hotel Moçambique, moderno e confortável. As conversas, em dialeto local, são totalmente incompreensíveis para mim, mas todo nativo fala também português. Noto o movimento contínuo de tropas, principalmente os GEP, Grupos Especiais pára-quedistas, cujo quartel é em Dondo, nas proximidades.
Durmo no hotel seguindo de manhã para Nampula, num Boeing 737 da DETA, a companhia aérea que realiza voos domésticos. A maior parte dos passageiros é militar; estamos nos aproximando da zona de guerrilha.
Cruzamos o rio Zambeze e Quelimane, cidade situada em sua foz. No meu destino final sou esperado pelo enorme e patriarcal padre Patrício, chefe da sociedade Missionária na Região. No aeroporto alinham-se dois Fiat G-91 com "colmeias" de rockets sob as asas, helicópteros Alloete III, C-47s e os transportes de pára-quedistas, apelidados pêlos nativos de barriga de ginguba (amendoim). O número de viaturas militares é enorme, predominando os pequenos Unimogs, chamados de "burros do mato" pela sua versatilidade e resistência e as gigantes Berlietz, caminhões de transporte geral.
Por todo lado se vêem os comandos com seus camuflados e lenços coloridos no pescoço, empunhando as G-3 alemãs ou pequenas Uzi, israelenses. E estes homens de elite, em sua maior parte, eram negros moçambicanos, que não queriam que o caos se apoderasse de sua terra.
A cidade, que percorro no VW do padre Patrício, é um grande quartel; nitidamente ela vive às custas dos militares. Mas não tenho tempo para observações, pois sou levado para Marrere, distante 15 Km de Nampula, um complexo constituído de hospital, escola primária, oficinas, plantações de algodão e Escola de Professores de Posto Escolar; nesta última é que darei instrução de Educação Física.
Sou bem recebido, acabo me tornando também professor de Ciências Naturais e Trabalho Manuais-Desenho, pois a falta de docentes é crítica. Este período é de vital importância, pois assimilo a realidade das colónias africanas, tomo conhecimento da política ali realizada e me entroso com os militares de todos os níveis.
Com o Diretor da Escola, padre Alexandre, passo a conhecer melhor Portugal e suas tradições bem como os Macuas, a tribo da região, sobre os quais o dedicado padre havia escrito vários contos e preparava agora um dicionário. Foi realmente a melhor maneira de entrar em África. Como professor de Educação Física mantenho minha forma ao mesmo tempo em que aperfeiçoo meu método de comando, aplicando-os aos nativos. Comandar em África não é o mesmo que em países da Europa ou América.
Com o professor Quina, o português que irei substituir no Marrere, fazemos uma viagem de uns vinte dias pelo distrito de Nampula, Zambézia e sul do Niassa, na fronteira com o Malawi, onde entramos em companhia do chefe da DGS local.
Por aquela fronteira costumam cruzar secretamente os recrutas da Frelimo, a Frente da Libertação de Moçambique, que farão instrução na Tanzânia voltando depois com seu terrorismo covarde. Lidera o grupo um ex-auxiliar de enfermagem de Lourenço Marques, Samora Machel. O verdadeiro líder, Mondlane, morrera na explosão de uma bomba que Samora imputara à DGS. Nunca ficou provado...
No sul do Niassa encontro as Milícias de Intervenção; está aí algo que não conhecia e que poderei ingressar. São profissionais, não pertencem ao Exército e tem a função de patrulhar estradas, defender aldeamentos, proteger os trens de carga/passageiros dos ataques e das minas. Enfim, no Niassa, zona de combate, existia todo o esquema de recrutamento que em Portugal seria impossível encontrar devido à burocracia.
Depois que Quina parte para o sul, fico com sua motocicleta, uma Zundapp 200, com o qual percorro as trilhas e aldeias próximas do Marrere, conversando com os nativos, principalmente com os régulos, autoridades tribais tradicionais reconhecidas pêlos portugueses, mas que a Frelimo procura derrubar. São nossos aliados e têm grande influência na consciencização do povo, contra a propaganda marxista e racista dos guerrilheiros.
Em Nampula existe, a exemplo de toda a colónia, a OPVDC, Organização Provincial de Voluntários para a Defesa Civil, que abrange todos os voluntários e lhes proporciona treinamento militar e armas. É uma forma de manter uma reserva de efetivos pronta para intervir caso necessário, sem que se tenha de deslocar tropas da Metrópole. Pretendo me inscrever, mas os acontecimentos viriam apressar meu processo de entrosamento com o mundo militar africano.



A REVOLUÇÃO
25 de abril de 1974!
Revolução em Portugal; os famigerados "cravos vermelhos". O resultado da covardia de jovens oficiais portugueses, ingénuos úteis nas mãos dos Vermelhos. Capitães que seriam chamados muito apropriadamente pelo poeta Joaquim Paço d'Arcos de ufanos da derrota, herdeiros anões de Aljubarrota, bastardos duma raça de heróis...
Marcelo Caetano e Américo Thomaz são depostos; os agentes da DGS, presos. Começa dissolução do Império Português, vendido a Moscou.
Peço demissão. E. C., um amigo que havia chegado recentemente do Brasil, substitui-me na Escola.
Surgem os boatos de tentativa de independência unilateral de Moçambique e que seria apoiada pelos rhodesianos, temerosos de perderem seu apoio e se verem cercados por países de maioria negra marxista. A tropa portuguesa não oferece credibilidade, não se pode confiar nos oficiais. Apenas os Comandos esboçam uma reação contra a entrega da colónia ao inimigo, aos terroristas da Frelimo, como pretendem os golpistas que apresentam estes últimos como heróis nacionalistas, ferindo o brio das tropas especiais.
Voo para a capital, Lourenço Marques, à procura de informações concretas; todos estão confusos. No Consulado Rhodesiano consigo um visto de entrada e após dois dias e uma noite num trem estou em Salisbury.
Lá a reação é aberta, os grupos se reúnem nas pensões portuguesas e duas facções distintas começam sua organização visando a tomada do poder, a exemplo do que fizeram os colonos rhodesianos, anos atrás. Mas mesmo à primeira vista o que se pode deduzir é que não sairão do planejamento: existem mais "generais que soldados", estão longe de conseguir a disciplina necessária para obter o sucesso.

MILÍCIAS AFRICANAS NO NIASSA
Em Moçambique não há trégua, a guerra continua e estou livre para a luta. Volto para o Niassa, ao norte da colónia e contato os setores que me interessam. Vejo-me finalmente de arma na mão, com mais 39 milícias africanos na defesa de Cóbue, um aldeamento às margens do Lago Niassa. Para lá não há estradas, a pista de pouso foi destruída pelas águas e o único meio de transporte são os barcos da Marinha Portuguesa.
É zona 100%, como chamam os lugares onde os terroristas pululam, sou o único branco num raio de centenas de quilómetros.
Como o consegui? Simplesmente aproveitando a balbúrdia que reinava em todos os setores administrativos e militares, depois da revolução.
O lugar era protegido a ferro e fogo por uma companhia de Fuzileiros Especiais, mas que seria retirada, pois estavam, ao contrário dos guerrilheiros, deixando de lutar em todas as frentes, abandonando a população indefesa à mercê dos assassinos da Frelimo, desejosos de vingança e poder. O quartel, antiga missão de propriedade da Consolata, ficaria vazio. Ofereci-me para ocupá-lo para evitar que fosse depredado pêlos nativos, até que voltasse a ser usado como Missão novamente.
Aceitaram e para lá rumei numa lancha de desembarque da marinha, em seis horas de balanço nas vagas do lago.
Os fuzileiros preparavam para deixar o quartel. Armados até os dentes, com as fitas de munição de suas MG enroladas no peito e morteiros 60 em posição, continuavam atentos nas montanhas, temendo um ataque de última hora.
A bandeira portuguesa foi arriada pela derradeira vez naquelas paragens, jogando por terra o duro trabalho de gerações inteiras de jovens que ali deram seu sangue e suor em nome da Pátria.
O oficial cortou com sua faca de combate as cordas do mastro para que a bandeira da Frelimo não subisse tão cedo. De um lado a Companhia toda formada, do outro, eu, sozinho e no momento desarmado, assistindo a cerimónia. Para os militares eu só poderia ser algum terrorista, pois nunca um branco ficaria só num lugar que fora preciso uma companhia inteira de aguerridos fuzileiros para defendê-lo.
Meu único meio de comunicação com Metangula, a base naval, era um rádio. Qualquer auxílio que necessitasse demoraria no mínimo três horas, com as lanchas rápidas intervindo. Na aldeia, situada abaixo do quartel, ficariam 39 milícias africanos, armados com fuzil Mauser modelo 1908...
Como numa retirada em combate, os fuzileiros afastaram-se em lanchas de desembarque, com a vigilância dos lança-foguetes de uma patrulheira colocada ao largo.
Quando os últimos preparavam para embarcar, uma cápsula de sinalização "very-ligth" ergueu-se aos céus, no extremo da antiga pista de pouso. Os guerrilheiros davam sinal de sua presença...
Entardecia e quando o pequeno comboio sumiu à distância no lago voltei para o quartel; 36 salas vazias me esperavam num prédio cercado de trincheiras e arame farpado.
Abri minha mala retirando dela duas granadas defensivas, que comprara dias antes de um soldado em Vila Cabral, capital do Niassa. Com um arame, amarrei uma delas a uma das folhas da porta do quarto, enquanto que outro arame ia de sua cavilha de segurança até um furo no meio da folha seguinte, apenas introduzido, sem prender. Saí, fechei-as e travei o arame por fora. Se alguém tentasse mexer no quarto, forçando as portas, a granada explodiria. Obviamente eu não estaria dentro.
Com a outra granada debaixo da camisa percorri a escura trilha de uns 500 metros até a casa do Administrador da aldeia, situada no topo de uma elevação. O administrador (uma espécie de prefeito) também era africano, um ex-membro dos Grupos Especiais pára-quedistas, portando de confiança. Era o responsável direto pelos milícias e eu faria minhas refeições em sua casa.
Opinava ele que eu, como único branco em uma zona de 100% já estava cheirando a cadáver, pois era alvo em potencial para os terroristas. Cedeu-me uma FBP 9mm, cópia portuguesa da Smeisser alemã (sub metralhadora), seis carregadores de munição e mais duas granadas. Acertamos que eu poderia inspecionar e trocar ideias para a melhora da defesa do dispositivo montado pêlos milícias, que encontrara repleto de falhas. Com isso aos poucos, iria assumindo o controle total da situação, para alívio do Administrador, que nada queria com estes tipos de responsabilidade.
Naquela primeira noite voltei ao quartel, mas não me dirigi ao quarto. Subi por uma escada de madeira a uma espécie de sótão, situado no centro do edifício e puxei-a para cima; a janela dominava uma grande área e o sótão tinha ligação com o resto do teto. Estava limpo, com as paredes cobertas de fotos de mulheres nuas.
Nada mal, agradeci mentalmente ao fuzileiro que tivera a ideia de transformar o cubículo em quarto. Preparado, adormeci tranquilo com a arma ao alcance da mão, na minha primeira noite em zona de combate real; desta vez não se tratava de manobras, como fazíamos no Brasil...
Começava minha vida de combatente substituindo a uma Companhia inteira... Como princípio estava bem, pensei, queria lutar, exercer a profissão e agora estava com guerrilheiros inimigos até na sopa.
A noite passou e a Frelimo não deu o ar de sua graça.
Considerava crucial a primeira noite de aldeamento sem os fuzileiros, mas a princípio os terroristas não pretendiam atacar de imediato.
Logo pela manhã, troquei minha roupa civil pelo traje verde das milícias, embora oficialmente continuasse uma espécie de missionário e percorri o aldeamento em companhia do administrador.
O "dispositivo de defesa" simplesmente não existia. Os milícias deixavam suas armas nas palhoças e iam pescar. Reuni o pessoal e indiquei quatro pontos estratégicos, onde mandei que cavassem trincheiras. Organizei um sistema de rodízio, já que não podia impedi-los de procurar alimentos e passei a controlar pessoalmente o estoque de munição e granadas ofensivas, que os nativos desviavam respectivamente para caçar e pescar.
À beira do lago, lanço algumas rajadas para me acostumar com a metralhadora portuguesa, que por sinal falha bastante quando da ejeção da cápsula. Depois, sozinho, começo minhas patrulhas diárias, explorando as redondezas. Havia sinais de presença de inimigo nas proximidades, mas os dias se passavam, e nada...
...Num achado interessante deparei-me um dia, mato cerrado adentro, com dois túmulos cobertos de tijolos e com cruz, nitidamente de europeus. Gravados, dois nomes de mulher, Eleonora Mirian Lizzi e Charlotte T. Elza e a data de 29 de agosto de 36 (36-Aug-29) em inglês. Missionárias? Aventureiras? Que mistério continha aqueles túmulos escondidos? Na década de trinta, mesmo para um homem, a região do Niassa se constituía num território perigoso e desconhecido. Nenhum nativo soube ou quis me dizer algo a respeito...
O barco que semanalmente vinha de Metangula, trouxe um reforço, um guarda PSP (Polícia de Segurança Pública), também africano, armado de G-3 (fuzil semi-automático), o que melhorava nosso pequeno arsenal. O guarda Abdul tornou-se um auxiliar precioso, tinha consciência militar, ao contrário dos ociosos milícias.
Um nativo cujo desaparecimento estávamos investigando reapareceu na aldeia com notícias interessantes. Fora capturado e posteriormente libertado pelos guerrilheiros, que lhe interrogaram sobre a saída dos fuzileiros, na qual não acreditavam, pensando numa cilada. O nativo confirmou, mas disse-lhes que haviam ficado "trinta brancos, bem armados", mentira que provavelmente estava provocando o adiamento do ataque ao aldeamento, pois pretendiam saquear a cantina, como era costume fazerem nas vilas desprotegidas.
Pelo rádio, informavam-nos sobre ataques a lugares próximos abandonados pelos portugueses. Em Cóbue, sem novidades...


O BATISMO DE FOGO
Era o dia 2 de Agosto de 1974 e jantava com o guarda Abdul na casa do Administrador, que havia viajado para Vila Cabral há uma semana, no barco da Marinha. No momento eu era o dono do lugar. Cansado de carregar a metralhadora inutilmente, deixara-a no quartel e, banho tomado, vestia um confortável traje civil.
São 19:40h. Quando vou cortar um pedaço do apetitoso peixe grelhado colocado à minha frente, uma longa e estridente rajada de Kalashinikov AK-47 rasga o silêncio da noite, tomando-me totalmente de surpresa. Voam vidros partidos e o som vem de muito perto da casa!
Em frações de segundos estou rastejando para o quarto, Abdul para a cozinha e o criado correndo, deixando cair a bandeja metálica com estardalhaço. Os tiros espocam pelo lado do aldeamento.
Todos os palavrões possíveis vêm à minha cabeça! Desarmado, com roupa clara, pego como um principiante que pensava não ser!
Agachado, protegido pelo muro de um metro e meio de altura que prudentemente cerca a casa, corro para o abrigo contra morteiros. Abdul chega e salva a situação, pois vem com sua G-3.
Responde fogo, dando-me cobertura enquanto corro para o quarto do quintal, onde apanho uma pistola Walter 9mm e as granadas que posso, retornando ao abrigo.
Da parede ao nosso lado saltam lascas de reboco dos projéteis das AK-47 e PPSH russas. As informações que temos é que os ataques têm sido feitos com um canhão sem recuo de 76mm. Se o usarem, estaremos perdidos.
Estamos em posição mais alta que o inimigo, mas este avança para nós, confundindo-se no meio do alto capinzal. São dois grupos de oito ou nove homens cada e se autoprotegem. Economizo munição tentando ver os clarões das armas, para depois disparar naquela direção.
Abdul está em dificuldades com a G-3; estarrecido, verifica um pouco tarde demais que os carregadores que trouxera eram de FN, um fuzil Belga, e não se encaixavam em sua arma! Começa a esvaziá-los para carregar o único que serve e com isso paramos praticamente o fogo. O inimigo está perto e atira a esmo.
Passa-se uma ideia pela cabeça, perdidos por um, perdidos por mil: levanto-me, subo ao topo do abrigo completamente desprotegido, destacando com minha roupa clara do céu negro e grito:
- Frelimo! Frelimo!
Por um momento os terroristas param de atirar e escutam. Penso em passar-lhes a conversa que a guerra acabou, a revolução, etc, etc, mas a pausa dura apenas alguns segundos. Uma saraivada de balas passa por mim, retalhando um mamoeiro ao lado!
Com um sonoro "f. da p." gritando com toda a vontade, encerro minha carreira de parlamentar, dando graças, porém, a já famosa falta de pontaria dos adversários.
Salto para o solo e faço o que me resta fazer: muito barulho, blefar com nosso poder de fogo.
Atiro três granadas em rápida sucessão para a baixada onde já se escutam ruídos de homens e descarrego um pente da Walter; Abdul, no mesmo momento metralha com a G-3.0 efeito é bom e as granadas parecem que atingiram alguém.
Os guerrilheiros que não esperavam encontrar reação e estavam próximos, recuam; os que no aldeamento tentavam saquear a cantina não o conseguem devido a uma inesperada defesa de dois milícias e seguindo sua tática de sempre batem em retirada, pois ficaram tempo demasiado atacando e reforços podem chegar. Mal sabem que isso é quase impossível!
Com alguma comida roubada e seis mulheres raptadas, a gloriosa Frelimo desaparece.
Recarregamos nossas armas e após uns terríveis dez minutos de silêncio total salto pelo muro, seguido de Abdul e desço a aldeia, empunhando a Walter no meio da escuridão. É loucura, mas prefiro isso ao suspense de aguardar entrincheirado no alto da elevação onde estava.
Mas o inimigo realmente fugira. Com exceção dos dois que defenderam a cantina e suas famílias, os restantes milícias haviam abandonado as armas e saltado para o lago entre os caniços ou se metido no meio do mato!
E assim recebi meu batismo de fogo, no topo de uma colina africana e juntamente com Abdul, rechaçara um ataque de guerrilheiros que possuíam superioridade em efetivos e material, o que não fora suficiente para lhes suplantar a covardia.
Abaixo da casa encontramos carregadores de AK-47 e um saco de comida, provavelmente abandonados por um ferido. Não consegui contato com Metangula através do rádio e resolvemos dormir, mas vestidos e prontos a nos defendermos de uma segunda investida.
Aos primeiros clarões da manhã mandei que buscassem as baterias do gerador e as troquei pelas do rádio, que estavam fracas.
- 668, 668, 668, 666 chamando! 668 era Metangula e 666 éramos nós.
-Prossiga, 666!
- 666 atacado, sem baixas, seis nativos raptados, vamos sair empatailha.
Repeti a mensagem, esperei o entendido.
- 666 solicita três carregadores para G-3, munição e se possível uma MG-42 para reforço, câmbio!
Com a metralhadora MG, entrincheirado em cima do morro, poderia anular com sucesso as investidas do inimigo, mesmo em superioridade de número. Seus ataques não eram contundentes e em caso de resposta rápida e eficaz, retrocediam sempre.
- OK, Abdul, vamos ver o que poderemos fazer;
- Não é Abdul, é Pedro que fala, câmbio;
- ?!
- O "missionário"? Confirme!
-Positivo!
Em Metangula acharam estranho um missionário pedindo uma MG e mais confusos ainda ficaram quando ao meio do dia chegou uma lancha da marinha com um grupo de combate e me encontraram fardado e armado!
Acabara de chegar da patrulha que havia seguido a pista dos guerrilheiros, pista, aliás, facílima de encontrar dado o sem número de objetos que deixavam cair, em sua pressa de se distanciar para não serem interceptados. Iam em direção a N'go, uma aldeia distante duas horas de barco de Cóbue.
Avisei a marinha e também 666A (N'go) via rádio. Eles não possuíam armas automáticas nem granadas e precisavam se precaver.
Recebemos o pedido, menos a MG e a lancha da marinha retornou. Saberia depois que o Comandante da Base Naval interrogou o padre da Consolata sobre minha pessoa. Na confusão daqueles tempos pós-revolução ninguém podia confiar em ninguém, mas muito menos se impor. Quem seria eu? De que lado realmente estava? Também não os daria muito tempo para saber...
No dia 4 de agosto, ao anoitecer, ouvimos o som seco do canhão sem recuo e um metralhar distante. Era N'go sendo atacado como previra e malgrado meu aviso foram colhidos despreparados. Desta feita, usando o canhão sem recuo destruíram o posto policial, matando um guarda e ferindo outros. A população embrenhou-se pelo mato e os poucos milícias fugiram de canoa para Metangula.
N'go ficou deserta.
Pela rádio, uma ordem: eu deveria voltar no mesmo barco que estava levando o Administrador para Cóbue. Embarquei com
granadas, munição e uma Walter.
Em Metangula, a surpresa: eu era tido como agente da Frelimo, apesar do ataque que sofrera. Mas verdade seja dita: incompreensivelmente o mesmo grupo que destruíra N'go, apenas arranhara Cóbue, quando lá estava! E um grupo de oficiais da Marinha queria de mim nada menos que um contato com os guerrilheiros, para o cessar fogo! O mesmo pedido me foi feito, através do padre local, pelo Bispo anglicano, que chegara da capital Lourenço Marques e queria conversar com os "legítimos representantes do povo"...
Ora, todos sabiam que os contatos nas aldeias eram sempre os professores nativos, que negavam veementemente tal fato.
Mas para mim, estrangeiro, "missionário" e com os boatos que lançaram à minha volta, não tive problemas. Cheguei a uma aldeia próxima de Metangula e me dirigi diretamente ao professor, que nunca vira antes e falei-lhe sobre o encontro com a Frelimo, como se seu envolvimento com terroristas fosse para mim um fato conhecido e normal. Achando-se entre colegas, o professor caiu no conto e se abriu. Avisou a um grupo que se encontrava próximo e o primeiro encontro se fez, com o Bispo anglicano. Quanto ao encontro com a Marinha não sei se veio a se realizar, pois as atenções se voltaram subitamente para algo mais alarmante: a tentativa de independência unilateral de Moçambique!



A REVOLTA DE 7 DE SETEMBRO
Alerta absoluto nos quartéis. A Rádio Clube de Lourenço Marques foi ocupada pelos revoltosos; os emigrantes portugueses da Rhodésia estão cruzando a fronteira, outras rádios são ocupadas.
É o dia 7 de setembro de 1974.
A prisão da capital é invadida pelo povo, centenas de agentes da DGS que lá se encontram são libertados.
Daniel Roxo, líder das milícias do Niassa, lança um apelo para que elas colaborem com a revolta. Lanço mão de um Land Rover da Missão e reunindo os milícias com rapidez, lhes explico a situação e peço que se metam no mato com suas armas caso a Marinha tente desarmá-los.
Nesta confusão não sou incomodado e instalado na casa do padre sigo os acontecimentos pelo rádio. Dois dias se passam e os rebeldes se consolidam. Muitos militares aderem, toda população está nas aias, mas pacificamente. Até agora nenhum tiro foi dado, mulheres e crianças ocupam as rádios da colónia. .Então no dia l0 a senha ainda há estrelas no céu foi substituída por galo, galo, galo, amanheceu! e veio a reviravolta. Tropas do Exército mandadas por comunistas esmagam violentamente a caseira revolução. Moçambique já estava vendido e era preciso entregar a mercadoria em dia.
Blindados e tratores empurram o povo para longe dos edifícios ocupados. Em conluio com a Frelimo, os nativos dos arredores dirigidos por agitadores profissionais invadem as ruas, queimando, saqueando, violentando as mulheres brancas de qualquer idade, sob a complacência das Forças Armadas Portuguesas.
Os comandos são proibidos de saírem às ruas, o governo pensa em desarmá-los.
Tomo um táxi aéreo e saio de Metangula, indo para Vila Cabral, onde tenho que esperar uma semana pelo reinicio dos voos para o sul. Neste curto espaço de tempo sou contatado por um grupo de "progressistas", que sabedores da minha intermediação no encontro Frelimo-Bispo, pedem minha colaboração. Como sempre, não me faço de rogado e infiltrado no esquema, posso sabotá-lo melhor.
Para o encontro não tenho dificuldades: o padre superior da Consolata e mais outro padre italiano já me haviam falado de suas relações com os turras (nome dado aos terroristas) e através deles três guerrilheiros chegam em Vila Cabral, transportados por mim, fazendo uma "palestra" à população local, demonstrando a todos o seu despreparo e ignorância! E para o cumprimento da minha "nobre missão em prol da independência", tinha livre acesso a qualquer hora ao gabinete do governador do distrito, além de um avião Auster caso necessário!
Neste ínterim em Nampula o brasileiro E. C., na OPVDC, participara ativamente na revolta e agora com uma viatura, ajudava os comandos do Exército Português a desertarem rumo a Rhodésia. Fugirá por sua vez para a África do Sul.
A opressão é grande em todo Moçambique. O Governo dá praticamente a colónia de presente à Frelimo, que nem efetivos tem em número suficiente para controlar apenas a capital. Tropas da Tanzânia, fantasiadas de "guerrilheiros nacionalistas" começam a entrar no território.
Chego em Lourenço Marques a tempo de participar da revolta dos comandos. Inconformados com que viam, com a covardia das tropas regulares assistindo mulheres brancas sendo violentadas e mortas, os grupos especiais se sublevam e nas ruas da capital atacam os homens da Frelimo que se pavoneiam como vencedores da guerra. Estes se defendem até com lança-foguetes RPG-2, aumentando o número de mortos civis. Batalha nas ruas.
Os nativos invadem novamente a cidade. Em um carro particular enfrentamos nas esquinas, com granadas e armas ligeiras, a corja de assassinos que a tudo saqueia e destrói.
De Portugal vem a ordem para embarcar os comandos; muitos fogem para a Rhodésia, engrossando as fileiras dos que pretendem retornar de armas na mão.
A violência da Frelimo e dos marginais, agora livres para saciar seus instintos, aumenta contra os brancos. Escondo-me numa paróquia - sempre os padres me salvando! -e aguardo os ânimos se acalmarem para fugir daquela fogueira.
Os africanos fazem controles nas ruas em grandes grupos, barrando e roubando os carros que se aventuram a passar. Muitos são incendiados e caso reajam os ocupantes são imediatamente massacrados. As brancas, em hipótese alguma podem sair às ruas.
Foi restabelecido o tráfego ferroviário e resolvo partir. Levo minha arma na bolsa tiracolo, juntamente com quatro granadas de mão.
O padre me dá uma carona em seu VW e mal dobramos a primeira esquina deparamos com uma turba armada, que revista os carros e as malas! Na calçada ainda arde um Ford Escort, tombado por eles...
Somos barrados e cercados pela multidão negra. Minha bolsa está à vista no banco de trás, mas nunca conseguiria sacar a arma ou as granadas a tempo. E irão revistá-la! Sinto-me empalidecer intensamente, acabou-se, me vejo massacrado até a morte. Se puder agarrar minha arma venderei caro minha pele. Só sinto pelo padre, estou desolado, o infeliz não sabe de nada e pagará igualmente. Decido que tentarei reagir quando forem apanhar minha valise, pois estarei perdido de qualquer maneira.
O padre abre o porta-luvas para mostrar que não há nada e o negro, com a cabeça metida dentro do carro olha para a tiracolo no banco traseiro. Deixo de respirar. Subitamente pergunta:
- Não é o senhor padre?
- Sou sim, meu filho.
- Ah, bom, passa, passa!
E a massa humana abre caminho para o VW, que arranca devagar, levando como passageiro um aprendiz de guerreiro semimorto de tensão...
Não mais abri a boca, afundado no assento, até me despedir daquele santo padre!
Com o bilhete comprado não mais me arriscaria inutilmente, agora que faltava pouco para abandonar um inferno em que muitos brancos haviam deixando o pêlo. No banheiro desfiz-me do pequeno arsenal no cesto de lixo e tranquilo fui esperar a hora da partida.
Ainda seria revistado duas vezes durante a viagem por guerrilheiros armados, a quem tive que dar explicações sobre o funcionamento do meu pequeno barbeador a pilhas, para eles uma granada. Um inclusive saltou comicamente para trás, assumindo posição de defesa, ao ouvir o zumbido do aparelho!... Foi com alívio que os vi saltar do trem e 100 metros à frente cruzamos por uma placa onde estava escrito: Vila Salazar-Rhodésia. Adeus Moçambique, ou melhor, até breve, voltarei! Fui ao vagão bar e deixei que as "Lions" vazias se enfileirassem em minha frente...


III
RHODÉSIA - ZAIRE
Quando a locomotiva freou suavemente na agradável estação de Salisbury, já sabia para onde ir: 11, Baker Avenue. A pensão era só de portugueses, pequena e bem localizada. Já lá estivera da outra vez e me tornara amigo do proprietário, que fazia questão de pertencer à chamada "reação"!
Cumprimenta-me efusivamente, relata suas aventuras (havia passado a fronteira quando da revolta de 7 de setembro) e me informa que a desforra está em marcha.
Telefona de imediato para um dos "chefes", segundo ele:
- Tenho um "gajo" importante para vocês, foi legionário, é piloto e esteve metido no 7 de setembro também. Está aqui na minha frente. Escuta algo que não lhe agrada, responde rapidamente:
- Não, não lhe dei seu nome, fique tranquilo, OK, OK, ele ficará aqui.
Desliga e diz que o contato virá à pensão me entrevistar, tratando de arrumar um quarto em seguida, enquanto me deixa a pardas novidades.
Nos arredores de Salisbury estão os "Flechas" da DGS, que juntamente com seu chefe, Major Alves Cardoso, fugiram de Moçambique com todo equipamento possível. São recebidos pelo Rhodesian Army, com o qual passam a trabalhar.
Constituem uma excelente "task-force" para uma provável contra revolução e o que é mais importante, continuam unidos.
Espalhados pelas pensões e guest-houses, muitos comandos desertores, entre eles alguns que foram auxiliados pelo meu amigo E.C. durante a fuga. Dão-me notícias suas, no momento está em Johanesburg com uns membros do Wild Goose Club; está em boas mãos.
Os "planos" de contra revolução se fazem nos bares, em calorosas "discussões regadas a Lion e Castle, as cervejas locais...
Travo conhecimento com o Capitão Valdemar, dos comandos e o Alferes Esteves, dos Pisteiros de Combate e nos tornamos amigos.
Sou rapidamente entrevistado pelo emissário do grupo em formação, que diz contar com apoio da África do Sul e Rhodésia e passo a ter minha estadia paga por eles. A única ordem é esperar.
Passo a conhecer melhor o esquema quando sou requisitado para o grupo de Segurança nos escritórios da Organização. Trata-se de uma série de salas num dos andares de um edifício na própria Baker Avenue, a poucos metros do Centro de Recrutamento do Exército. O chefe, ou melhor, o que apareceria como chefe é o dissidente da Frelimo, Miguel Murrupa, que ocupara um alto posto quando ainda na Tanzânia. É pró-ocidental e pretende criar um governo de harmonia entre brancos e negros.
Mas está completamente desorganizado, entregue às mãos oportunistas ou inexperientes, como seu lugar-tenente autodenominado "Capitão Gravata", um sonhador e despreparado contra-revolucionário, a quem entregou a organização militar.
Os mapas cobrem as paredes, com setas, círculos, quadrados, triângulos, nas mais variadas cores e tamanhos, tudo extremamente decorativo e "igualzinho aos filmes de guerra"!
Este ridículo é trágico, pois para aí são desviados os esforços, verbas e pessoal operacional que poderiam ser úteis se bem dirigidos. Desta maneira vão sendo diluídas as forças contra revolucionárias, num momento que o governo de transição de Moçambique era tão frágil que cairia até com um simples empurrão.
Chega à Rhodésia Jorge Jardim, um político e homem de negócios, bem conhecido em Moçambique pelo seu dinamismo e a quem se imputava a cri ação de um grupo mercenário para reagir contra a Frelimo. Hospeda-se no Salisbury Motel, a 13 quilómetros da Capital com sua numerosa família e o Major Abecassis, dito seu ajudante de ordens.
Sou designado para observar seus movimentos e lá me instalo como hóspede. Nos primeiros dias nada me escapa. O movimento dos veículos, as pessoas que os visitam e os roteiros que percorrem.
Mas nada dessas informações é usado, pois se telefono para que siga o carro tal, chapa tal, que saíra com o político às tantas horas, a confusão está feita. Não conseguiam nem articular um simples controle dos seus passos na cidade.
Neste ínterim, E. C. chega à Rhodésia, vindo de Johanesburg e se diverte com o que lhe conto. Também é recrutado como "especialista em tanques" e tem sua estadia paga!
O "sinistro" Capitão Gravata, futuro Comandante em Chefe do exército invasor está escrevendo à máquina; E. C. está a seu lado verificando uma lista de recrutas. Batem a porta.
O capitão não para de trabalhar e ordena em voz baixa:
- Se eu parar de escrever, você salta para o lado!
E.C., sem muita vontade para farsas, explode em uma gargalhada, constrangendo o "herói" e prejudicando a carreira, como me confidenciou mais tarde, divertido, o brasileiro que já com sua dose de aventura em Moçambique, decidiu retornar à Pátria.
Por minha vez não perco mais tempo também e prefiro observar as simpáticas e charmosas filhas do político, ao invés de brincar de espião...
Passo a ter discussões homéricas nos escritórios, tentando induzi-los a realmente produzirem algo, mas nada surte efeito.
Vivem de sonhos...


NOS COMANDOS
Os Flechas começam a se aproximar e um dia avisam que o "patrão" (Alves Cardoso) quer falar comigo.
Nos arborizados jardins atrás do Monomatapa Hotel será o encontro. Enquanto converso com o segundo em comando, o Major entrevista outro indivíduo contatado. Despedem-se e saem em sentido contrário, o Flecha manda-me segui-lo.
Encontro-o mais à frente num banco e me apresento.
Pede minha opinião sobre a Organização em que eu estava (que muitos diziam ser ele o verdadeiro chefe) e não tenho pejo de criticá-la como inoperante e ridícula; é sua opinião também e categoricamente avisa que nada haverá em Moçambique. São apenas boatos e bravatas, os recursos foram desperdiçados irresponsavelmente.
Seu grupo, o único realmente operacional fará a contra-revolução, não diz onde nem quando e eu lhe interesso como piloto.
Sem qualquer dúvida acredito no homem que é o militar mais condecorado em combate do Exército Português; não se trata de outro nebuloso' 'Capitão Gravata'' e ao contrário dos outros grupos, tem realmente o apoio da Rhodésia, através do Special Branch (Serviço Secreto).
Mudo para um apartamento da Gail Flats, na Jameson, a avenida principal e ali tenho a função de captar e anotar toda a transmissão referente aos combates entre os grupos rivais angolanos. Nada é certo, mas começa a ficar claro que nosso objetivo será Angola.
Aceleram-se as entrevistas e realmente uma seleção rigorosa é feita. Somos avisados que iremos contribuir para uma independência, não como mercenários - nada receberemos - mas sim como futuros membros das forças armadas em formação.
Um visto de entrada turística me é dado para preencher. País: Zaire, ex-Congo Belga; endereço: Delegação da FNLA, Frente Nacional de Libertação de Angola, de Holden Roberto, o líder pró-ocidental.
Alves Cardoso fora contratado pela FNLA, com o intuito de treinar e enquadrar os novos comandos do ELNA, o exército de Holden, que se preparava para uma batalha pelo poder contra seu rival Agostinho Neto, marxista e seu movimento fantoche dos russos, o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola).
Este último recebia ajuda dos cubanos e da Brigada Internacional, constituída de alemães orientais, checos, etc. e Holden tinha que se precaver ou seria esmagado.
Em julho de 1975, embarquei num Boeing 737 da Rhodesian Airways com destino a Johanesburg, juntamente com Simões, um Flecha de quase dois metros de altura.
Lá, no próprio aeroporto Jan Smuts, orientados pelas instruções recebidas, encontramo-nos com o Major Alves Cardoso e juntos partimos em um voo da Sabena para Bruxelas que escalará Kinshasa, ex-Leopoldville, a capital zairense.

NO ANTIGO CONGO BELGA
O DC-10 belga aterrou no aeroporto N'Djli; no estacionamento, dois gigantescos aviões cargueiros C-191 do Military Air Transport, da Força Aérea dos Estados Unidos. Placas nos prédios avisavam da proibição de fotos.
Ainda na escada o Major é recebido por um Ministro da FNLA e nos dirigimos para a sala VIP, onde somos apresentados a outros membros da Frente de Libertação. Éramos os precursores do grupo, vínhamos preparar sua chegada e os angolanos não escondiam o quanto esperavam de nós.
Em minutos nossa bagagem é liberada sem passar pêlos demorados trâmites legais e levam-nos para o Intercontinental, o melhor hotel do Zaire, onde, confundidos como guarda-costas do major fomos alojados no apartamento ao lado do seu, após o ocupante anterior ser delicadamente transferido para outro!
Da janela vejo o rio Congo, preguiçoso e inteiramente coberto de plantas aquáticas, a contornar o hotel. Na outra margem, o para nós incómodo Congo-Brazaville, que apoia o MPLA.
Ocupamos o tempo de espera dividindo-o entre a piscina e os dois bares do Inter. Cinco dias passados e chega a primeira leva, sob o comando do Capitão Valdemar, assessorado pelo Alferes Esteves.
Haviam sido secretamente transportados de Salisbury para a Base Aérea de Gwelo, no interior da Rhodésia e ali embarcaram num velho mas sempre eficiente C-47 pilotado por belgas. Atravessaram a proibida Zâmbia e escalaram em Lumumbashi, ex-Elizabethville, onde dormiram, seguindo finalmente para o aeroporto de N'Djli onde os esperávamos.
Maldizendo a sacolejante viagem rasante através das montanhas, subiram apressados para as Kombis (made in Brazil) da FNLA e foram levados para o Hotel Matonguê, nos arredores.
Entrei no C-47 com alguns sacos vazios e transportei para
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IV
ANGOLA
A primeira localidade, Luso, estava praticamente abandonada. Em um prédio sujo e com os vidros quebrados, onde ondulava a bandeira amarela e branca da FNLA, meia dúzia de guerrilheiros fizeram o controle de nossas viaturas sem opor obstáculos, graças ao passe assinado pelo próprio Holden.
Nas poeirentas estradas antes atulhadas de transportes militares portugueses, nada se via. Não cruzamos com nenhum veículo até chegarmos em São Salvador, uma próspera vila nos tempos anteriores à revolução de 25 de Abril.
Na pista de pouso ainda estacionavam dois aviões particulares e pelo menos uma centena de brancos ainda ali viviam, desprezando o êxodo para a Europa e confiando no futuro. Fomos acolhidos com alegria e ali almoçamos.
Seguimos em frente até chegarmos ao litoral, na agradável vila Ambrizete, que também demonstrava sinais de esvaziamento com o comércio praticamente paralisado e poucos brancos. Dali, uma estrada asfaltada corria até Ambriz, nosso destino.
Já era noite feita quando penetramos na cidade. Ali o movimento aumentava, notava-se grande atividade de militares, inclusive grupos femininos, sempre armados com a pequena Uzi, a eficiente pistola-metralhadora israelense.
Ambriz, à beira mar, assentava-se sobre uma ponta escarpada, que ia progressivamente suavizando até se transformar em praia. Possuía algumas ruas pavimentadas e a avenida principal terminava em uma praça, defronte da qual destacava-se a silhueta baixa e escura da fortaleza, uma centenária construção militar portuguesa, agora transformada no principal quartel do Exército de Libertação Nacional.
As Kombis passaram pelo portão do forte e estacionaram no centro do pátio. Saltamos para fora, esticando o corpo cansado da longa e incómoda viagem.
Os soldados negros, de longe, nos miravam com curiosidade.
Dá-nos as boas vindas Hendrik Vai Neto, Ministro da FNLA, talvez o mais influente de todos, pois realmente trabalha na linha de frente, longe das mordomias de Kinshasa e Holden lhe é grato por isso.
Explica-nos as pobres condições de vida do local, a falta de alimentos e conforto, desculpando-se pelo mínimo que nos pode oferecer. Um pequeno lanche foi preparado numa pensão, a única que ainda funciona e de lá mesmo somos distribuídos pêlos diversos alojamentos na vila, pois no momento não é possível ficarmos todos reunidos.
Isto não me agrada, pois divididos e espalhados nos tornamos fracos num local onde sabemos que nem todos pensam como o presidente Holden, muitos são contra a presença de brancos no ELNA.
Alguns ficam na própria pensão, outros em casas particulares cujos donos fugiram para a Europa e eu fico só, alojado no hotel dos oficiais, construção de dois andares em frente à pensão.
O quarto é razoável, o comandante que me instala consegue um mosquiteiro e procuro tomar um banho. Não há água corrente e o pessoal lava-se no pátio, com latas que enchem num reservatório... os banheiros estão imundos, ninguém se preocupa com a limpeza.
Recordo-me que afinal estamos em guerra, que mais queria eu! ? Sem banho, resolvo dormir, que o cansaço já se faz presente e amanhã é dia de trabalho, pois ajudar a construir uma nação é serviço pesado e não se pode perder tempo!
Às seis da manhã estamos tomando café na pensão. Um padeiro ainda trabalha na Vila, embora com limitadíssima produção e num louvável esforço consegue nos oferecer pequenos bolos doces. Produz também diariamente uns 50 pãezinhos, para consumo na residência do Presidente, quando este permanece em Ambriz.
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O PRIMEIRO AVIÃO
Durante o almoço chega o Major Alves Cardoso que me ordena deslocar até Carmona, a mais populosa cidade do norte de Angola, a fim de conseguir um avião no aeroclube local, que usaremos para reconhecimento.
O Major pretende deixar-nos, o mais rapidamente possível, independentes em termos operacionais, para que nossas ações não sejam prejudicadas pela natural incapacidade militar dos africanos, acostumados com guerrilhas e não guerra clássica como se estava desenvolvendo aquela.
Num Land-Rover, parto na manhã seguinte e embora continue em trajes civis, levo comigo agora o inseparável fuzil.
Em Carmona a vida transcorre quase normalmente, não fosse os restaurantes servirem prato único e a cerveja escassear. Sou hospedado num bom hotel, de vários andares, a serviço da FNLA.
Nas ruas ainda se encontram as Patrulhas Integradas, constituídas de soldados portugueses, UNITA e ELNA; a Polícia da Segurança Pública ainda controla o tráfego, sem muito interesse. Os carros, repletos de africanos, rodam com gasolina de aviação em sua maioria; foram simplesmente apanhados no aeroporto ou nas ruas, abandonados pelos donos e funcionam com ligação direta.
Ao chegar no aeroporto posso sentir os efeitos da guerra civil; dezenas de famílias brancas se amontoam pelo chão do saguão principal, sem condições de higiene e alimentação. Esperam pêlos aviões da FAP, que fazem uma ponte aérea diária com Luanda, de onde serão repatriados para Lisboa.
É um espetáculo degradante, mas nada posso fazer; cada chegada do avião provoca cenas de quase pânico, dos que temem serem deixados para trás.
No aeroclube, jogados às moscas, além de uma dezena de valiosos pára-quedas esportivos para-commander, papillon e outros, estão dois Cessnas, um Auster e um Cherokee. Este último é particular e dos outros apenas um pequeno 150 não está em pane. Para voos de reconhecimento o Auster seria o ideal, mas na sua falta o Cessninha poderá fazer o serviço satisfatoriamente, pousa e decola curto de qualquer estrada ou terreno!
O piloto do Cherokee se oferece para me instruir no comando do 150, pois eu estava acostumado com um jato, pesado e não com o leve e frágil aparelho. Voamos quase duas horas, até que eu deixasse de entrar alto na pista e passasse a aproveitá-la no início.
Realmente era engraçado pilotar algo tão delicado em guerra, quando na paz do Brasil pilotava um versátil e rijo T-37, birreator!
Após rebuscar as gavetas da secretaria do Aeroclube e conseguir mapas, régua, transferidor e um computador manual Jeppsen, tudo o que eu necessitava para navegação aérea, considerei-me apto a voltar para Ambriz.
O Major Moura, do Exército Português, que se passara para a FNLA, pede-me uma carona e na manhã seguinte mal clareara o dia empurramos o avião para a bomba de combustível, enchemos os tanques e partimos, sem que ninguém perguntasse por nada!
Na cabeceira da pista olho o tempo; não estava nada bom, mas não quero demorar mais em Carmona, meu trabalho é preciso na frente de combate. Manete ao máximo, acelerei o 150 pela faixa asfaltada, segurando-o rasante até conseguir uma boa velocidade; puxei o manche e numa chandelle (curva em ascensão) ganhei altura, aproando Ambriz a 270 graus.
Mas Carmona era cercada por montes e tive que subir para transpô-los, penetrando sem mais alternativas na densa camada de nuvens que cobria a região.
Somente aí é que procurei pêlos instrumentos de navegação e simplesmente nada encontrei, apenas um indicador de curva, trabalhando com grande retardo. Cercado pela densa massa branca, desorientei-me e quando dei por mim o avião estava saindo da camada, em parafuso!
Os reflexos falaram mais alto e ao notar as montanhas "girando" abaixo, acordei, lancei o manche à frente e chutei o pedal com violência, saindo da perigosa manobra sem maiores consequências que um susto. O leigo major nem deu pela coisa, todo sossegado em sua cadeira.
Já desperto, com mais respeito pelo avião, penetrei cuidadosamente na camada até rompê-la, quase 4000 pés acima. Com o sol a aquecer-nos e o tapete branco aos nossos pés, voei pela bússola magnética fazendo de quando em quando correções do vento, às cegas, instintivamente, pois nenhum ponto tinha para me localizar.
Passado pouco mais de uma hora, tempo previsto para a viagem, as nuvens continuavam sólidas lá em baixo. Resolvi, sempre no palpite, voar mais 15 minutos na rota e depois iniciei a descida.
- Olho aí fora, Major, se vires alguma montanha me avise!
-OK!
No litoral não havia elevação, mas a nossa "navegação por palpite" não me oferecia a certeza de que fora realmente para lá.
Reduzi o motor e comecei a penetrar na camada, suavemente e em cinco longos minutos aterra apareceu, estávamos exatamente em cima da praia, com Ambriz à nossa esquerda, visual!
Mostrei a vila ao meu companheiro, que não acreditou na "eficiência" dos cálculos feitos:
- Não é possível, deve ser Luanda!
- Que nada, é Ambriz - retruquei, seguro de mim... e com uma rasante sobre o quartel, anunciei minha chegada.
Preparava-me para o pouso quando fui cortado e saudado por um bimotor Beech, era Holden Roberto que também regressava de Carmona. No solo, estava o jeep Toyota do nosso grupo esperando, mas antes, perfilei-me à saída do bimotor para receber e cumprimentar o Presidente, como fizeram todos os presentes.
Magro, alto, sempre com óculos escuros, Holden demonstrava no falar e no agir simplicidade e calma. Depois que os conflitos entre os movimentos de libertação se transformaram numa aberta guerra civil, ele permanecia a maior parte do tempo em Ambriz, seguindo de perto as operações militares, muitas vezes debaixo de fogo para desespero de seus auxiliares.


O FIM! MOÇAMBIQUE ATIRADA, PRECIPITADAMENTE,
PARA O "ABISMO"
Ela irá sofrer o seu holocausto. Traída pelo próprio Portugal, por alguns dos seus próprios filhos, será entregue de uma maneira traiçoeira, miserável e cruel.
Minha querida Moçambique!
Eis que chega mesmo o seu Apocalipse. Passavam-se já dez anos de guerra e o terrorismo já pouco aparecia. Ele em nada afectava o seu andamento. O Comando Supremo anunciava que o terrorismo estava acabado.
De Lisboa começaram a chegar notícias de que Moçambique ia ser entregue a um dos movimentos empenhados na sua independência, a Frelimo. Mas a que propósito? Se havia outros movimentos empenhados no mesmo e que para isso também lutavam, porque só à Frelimo iam ser entregues os destinos de Moçambique? As maquinações para esse desfecho repentino tinham sido feitas na sombra e até já vinham de longe.
Um pequeno grupo que se apercebera da traição procura tomar medidas para alertar o povo moçambicano da tragédia eminente e fazer ver isso ao Governo em Portugal. Em Lourenço Marques, toma de assalto o Rádio Clube e emana para toda a Província um alerta que a electriza.
Como nos últimos anos os salários foram sempre aumentando, uma percentagem enorme de negros já possuía os seus rádios. Facilmente contrabandeados da Rodésia e do Malawi, era-lhes facílimo adquirirem-nos.
Calculava-se em perto de meio milhão o número de rádios lá dentro. Ávidos de notícias e propagandas, juntavam-se aos magotes para as ouvir.
A não ser uns poucos traidores, míseros tartufos e oportunistas internos, ninguém, pode dizer-se, ninguém, concordava que os seus destinos fossem entregues a esse partido, que já se mostrava absolutamente comandado pela Rússia. O acordo de Lusaca não estava ainda totalmente assinado. Estava, sim, por alguns que atraiçoaram Moçambique e que a seguir atraiçoariam quase todo o Ultramar Português. Quando se diz quase é porque faltou Macau que, de momento, não interessava à China, e os Arquipélagos da Madeira e dos Açores. Este último, como estava hipotecado aos Estados Unidos da América não seria entregue com tanta facilidade, pois na verdade qualquer destes dois arquipélagos foram na mesma "colonizados”.
Apela-se então angustiosamente para um General que, como chefe supremo da nossa Pátria, esteve nesse posto o tempo suficiente para que a traição se consumasse e, como é óbvio, foi pouco. Ele subscreveu o miserável Acordo de Lusaca. Acordo, rendição, tratado, venda, chamem-lhe o que quiserem: rigorosamente, o documento mais traiçoeiro e covarde de que os portugueses foram vítimas em toda a sua história. Há quem diga que esse movimento foi idiota, que, para ter efeito, devia ter sido feito mais cedo. É muito fácil ser-se estratega de café. Ele falhou. Tinha que falhar. A traição, bem planeada, já vinha de muito atrás, teve uma virtude: alertou o Mundo, sobretudo este Mundo Ocidental cego sobre o futuro a que a África Austral se condenava.
Dava a impressão de que o nosso exército tinha sido miseravelmente derrotado, quando isso não acontecera. Pelo que diz o Dr. Marcelo Caetano no seu livro, "O 25 de Abril e o Ultramar", vê-se que já havia artistas para esta grande farsa.
Logo a seguir, o chefe da Frelimo, Samora Machel, badalava aos quatro ventos, que tinha derrotado o exército português. Meu Deus! Ao que chegaste, querido Portugal! Os teus próprios filhos a apunhalarem-te por todos os lados. Em Lourenço Marques aquele grito de angústia é calado.
Segue-se uma carnificina horrorosa. Milhares e milhares de portugueses, que o foram até esse dia, são selvaticamente chacinados - portugueses de todas as raças. Mas o exército, esse exército ido da Metrópole, já virava costas. Deve-se a uns poucos militares dos comandos, pára-quedistas, grupos especiais, fuzileiros navais que agiram, por conta própria e a muitos civis, a carnificina não ter sido maior. Começava a informação a ser controlada com todos os requintes para intro­duzir novas ideologias e, sobretudo, o ódio contra o português, o branco, que tinha de ser acusado como opressor, escravizador, colonialista e imperialista, para a seguir sofrer toda a casta de humilhações a que o ser humano pode ser sujeito. De que resultou essa carnificina? Hábeis agitadores tinham levado a ideia de que o Rádio Clube estava nas mãos dos "opressores" brancos. Era necessário toma-lo. A Frelimo era agora quem mandava. Abaixo os brancos! Morte aos brancos! Viva a Frelimo!
Mais de duzentos mil negros, habitavam à volta de Lourenço Marques. Então um número incalculável, armado de catanas, facas, ferros e armas começam a convergir de todos os lados e com um objectivo: chegar ao centro da cidade, ao Rádio Clube, matar todo o branco que lhe apareça à frente. E foi a chacina. Eles não chegariam ao centro da cidade, mas o saque, os incêndios, os crimes atingiram proporções terríveis. Foram três dias de horror naquela bela cidade.
No fim, em valas abertas por “bulldozers” seriam enterrados milhares de corpos horrivelmente mutilados, marcando a primeira consequência do Acordo de Lusaca. Nesse confronto, a maioria dos mortos seriam negros. Na caminhada para a cidade matavam os brancos que iam encontrando, incendiavam-lhes as casas, saqueando lojas e armazéns. Completamente embriagados, desvairados e desorganizados ainda chegaram bem dentro, mas foram violentamente sustidos.
Mas os agitadores, porém, continuavam o seu trabalho. Tinham morrido muitos negros: à volta de dois mil. Agora tinha de ser dada uma lição aos brancos, foi o 21 de Outubro! Na baixa da cidade um grupo de comandos responde a tiros aos insultos e vexames que elementos da Frelimo proferiram atingindo mesmo a Tropa. Estava lançado o rastilho! Milhares de negros bloqueiam todas as saídas da cidade; dá-se novamente o assalto a lojas e casas. Começam a chegar carros que levam e trazem quem trabalha na cidade: Começara a matança. Desprevenidos, carros e camionetas de passageiros vêm cair numa ratoeira que jamais previam. Obrigados a parar, não deixam que os passageiros saiam. São virados e incendiados.
Quando, num carro, ao longe, os ocupantes pressentiam a armadilha em que cairiam, paravam e saíam numa tentativa vã de salvação. Eram imediatamente perseguidos por uma multidão em fúria, e massacrados impiedosamente.
Um amigo meu, o velho Tomás, a quem chamavam o Vovô Tomás, dos Serviços Meteorológicos, onde trabalhava, muito bom homem e muito querido por todo o pessoal, foi agarrado quando regressava do aeroporto, do serviço, e depois de bem seguro por meia dúzia de facínoras, outros meteram-lhe um ferro de construção, muito afiado, do ânus à garganta, tendo morrido aos gritos lancinantes, perguntando porque lhe faziam aquilo. "Porquê? Porquê?" No fim, meteram-no no próprio carro onde ficou carbonizado.
Mulheres de qualquer idade e raparigas, mesmo miúdas, eram levadas para o meio do capim e violentadas, algumas até à morte, por feras humanas, que nelas despejavam o ódio selvagem e lúbrico de que estavam possuídas. As poucas que sobreviveram, ficaram patetas para toda a vida.
Morreram assim com uma barbaridade diabólica, portugueses, brancos, cujo número é difícil de calcular. Há famílias que jamais saberão dos seus entes queridos. Ainda àqueles que conseguiram desmantelar a primeira grande investida contra a cidade, outra vez se deve a não ter ido mais longe esta nova carnificina. Quando milhares de negros se preparavam de novo para invadir a cidade, um punhado de portugueses, daqueles que não se fez história, mas provando a raça, reunidos e um tanto organizados à última hora, fez-lhes frente e dispersou-os. Mas os habitantes da cidade são tomados de terror. Os que podem, começam a dirigir-se para o cais, onde, navios, alguns portugueses, mas a maioria estrangeiros, são ocupados por indivíduos desvairados. Estes, largam, superlotados e, muita daquela gente é evacuada para Durban, havendo quem tivesse seguido para a Índia. Ainda eram as consequências imediatas de Lusaca!
Mas antes, bastante antes deste sinistro acordo, uma companhia de infantaria, lá para o Norte, rende-se vergonhosamente a meia dúzia de Frelimos e é obrigada por essa meia dúzia a atravessar o Rio Rovuma, prisioneira, sendo logo a seguir visitada pelo chefe da Frelimo que lhe chama restos miseráveis de um exército imperialista, que ele tinha derrotado. Operadores habilmente manipulados, filmam esta vergonha que a seguir é projectada em todos os cinemas de Moçambique e do Mundo. Pelo Chire, na Zambézia, onde os terroristas nunca tinham conseguido pôr os pés, entrava um grupo chefiado por Bonifácio Gruveta, um dos bons guerrilheiros da Frelimo, uns vinte homens, dão meia dúzia de tiros e instalam-se. Pronto! A Zambézia estava ocupada!
Do nosso exército, havia uma companhia em Milange e outra no Chire.
E quem escreve estas linhas, porque voava nessas regiões, é uma testemunha desgraçada e infeliz do que havia de acontecer.
Por detrás de tudo já havia traição.
Os altos comandos desviam para o Chire uma companhia de Fuzileiros navais que, à primeira vista, irá dar ânimo à que lá estava e reforçá-la. Qual!
Os componentes da companhia que já lá estava, andavam pelo mato, com bandeiras brancas à procura de terroristas para pedirem, não sabia eu bem o quê! Os da companhia de Milange faziam o mesmo. Eu contactava diariamente com todos. Levo, no meu avião, de Quelimane para o Chire, dois Capitães que, a mando dos altos comandos, iam ver o que lá se passava, fazer um inquérito. Lá aterrámos e, chegados ao quartel, mesmo ao lado da pista, fomos recebidos por dois oficiais dos Fuzileiros Navais. Essa companhia, dada a desmoralização, aparecia-me também como um espectro miserável do nosso Exército. Quase duzentos homens, a maioria desfardados, deambulavam por aquele grande quadrado, apáticos a tudo. Para reunir a companhia de infantaria, que era o objectivo, passaram-se horas. Então, simples observador que também já tinha sido soldado, começo a suspeitar que algo de muito grave haveria por detrás de tudo. No meu tempo um traidor era sumariamente fuzilado. Por fim, lá formou a companhia na parada do Quartel. Aquilo, de tropa não tinha nada. A maioria apresentava-se em calções e sem camisa. Era tempo quente. Calçados de sapatilhas desportivas, eram um escárnio ao exército. Mas lá formaram. Um dos tais Capitães que eu levara, falou, mas de que maneira! Que tinha vindo ali para se inteirar do comportamento da companhia, pois havia notícias de que ela se recusava a com­bater. Que estava ali a companhia de Fuzileiros Navais, chegada três dias antes para a reforçar, e que não havia qualquer justificação para a atitude que eles estavam a tomar, o que podia ter gravíssimas consequências. O homem, que me parecia algarvio, falou, falou e eu, colocado meia dúzia de passos atrás, só notava na cara da rapaziada sorrisos irónicos, que ainda mais me baralhavam. Até que ponto chegaria a sinceridade daquele Capitão? O que estava a acontecer ali não passava de uma farsa. O Alferes mais antigo, como aquilo já durava há muito, percebendo que a rapaziada se preparava para destroçar, virar as costas ao Capitão, falou também alto e em bom som: "Olhe, meu Capitão! Aqui a guerra acabou! Não há mais guerra, façam o que quiserem. Acabou!"
Julgava eu que dali resultaria uma reacção enérgica de quem tanto falara, mas fui logo surpreendido pela maneira suave como ele deu ordem para destroçar. Já eram mais que horas para se comer qualquer coisa. E lá fomos, eu, os dois Capitães e os Oficiais da companhia de Infantaria, todos Alferes. Eu notava que naquela fase final não havia Capitães de carreira à frente das companhias. Só milicianos.
Depressa se comeu uma boa caldeirada daquele peixe "pende" do Rio Chire. No fim, sentados, o Capitão puxa da sua pasta de inquérito e, um por um, foi questionando todos os oficiais. Fosse pelo caminho que fosse, no fim ele obtinha sempre uma resposta firme e concreta: “Acabou a guerra! Não fazemos mais guerra!"
Único civil no meio daquela tropa, comecei a sentir-me francamente mal disposto. Resolvi levantar-me e ir lá para o fundo da sala, onde havia um mapa, e disfarçar, fingindo calcular rumos e distâncias, mas a minha cabeça era um turbilhão. Lá para cima, em Milange, andava o Capitão miliciano, claro, e os Oficiais, atrás do Bonifácio Gruveta, a pedir paz. Ali, era o que estava a ver. O que se passaria por detrás de tudo isto? O Capitão levanta-se e diz para os Oficiais: "Vocês fizeram afirmações muito graves, mas uma vez que as fizeram, eu aconselho-vos a que as mantenham sempre, senão será muito pior. Têm de manter o que disseram!" Ainda mais baralhado fiquei. Virou-se então para o outro Capitão, o que nos tinha acompanhado e disse: "O que diz o camarada a isto?" Este levanta-se e eu jamais poderei esquecer a resposta. Porque éramos amigos, esperava que algo de concreto saísse dali e saiu: "Merda! Merda! Merda!" Foi esta a sua resposta!
Foi assim que para mim acabou o exército na minha querida Zambézia, foi assim que acabou o nosso exército ! Era o fim. Regressamos a Quelimane e, dali, os dois Capitães seguiriam para a Beira, a dar contas, e eu, para o Gurué. No dia seguinte passaria por Milange. Vergonha das vergonhas! O Bonifácio Gruveta tinha mandado colocar duas minas anti-carro na estrada Milange-Quelimane, que tem trezentos e oitenta quilómetros e avisaram: "Não passa carro nenhum por essa estrada, nem pela de Milange/Gurué, duzentos quilómetros, nem Milange/Mopeia, outros duzentos quilómetros. Assim ficou toda aquela área isolada durante um mês. Só eu, de avião, nunca deixaria de fazer as ligações, sobretudo com Quelimane, onde estava a sede do Governo do Distrito da Zambézia, A resposta do nosso exército era deambular agora por toda a parte, com bandeiras brancas, pedinchando paz! Começam então a aparecer descaradamente Frelimos. Frelimos? Sim. Grupos de vadios que se diziam Frelimos, que assaltavam as lojas e exigiam roupas, botas, tudo o que fosse de vestir e de comer. A maioria das roupas, nas lojas, eram de caqui. Então, com umas calças ou calções, qualquer daqueles vadios, a maioria criminosos, se dizia Frelimo. Começa a desgraça de todos os comerciantes. Deitavam mão a qualquer carro, fosse de quem fosse. Saqueiam tudo. Em vez de fugirem de uma situação desgraçada que lhes foi criada, sem o saberem, há portugueses que fazem frente, procurando defender o que era seu, seguido de anos e anos de maiores sacrifícios por aquele mato. Esses eram barbaramente abatidos - homens, mulheres e crianças!
Outros fogem, levando o que têm no corpo. Por toda a parte acontece o mesmo. Dada a propaganda incutida através de anos, chegava a altura em que eles impune­mente podiam actuar com o seu ódio selvagem. Os brancos, contra quem tinha sido assanhada toda a propaganda, estavam desgraçados. O Exército, único sustentáculo que ainda podia evitar aquela situação, desaparecera. Nos próprios carros do exército, os vândalos iriam depois continuar toda a série de tropelias. "Sai portu­guês de merda! Sai branco de merda! Vai para a tua terra!" E foi assim que a Zambézia praticamente se despovoou daqueles tantos portugueses que há muitíssimos anos para lá tinham ido trabalhar e não oprimir, nem escravizar, como a propaganda fazia crer.
Uns morreram, outros conseguiram sair, mas sempre ficariam alguns que terão de se sujeitar a viver miseravelmente em tais condições. Por toda a Moçambique acontecia o mesmo.
Mas é fácil avaliar-se a razão da situação tão repentina e trágica criada àquelas centenas de milhar de portugueses. Note-se sempre que, bem antes da assinatura do tal acordo, o exército se portava daquela maneira infame. Era tudo segredo!
O negro apercebeu-se e toma força, sabendo-se senhor absoluto de toda aquela Moçambique, onde, para oito milhões que é o seu número, somente trezentos mil brancos estão a mais - os tais opressores com que é preciso acabar. “Atirem-nos aos tubarões”! Este incitamento até vinha da Metrópole. De frisar que muitos daqueles negros não concordavam com esta situação, mas não tinham outra alternativa, senão eram também eliminados.
A seguir, o Reverendo Uria Simango, chefe de outro partido pró-independência, era traiçoeiramente preso no Malawi, levado para Milange e dali, infelizmente num avião nosso, da minha Companhia, pelo colega Marques, para Metwara, do lado de lá do Rio Rovuma, na Tanzânia, onde algozes da Frelimo o esperavam e lhe deitaram a mão! As últimas notícias que tive da Joana Simeão, outra chefe de movimento pró-independência, que usava óculos com lentes fortíssimas foi que, meia louca, sem óculos, porque lhos arrancaram, só com uma tanga, porque a querem assim meia nua, por ali anda - ou andava - até que a morte a liberte de mais sofrimentos, no campo de concentração da Gorongoza.
Mas foi sobretudo um triste e desgraçado fim para esta geração de portugueses que, por infortúnio, o teve que sofrer.
Juntou-se tudo: a traição, a morte, a humilhação, famílias desfeitas e misérias.
Quando acabará isto?
Entretanto, da Metrópole, os responsáveis por tudo bradavam para o Mundo que se estava a realizar uma descolonização exemplar!
Será que esses homens esperam chegar até ao fim da vida impunes? Será que só o peso que sentem na consciência, se é que a têm, constituirá a pena a pagar?
Este Portugal, de história tão maravilhosa que, por elevados ideais, se expandiu pelo mundo, marcando uma posição ímpar em toda a História Universal, viu-se de repente reduzido às dimensões da sua fundação, mas com uma população imensamente superior. Para onde irão amanhã os portugueses com mais aptidões para o trabalho? Para onde?
Estava eu entre os milhões de portugueses que acreditavam que aquela Moçambique, em espantosa evolução em todos os domínios, se transformaria nas décadas seguintes num dos países mais felizes do Continente Africano. Dispunha de todas as condições para isso, todas as raças que a ocupavam se entendiam e cada vez melhor. Fora, de todos os territórios de África, da África Austral, aquele onde houvera menos racismo e esse pouco, com o tempo, acabaria. O Acordo de Lusaca incendiou o racismo! Logo a seguir a propaganda redobrou: "Acabar com os opressores portugueses, colonialistas, imperialistas!” Para o negro esse opressor era o branco, português. Existiu então um governo de triste memória, que mediou entre a data da assinatura e a entrega.
Roma caíu entre orgias e bacanais!
Moçambique cairia, seria entregue, por um governo que parecia querer mostrar ao Mundo que todos os portugueses, mesmo os que lá estavam radicados, não passavam de uns covardes. Esse Governo desarmou todos os portugueses, que foram brutalmente obrigados a entregar qualquer arma que possuíssem e ai do que fosse apanhado com alguma! Ficaram assim indefesos e sujeitos a tudo.
Depois desceriam os Chefões da Frelimo, desde o Rovuma até ao Maputo, entre festas, discursos e banquetes sempre bem servidos e melhores regados. Eles traziam a Taça de vencedores, oferecida de qualquer maneira, já explicada. Cons­tatei, que de todos, o mais aberto, com quem conversei à vontade, ao contrário de outros, foi o Joaquim Chissano, mas nessa marcha por Moçambique abaixo, todos voariam comigo. Falei com todos. Tal como falava tempos atrás com oficiais do nosso exército - alguns responsáveis pela traição - dentro do meu avião, falava agora com estes. Auscultei-os a todos. O último com quem voei, foi com o Samora Machel, que a seguir seria o 1°. Presidente da República Popular de Moçambique. Mostrei-lhe tão bem quanto pude, as belas terras, as belas plantações de coco, sisal e chá que sobrevoamos e faziam parte das riquezas da Zambézia. Mostrei-lhe, lembro-me bem e ele devia lembrar-se também, se vivesse, as terras do Ile e de Namarrói que produziam a mandioca de mais fina qualidade de Moçambique e em quantidades fabulosas. O homem mostrava-se interessadíssimo e ávido de saber. Contudo, esquivava-se à conversa.
Mas, desde Marrupa, lá bem ao norte, por onde entrara, que as suas frases predilectas, nos seus longos discursos, eram: Abaixo o opressor colonialista! Abaixo o Imperialismo! E aquela massa do povo delirava.
Num banquete, na Morrumbala, onde não faltava nada, daqueles banquetes à velha Zambézia, notei que, comendo galinha, peru e um ou outro doce, ele só bebia água. Só no fim e porque uma senhora insistiu, bebeu um pequeno copo de vinho Clarete. O grande discurso seria a seguir no Campo de Futebol, com um enorme auditório e lá terminou, como todos os outros: "Abaixo! Abaixo! Abaixo!"
A uma conclusão eu ia chegando: a minha posição passava agora para a de opressor colonialista ou imperialista e a dele para a de "O Novo Imperador de Moçambique". Depressa, como muitos outros, veríamos e sentiríamos os efeitos de tais discursos, em que se baseava toda a propaganda da rádio levada a todos os cantos. O povo, na maioria inculto, bebia daquilo e vomitava ódio contra os portugueses. Eles eram os opressores colonialistas. Completamente desarmados, a tropa a cavar, absolutamente desamparados, como seria a vida a seguir?
O Luís, esse belo companheiro de toda aquela aviação, desistia de voar mais sobre Moçambique. Qualquer cretino se achava com sabedoria e poder para desfeitear profissionalmente fosse quem fosse, e também a ele, que tanto trabalhara. Mais de trinta mil horas ele tinha voado sobre Moçambique que tanto amava. Cansado e desiludido, voltou à Metrópole onde, a princípio teve de cavar batatas, para sobreviver, numa pequena quinta que o pai lhe deixara. Só mais tarde lhe seria atribuída uma reforma. As caminhadas que teve de fazer por esse labirinto burocrático, onde os que vieram de lá só encontravam resistência, ia dando com ele em doido. Em tempos tinha mandado de Portugal para Moçambique umas centenas de contos, herança do pai, e construíra na Matola, bem perto de Lourenço Marques, uma belíssima residência onde pensava acabar os seus dias. Essa casa foi-lhe roubada e nacionalizada pelo novo Governo.
O nosso último encontro, numa fugida que eu dei da Rodésia a Portugal, teve muito de alegria e muito de tristeza, ao recordar tudo aquilo. E ele, sempre e sempre ligado aos aviões e às possibilidades que eles proporcionam, chamou-me a atenção para esta juventude actual e para o muito que ela poderia fazer a favor deste povo infeliz, metendo aviões, claro, e então divagava: "Esta mocidade que estuda, sobretudo a que tem por finalidade a medicina ou o professorado tem uma oportunidade única de alcançar o objectivo de voar. A massa estudantil é hoje respeitada por qualquer destes governos, que queira subsistir. Que exijam desses Governos que o seu serviço militar seja prestado na arma da aviação. Em seis meses, faz-se um piloto. Não se compreende que até hoje os serviços médicos não cheguem ao cantinho mais escondido deste Portugal pequeníssimo, acontecendo o mesmo com os serviços de alfabetização. A gente só ouve falar em milhões e mais milhões a gastar para suprir esse mal! Pois com umas dezenas de pequenos e seguríssimos aviões, como há hoje, e são baratos e, não falemos já em helicópteros, amanhã os jovens médicos poderiam chegar a todos esses cantinhos, juntando à alegria, que por força das circunstâncias, lhes dá a profissão que abraçaram, a alegria também de voar. Depois, com uma dúzia de pequenos aeródromos, umas faixas com umas centenas de metros, abertas ao longo de uma linha longitudinal deste pequeno rectângulo que se chama Portugal, puxando um pouco para o interior, pois o litoral sempre está mais bem servido, resolver-se-ia o problema de uma maneira alegre, simples e barata, que os grandes políticos querem resolver com os tais muitos milhões, sempre em tristes imitações de países que têm tentado resolvê-lo também, acabando tudo em fracasso.
Juntem o agradável ao útil! Voar e trabalhar!"
Será isto uma quimera?...
Eu continuei a voar. A minha mulher ficava lá para trás, em casa e, embora não mo dissesse, notava, ao fim da tarde, quando voltava, que ela vivia cheia de temor. Possuíamos no campo da aviação uma Pousada com restaurante que, de repente, começou a ser frequentada por toda a casta de malandros, que queriam comer e beber de borla. O encarregado avisou-nos logo que era impossível aquilo continuar. Fechei-a imediatamente, alegando que era um encerramento provisório, para obras.
Aparecia-me à tarde o próprio comandante da Frelimo a exigir que abrisse, acompanhado pelo seu grupo, armado de pistolas metralhadoras e baionetas, para me intimidar. Até ali eu tinha sido, dada a minha vida e até porque era amigo de todos, das pessoas mais respeitadas da região.
Mas aquilo era gente que tinha vindo de toda a parte, inclusive da Tanzânia, e que não respeitava ninguém. Valeu-me ter conhecido o guerrilheiro que entrara pelo Chire, Bonifácio Gruveta, que já então governava a Zambézia e que deu ordens para não me aborrecerem, pois ele reconhecia-me como elemento útil, que não interessava sacudir. Continuei a sair todas as madrugadas para os meus voos. Puseram um grupo de dez frelimos de guarda ao campo da aviação, que grosseiramente revistavam as bagagens dos passageiros que partiam ou chegavam, à procura de armas.
Transformaram em quartel uma casa minha, que ocuparam sem qualquer cerimónia. Colegas meus, da minha Companhia Aérea, eram presos e vexados por toda a parte, onde aterravam. Mas eu já arranjara outro conhecido da Frelimo, lá em Quelimane, que era o braço direito do Bonifácio Gruveta e chefe militar da Zambézia, "comandante" Maquival. Procurava defender-me com mais esse conhecimento. Este seria mais tarde irradiado da Frelimo e metido num campo de reeducação. Quando planeei a minha fuga, ele, sem o saber, abriria as portas. Contactávamos muito e ele ganhou confiança absoluta em mim.
Numa tarde, quando cheguei, depois de todas as revistas, dirigia-me para casa quando fui abordado pelo chefe daquela guarda, naturalmente analfabeto, que me disse: "Não entras em casa, não. Está aqui uma bala que foi encontrada à tua porta. Tens lá armas com certeza. Vamos passar revista à tua casa". Eles distribuíam assim balas para comprometerem qualquer um. Não concordei. Vinha cansado e adoentado, queria descansar. Que passassem revista no outro dia, pois até iria trazer o Comandante Maquival e então todos podiam revistar tudo. O que eu fui dizer! Falar no Comandante Maquival! "Aqui não há comandantes. Comandantes somos todos nós. Quem manda agora é o povo. Vais abrir já a porta. Tens lá armas. Também és um colonialista". Esta conversa passava-se comigo cercado por dez homens irresponsáveis, com nove baionetas apontadas ao corpo, por todos os lados , já todos a berrar, apodando-me de reaccionário.
Era o primeiro passo, se não me acontecesse pior, para me levarem para o Quartel, onde estavam já vários amigos e porem-me com eles a cavar de manhã à noite, nos campos em volta. A minha mulher que, de perto, assistia a tudo sem nada poder fazer, aconselhou-me a que deixasse mesmo revistar a casa. "Quando acabar a revista a gente quer também falar contigo" - dizia-lhe o comandante. Mais de uma hora a revistar minuciosamente tudo e, como nada encontraram, largaram a casa e viraram as atenções para ela.
À volta da casa havia limpeza mas, lá para trás, como o terreno era grande, apareciam naturalmente ervas, capim, até um riozito que passava abaixo. Este chefezito era o protótipo de todos os que eu via ao passar em Milange, Tacuane, Chire, Mopeia, Morrumbala, Mocuba, Luabo, Chinde e por tantas outras terras que visitava constantemente - ele, com uma pistola, e os nove companheiros com pistolas metralhadoras russas, com baionetas. Todos, de uma maneira geral, analfabetos, mas com "slogans" metidos na cabeça, que tinham como finalidade, sempre, amedrontar e afugentar os poucos portugueses que teimavam em ficar na terra a que do coração se agarravam e não queriam deixar. Nós fomos desses. Tivemos depois que abandonar tudo, após trinta e dois anos passados só naquele maravilhoso Gurué!
"Mamã! (era dessa maneira que ele a tratava). Tens que pegar na enxada e capinar ali atrás, onde tem capim. Mamã também é povo e todo o povo faz a mesma coisa. Também tem que fazer latrina". Isto foi na altura em que houve uma ordem para se fazerem latrinas por toda a parte, um simples buraco bastante fundo no chão, com uma tábua em cima para se fazerem as necessidades e onde muitas crianças viriam a morrer afogadas no tempo das chuvas, pois aquilo não passava de autênticas ratoeiras onde elas caíam. Mas a arenga continuou e ele foi mesmo buscar uma enxada nossa que estava sempre à mão, e entregou-lha. "Compreendeu mamã? De amanhã em diante toca a capinar!” "Está bem, oh! Comandante !- dizia-lhe ela. "Está bem!" Daí para a frente, ou me acompanhava no avião ou se metia no carro mesmo antes de eu sair e ia para casa de amigos, lá na Vila, regressando a casa só quando eu chegava. Mas ele ficou furioso com essa atitude. As revistas aos aviões passaram a ser muito mais morosas e contundentes.
Tínhamos dois cães de grande estimação e, uma tarde quando chegámos, vimos que tinham vazado um olho a cada um, com as baionetas. Tornava-se impossível continuar assim. E então, decidi e planeei ir-me embora. Deixaria Moçambique, a Minha Zambézia, o meu Gurué, os meus amigos e iria. Bem! Para onde, eu não sabia ainda.
Eu tinha de salvar a própria pele, a da família e a de colegas que me quisessem acompanhar. Sabia que muitos, por circunstâncias diversas, não o poderiam fazer. Mas aos muitos que acreditavam naquilo, nos que batiam palmas por aquilo, que no íntimo pensavam vir a ser "gente grande", como por lá se dizia, para o que bastava colaborar, mesmo que tivessem de ser esbofeteados, ninguém se podia aventurar a dar um conselho.
Infelizmente, logo a seguir, alguns colegas, voando, seriam traiçoeira e miseravelmente abatidos nas regiões de Cabora Bassa e do Chimoio (Vila Pery), sofrendo mortes horrorosas, o que nada me surpreendeu, pois a esses eu tinha pessoalmente avisado que, pela força das circunstâncias, chegara a hora de abandonar a terra que todos nós amávamos.
Retirando três de uma frota que possuía mais de uma dúzia de aviões, que eram quantos voavam por aquele Norte de Moçambique, sob a bandeira da T.A.Z., que possuía também vários hangares e Oficinas de manutenção, cujo valor era altíssimo, a minha consciência estava tranquila, pois não roubava nada a Moçambique nem aos meus sócios.
Retirava o que era meu e para benefício, se isso viesse a ser possível, para quem a vida se tornara dificílima.
Por um então, o Mário Ramos, que fugira para a África do Sul, onde conseguira um emprego e viria a morrer logo a seguir num trágico desastre no avião que pilotava, a uns escassos quinze quilómetros do aeroporto de Durban, tendo lá deixado a viúva e dois filhos de dois e quatro anos numa situação desesperada, era necessário que alguém olhasse.
Tinha um filho, piloto como eu, que não podia ficar para trás. Por vontade dele, já tínhamos saído há mais tempo. Havia também um outro motivo forte: constava que no discurso de 7 de Abril de 1976, Samora Machel iria comunicar a nacionalização das crianças, e ele tinha já um filhito. A criação e educação foi também uma das grandes causas de muitas fugas que se verificariam em Moçambique.
Acertámos a largada para 6 de Abril, véspera do tal discurso.
Teríamos de resolver problemas de última hora, que foram resolvidos. Sairiam dois aviões “Islander”, de dez lugares cada um, na madrugada desse dia, rumo a Salisbury, na Rodésia, em beleza, sem que ninguém se tivesse apercebido disso. Tínhamos de afastar ou destruir aquele maldito grupo que não largava. Eles mesmo iriam dar o flanco.
Mas eu, que já expliquei vários desastres que tive na minha vida de piloto, omitindo mesmo outros de menor importância, não posso terminar, sem mostrar também como se ia dando o último que, não sendo eu um crente absoluto, quase sou levado a acreditar num milagre, pois tecnicamente ainda não consegui saber como me safei. Era um "dia da Frelimo”, e o Administrador fez uma convocação obrigatória para uma capinação "histórica" no Gurué. Tinha de ir toda a gente! Resolvi não ir. Nunca tinha ido a nenhum comício, nem a uma capinação: a que propósito havia de ir naquele dia? Se ficasse em casa iam-nos buscar. Disse para a minha mulher: "Amanhã vamos para Quelimane. Não ficamos aqui". Pela manhã levantei voo num bimotor “Piper Aztec”. Fomos sobrevoar o local de capinação - e até era interessante. Estavam lá uns largos milhares de habitantes, tudo a capinar. Tinham começado às cinco horas da manhã. Segui normalmente para Quelimane, onde deparei com uma nevoeirada tremenda.
O controlador avisou-me que o nevoeiro era muito denso mas, eu, batido como estava com aquele aeroporto, pedi para tentar aterrar pelo sul, e fui autorizado, àminha responsabilidade. Fazia tantas vezes assim! Era mais uma. Fiz a primeira tentativa, que abortou. Fui fazer a segunda e então aconteceu-me o pior. Não muito longe da cabeceira da pista, passava o Rio dos Bons Sinais. A uma velocidade de cento e quarenta milhas, bato com o avião na água. Foi como que uma pedra que a gente atira a rasar a água e, ela bate, levanta, só indo mergulhar bem lá à frente. O altímetro e. nessa altura, não tínhamos mecânicos para verificar instrumentos, já quase todos tinham abandonado Moçambique - em vez de zero, marcava quinhentos pés. Eu ia com toda a atenção no rumo do rádio farol e à altitude, quando a minha mulher grita de repente e apavorada: "Água!" Instantaneamente puxei o manche, remeti motores e instantaneamente também, um grande estrondo e um grande estremeção. Ouvi os sinos de S. Bento a tocarem alegremente. Felizmente que eu ainda não tinha arreado o trem de aterragem. O avião batera na água! Fora para o ar, porque eu o puxara no tal ponto milagroso, e lá vamos nós através do nevoeiro, experimentando os comandos, que obedeciam, até ver o sol radioso lá por cima. Rumei para a direita, onde estava o mar, e dirigi-me para a praia do Farol da Olinda, onde através de tantos e tantos anos, tantas vezes aterrara, e lá fui, pela última vez, dizer adeus a areias onde penso nunca mais poder voltar. Com preocupação fiz descer o trem, que actuou bem. Deslizei cautelosamente por aquela praia fora. Saí do avião para ver o que lhe tinha acontecido. Apetecia-me afagá-lo, como fazia noutros tempos ao querido “Tiger”. O que tinha ele sofrido? Ao puxá-lo, devo ter-lhe dado uma pequena inclinação para o lado direito e, assim, desse lado, o hélice tinha entrado na água e estava levemente torto. Parte da blindagem, onde está uma boca que dá para a entrada de ar para o sistema de carburação, tinha desapa­recido, e daí para trás, o material, feito de uma espécie de fibra comprimida que parecia metal, estava todo esgaçado. A patilha, onde se põe o pé para subir à asa, desaparecera. Por baixo, o “aileron” e uma parte da barriga do avião, tudo esgaçado. A pancada tinha sido ali. De bicicleta, aparece-me um negro com um bocado de blindagem que se soltara no momento da aterragem. Ainda hoje me arrepio quando penso neste caso, pois não encontro explicação para ele. Dada a posição em que o avião bateu na água, apesar de eu o puxar, o embate, por pequeno que tenha sido, devia obrigá-lo a mergulhar, o que não aconteceu. Teria ele batido somente numa onda? Mas mesmo assim!...
No íntimo acredito que teria sido um fim digno para uma vida alegre dedicada aos aviões, que em breve teria de deixar para sempre.
Em análise, para mim era mais uma consequência do acordo de Lusaca.
Não concordei com tal traição e nunca me submeteria, mesmo que tivesse de pagar com a vida. Dali para a frente a solução era fugir.
Um belo dia à tarde, chego do meu voo, e a guarda do campo forma para me entregar uma carta. Era uma carta solene e reparei nos sorrisos de toda aquela malandragem. Era simples, muito mal escrita, mas compreendia-se o que eles queriam: "Patrão comandante Faria. Ouve bem isto. Nós precisamos de camas e colchões e tu tens muitos ali naquela casa. Dá a chave da casa, porque ela é nossa, é do povo. Não chateia, ouviste?" Depois vinha uma assinatura ilegível do tal chefe do Grupo. Disse-lhes que no dia seguinte daria resposta. Queriam a resposta imediatamente. Convenci-os que tinha de tirar de lá umas pequenas coisas e, depois, sim. Usei um processo que me foi sempre odioso. Mandei-lhes fornecer cerveja à vontade para eles adormecerem as ideias. O que eu queria era ganhar tempo.
No dia seguinte, cedo, segui para Quelimane, mas desta vez com o propósito firme de me encontrar com o Maquival, a quem dei a carta a ler e fui esclarecendo: "A continuar assim tenho que abandonar o Gurué. Pelo menos o avião passa para Quelimane e assim já não servirá tão bem aquela gente. Parece que é isso que eles querem!”...
O Maquival seguiu nessa mesma tarde comigo e a esse, eles tinham mesmo medo. É que ele, com a sua pistola, abatia logo quem o desrespeitasse. Não seria o primeiro a quem já o tinha feito, e eles sabiam-no. Mais: o Maquival deu ordens para que abandonassem imediatamente o campo de aviação, pois não havia necessidade de tal vigilância.
Tinha confiança em mim e nessa noite mesmo, eles recolheram ao Quartel! Estavam abertas as minhas portas!
Desconfiando de fugas de aviões, o governo obrigava o piloto que se deslocasse de um distrito para o outro, em voos fora das carreiras autorizadas, a munir-se de uma autorização emanada somente pelo Ministério que abarcava a aviação, em Lourenço Marques. O meu filho, mandou, de Quelimane, um pedido para fazer um voo na 2a. feira, dia 5, para o Gurué, onde ia buscar uns passageiros convidados para um casamento a realizar no Namialo, Distrito de Moçambique, perto do Lumbo, lá para o Norte, donde só regressaria na 4a. feira. E veio a autorização absolutamente legal, por mensagem aeronáutica. O resto foi simples e fácil. O objectivo seguinte era a Rodésia. Como seríamos lá recebidos, não sabíamos! Mas iríamos alegremente entregar-nos ao Destino.
Pior do que aquele Inferno que transformaram Moçambique, não podia haver.

NA GUERRA DE INFORMAÇÕES
Deixei-me ficar mergulhado na banheira. Com alguns milhares de dólares, na Europa, sem ninguém tentando me dar um tiro... deveras repousante, para o corpo e para a mente.
Mas trazia a revolução portuguesa atravessada na garganta e não iria me acomodar tão cedo. Contemplando os despidos galhos das árvores através das embaçadas janelas, telefonei para o Coronel.
Atendeu o capitão Barata, que estava atuando como uma espécie de ajudante de ordens de Santos e Castro. O coronel não estava, mas sabia da minha vinda e queria falar comigo.
- Amanhã vou a Lisboa, Barata!
- Esqueça, você agora está por conta do coronel, precisamos de ti!
Adiei minha viagem “quase turística'' com prazer, afinal logo estaria operacional de novo e não podia perder oportunidades, principalmente junto a um homem da estirpe de Santos e Castro, que devolvera sua farda e condecorações ao Exército Português após a famigerada revolução que enodoou as Forças Armadas.
Na manhã seguinte instalei-me no confortável hotel Flórida Norte, a uns 300 metros da Plaza de Espana e da Gran Via, no coração de Madrid. No bar do Flórida, sentei-me com o capitão Barata e Lopes, o velho companheiro de luta que, encarregado do recrutamento de novos elementos em Portugal, acabara ficando na Europa, com o fim abrupto dos combates.
Esperava minha vez para falar com o coronel, mas este, ao me ver, interrompeu sua conversa, vindo ao meu encontro. Apesar de ser um militar de linha dura, dava valor aos seus subordinados, respeitando-os da mesma forma que o era por todos. Queria que eu ficasse em seu "staff"; eu e Lopes seríamos seus homens operacionais, preparados para qualquer eventualidade.
Como piloto, pára-quedista, chefe de carro de combate e comando, me transformara num oficial polivalente, podendo ocupar o mesmo lugar que vários outros de uma só especialidade. Era veterano, passara por guerrilhas e por uma guerra convencional; saltara pêlos postos hierárquicos e tinha plena confiança em minha capacidade militar. Eu era, finalmente, o que me propusera ser. O aprendiz de guerreiro já não existia.
Adiei indefinidamente meu período de recuperação em Portugal, permanecendo na Espanha "patrocinado" pelo coronel, que por sua vez tinha seus patrocinadores. Que não eram os propalados ELP (Exército de Libertação de Portugal) nem muito menos o MDLP (Movimento Democrático para a Libertação de Portugal), as duas organizações contra-revolucionárias que nasceram devido ao entreguismo do novo governo.
Aos contatos destes, ansiosos para poderem usar a força de seu nome, Santos e Castro respondia com trocas de ideias, conselhos, mas mantendo distância. Ainda estavam "verdes" demais, teriam que crescer e organizar-se melhor se quisessem sobreviver e produzir algo de concreto.
A primeira semana foi deixada para minha climatização. Nas Galerias Preciados e no El Corte Inglês renovei meu surrado guarda roupa, adaptando-o ao ainda inverno europeu. Em Puerto Cerrado, a poucos quilómetros de Madrid, divertia-me na neve, com tobogãs e esquis que me faziam permanecer mais tempo na horizontal do que na vertical... Passeava longamente pelo grande zoológico, pelo Parque de Atraciones e vendo as crianças brincando despreocupadamente, os adultos alegres, pisando o tapete de folhas douradas que caiam secas das árvores, fui aos poucos entrando em forma, ganhando tranquilidade e peso...
Numa pizzaria italiana na calle de Los Libreros, onde sempre jantava, reunia-me com os membros da Ordine Nueva, com Walter, ex-capitão dos Panzer de Wehrmacht na II Grande Guerra, que muito tinha de interessante para contar e outros espanhóis e sul americanos.
Cantavam-se hinos e degustavam-se boas pizzas e lasanhas num ambiente militarizado.
O coronel, que não se fiava em boatos, queria saber a verdade sobre a situação do povo português, principalmente acerca das infiltrações de técnicos e agitadores profissionais. Partindo em dias diferentes para pontos diferentes, Lopes e eu deveríamos, separadamente, vasculhar Portugal de cima abaixo, colhendo informações.
Embarquei no aeroporto de Barrajas, para Lisboa. Teria também, agora, a chance de rever os ex-comandos do ELNA e fazer um mapa de suas posições atuais e ocupação, o que poderia ser-me útil. Pensava, já, em organizar as Brigadas Lusíadas, que haveriam de reconquistar pela força, a independência de Portugal.
Já pela parte sentimental gostaria de reencontrar pessoas que me trataram com amizade, quando dos meus primeiros passos em território africano: os padres de Nampula e outros, que agora se encontravam no norte de Portugal. Iria visitá-los, se tudo saísse bem.
Corria o ano de 1976, apenas quatro da minha primeira estada em Portugal. Mas a revolução fizera sua obra, fiquei desolado com o país que agora encontrava.
Que diferença dos bons tempos, severos sim, mas seguros, de Marcelo Caetano. Onde estava a ordem, a limpeza exemplar que vira em anos atrás? O que era aquela imundície nas paredes, nas ruas, no metro? Por quê aquela multidão de mendigos? Por quê aquela garota bonita, que estudava no Liceu em Moçambique, engraxando sapatos na praça do Rossio para ter que ganhar a vida? Por quê não houve controle na alfândega do aeroporto, por acaso a ninguém interessava se eu trazia uma mala com drogas para semear vícios e destruir jovens? Ou armas? Onde estava a lei e a ordem?
Onde estava, sobretudo, o orgulho de uma nação que mantinha suas colónias em África, firmemente decidida a não deixá-las nas mãos de oportunistas de Leste e aos poucos, com sacrifícios, ia dando-lhes autonomia e progresso, ganhando uma batalha que as grandes potências haviam perdido por falta de garra, deixando suas posições entregues às lutas tribais e à escravidão marxista...
Contemplei um Portugal doente.
Um povo que se dividia ostensivamente em ex-colonos, sofridos, que tudo haveriam perdido, chamados de "retornados" e os que não deixaram o solo europeu e egoístas, se sentiam prejudicados pêlos irmãos que voltavam precisando de casa, comida e trabalho.
Quem vinha da praça dos Restauradores e entrava no Rossio, à direita, na primeira calçada iria encontrar os retornados de Moçambique às centenas, tomando todo o espaço, em torno de um café ou em grupos, comentando os tempos passados e os magros dias do presente. Mais à frente, no segundo calçadão, os retornados de Angola. Do outro lado da praça, em frente à Confeitaria Suíça, misturavam-se timorenses e outros. Em todos os grupos, a mesma conversa. E a mesma vontade de se rebelar contra aquela situação estúpida. Faltavam líderes e organização suficiente, para terem condições de luta contra os maquiavélicos esquerdistas e suas revoluções pré-fabricadas, modelo padrão, made in URSS.
Faltavam as "Brigadas Lusíadas", para receber estes homens e criar uma nova Pátria.
Comecei minha missão pelo sul, por Faro, passando por Beja e Évora, nas quais demorei-me bastante. Estava por ali o cancro que fazia Portugal adoecer... Ao mesmo tempo ia contatando ex-comandos das localidades, cujo endereço trazia comigo desde Kinshasa. Preciosa e segura fonte de informações, deixava com eles o número de minha caixa postal em Madrid, que comprara unicamente com este fim.
Animava-os e pedia que permanecessem alertas. O fato de me verem chegando às suas casas, demonstrava que havia algo em marcha, nem tudo estava perdido. Se por um lado cumpria minha missão colhendo informações, por outro ia solidificando meus planos da Brigada. Nunca gostara de sonhar acordado, haveria de conseguir.
Em um carro alugado pesquisei, juntamente com Azevedo, (do grupo blindado), zonas do campo onde se localizavam "fazendas coletivas", comunas que eram verdadeiros ninhos de víboras. Havia armas de guerra, principalmente G-3, espalhadas pelo sul de Portugal e notadamente um sem número de granadas.
Se bem que infiltrações cubanas fossem difíceis de detectar devido ao seu tipo físico semelhante ao português, o que se via e recebia informações era sobre a presença de um grande contingente de portugueses praticamente criados em países socialistas de Leste, aluando de forma aberta na mentalização do povo mais humilde, sustentando-se sem trabalhar, o que constituía um mistério bem fácil de ser elucidado.
À medida que caminhava para o norte o vermelho se transformava em rosa e acabava desaparecendo já nas proximidades do Porto, berço de grandes tradições de amor à Pátria.
Hospedado no Grande Hotel da Batalha após contatos valiosíssimos, resolvi visitar meus amigos padres que viviam nas cercanias da velha cidade.
Qual não foi meu espanto e desilusão, quando em meio a evasivas apressadas, os representantes do Senhor na terra fugiam esbaforidos diante da minha presença, visto no mínimo como embaixador plenipotenciário de Satanás em Portugal! Haviam perdido todo aquele entusiasmo por Marcelo Caetano e o Império Português, que de sobra extravasavam. Pensavam em sua própria sobrevivência, entocando-se de medo ao menor sinal de alguém que não estava nas graças do revolucionário governo. Voltei para o Porto a fim de que saíssem finalmente debaixo de suas camas. Era a hora do terço, pois!
Voltei à Espanha com meu relatório, encontrando Lopes, que me havia precedido por dois dias. Também trouxera informações interessantes.
Mas a exemplo do acontecido com a contra revolução moçambicana, o ELP e o MDLP se debatiam em intrigas e rivalidades internas, perdendo pouco a pouco suas forças e diluindo outras que por ventura houvesse. Ainda voltei a Portugal para assistir e fotografar certo comício e como ponta de lança, segui para o sul da Espanha, tratando da segurança de um encontro sigiloso perto da fronteira. Foi meu último serviço.
Depois de uma conversa com o coronel, que para mim teve o valor de um curso pós-graduação, dissolvemo-nos. Despedi do "velho" e fui tratar de meu futuro, pois muito pretendia ainda fazer. E se Angola fora a escola prática, Espanha e Portugal, com os longos monólogos de Santos e Castro, fora a teoria que me faltava.
Entre dois goles de Águia Real resolvi dar um salto ao Brasil, de onde estava ausente há quatro anos. Foi uma decisão repentina, mas acreditei que me faria bem. Comprei uma passagem para o Rio e pela primeira vez, em dezenas de viagens aéreas, resolvi num ímpeto de xenofobia vir pela companhia brasileira. Mal o voo começou e eu já me arrependera. O péssimo atendimento, a comida em nível de restaurante de 3a categoria, as comissárias arrogantes. Pisei no Brasil irritado, mas logo voltei ao normal a caminho de São Paulo. Em quatro anos o valor do dinheiro mudara bastante e ficava estupefato ao ver os preços, pois não seguira seu paulatino aumento. A solução foi indo transformando-os mentalmente em dólares ou pesetas, para ter o valor real de cada coisa.
Em São Paulo encontrei E.C., de quem não tinha notícias há muito, já veterano num curso de Direito e com uma filha ao colo. Adaptara-se bem, o guerreiro part-time!
Em minha pequena cidade natal, a 190 quilómetros da capital do Estado, a tranquilidade de estar com a família e outras pequenas grandes coisas.
E lá mesmo a surpresa de encontrar, enriquecendo o Corpo Docente da Faculdade de Direito com uma colaboração semanal, o grande Ministro do Ultramar e ex-governador de Moçambique, Doutor Baltazar Rebelo de Souza, com quem tive a honra de conversar e passei a manter correspondência, para dar-lhe notícias de Moçambique, que realmente amava e sofria com a atual situação da antiga província que governara.
Mas a roda do carro de Marte, Deus da Guerra, não pára.
Recebo cartas de vários pontos por onde se espalham ex-comandos. Como se escutassem a um apelo pensam em voltar para a Rhodésia, não estão se adaptando à vida que agora levam e ainda não se conformaram com a escravidão que sofrem seus países adotivos, Angola e Moçambique. E Rhodésia, que sempre nos acolhera bem, está ali, encostada no bosque enfeitiçado de Samora Machel...
Mal passaram dois meses de minha chegada e já pensava em voltar à atividade. Alguém tinha que ajudar a libertar aqueles países; por que não nós, outra vez, atuando como catalisadores da legítima revolta de um povo oprimido?
Desta, porém, eu queria dar as cartas. Ao meu modo. Queria africanizar minha ideia das "Brigadas Lusíadas".
Há meses os portugueses refugiados em Rhodésia tentavam criar com os experientes ex-comandos especiais, grupos de guerrilha que servissem de bola de neve, na avalanche que soterraria Machel e seus lacaios. Faltava um chefe que fosse aceito por todos eles, um tanto rebeldes após os sofrimentos de Angola. Cogitaram meu nome e não houve opiniões contra. Sofrera com eles, do princípio até o último dia da guerra civil e nunca me acomodara na retaguarda.
Daí foi um passo para me ver sentado diante da simpática funcionária da South África Airways, adquirindo meu bilhete para Salisbury. Voltaria à África, desta vez plenamente consciente do que me esperava e com know-how para enfrentar as circunstâncias.
Após cruzar o Atlântico pela quarta vez, desta feita pelo sul e escalar em Joahnesburg, cheguei a Salisbury. No rígido controle alfandegário os turistas que não portassem passagem de volta nem comprovassem possuir suficiente dinheiro para a estadia que se propunham, eram "devolvidos" no mesmo avião. Apesar da minha passagem ser apenas de ida, um telefonema do Special Branch, o serviço secreto rhodesiano, bastou para que fosse liberado com votos de boa estadia...

VI
RESISTÊNCIA MOÇAMBICANA
Eleven, Backer avenue, again. Ao chegar à pensão recebo as boas vindas de Godinho, ex-condutor de pesados do grupo dos comandos e a novidade é que a pensão pertence agora ao Theófilo, ex-agente da DGS que conseguira após dificuldades iniciais se firmar em Salisbury. É um amigo dos tempos difíceis, que também teve que fugir pela fronteira rhodesiana, na mesma odisseia que tantos outros. Antes de atravessar a pé a divisa dos dois países incendiou seu carro, para que a Frelimo não o incorporasse às suas mordomias.
Tudo bem, estou "em casa" novamente e até o Farinha é um dos hóspedes. Agora vamos trabalhar; à guerra, senhores!
Repetindo o trabalho de Alves Cardoso em 1975, faço um levantamento de pessoal, ex-comandos ou não e seleciono-os. Pretendo formar um grupo de guerrilha que entre em Moçambique recrutando elementos da população africana e então procuraremos criar bases dentro do território agora inimigo. Os papéis se inverteram, Frelimo é o governo e nós os guerrilheiros!
Reunir e equipar militarmente um grupo, mesmo pequeno custa caro. Passamos a contatar os empresários portugueses e as contribuições em dinheiro ou material começaram a chegar. Póvoa, ex-comando, conseguiu quase a metade da verba que temos, são mais 1O mil dólares, suficientes para o início. Godinho também é o grande relações públicas, incansável.
Por Rh$ 700 (dólares rhodesianos), compramos um Land Rover e com ele passamos à fase final, que seria a aquisição das armas e equipamentos. Para evitar qualquer indiscrição ou movimentos em demasia, reduzo o efetivo ao número de um grupo forte de guerrilha, 8 homens. Desligo os outros, que permanecerão em disponibilidade, mas sem participar dos últimos preparativos.
Em lojas de campismo encontramos mochilas, botas, facas, capas especiais para caçadores; em farmácias adquirimos o indispensável para nossa empresa, desde ataduras, grampos de sutura, injeções anti-hemorrágicas, até soro antiofídico. O maciço montanhoso por onde passava a linha fronteiriça na região de Untali, local que escolhera para nossa entrada, era infestado de cobras cujo veneno matava em poucos minutos.
Conseguir armas era a tarefa mais difícil e dispendiosa. Teria que escolher entre os tipos civis disponíveis, aqueles que aguentassem um combate ou pelo menos sustentassem o primeiro embate com o inimigo, de quem conseguiríamos bom armamento.
No meu quarto, na "Coimbra Boarding House", acumulavam-se as mochilas empilhadas, cheias, e as armas no armário. Com o dono da pensão, Theófilo, nenhum problema tínhamos, é claro. O quarto permanecia trancado, só aberto pelo homem da limpeza, ex-carcereiro da DGS e atual informante do Especial Branch, que ia seguindo ao longe nossa evolução.
Conversara longamente com Jack Berry, o chefe do S.B., que embora achasse minha ideia boa, indo de encontro inclusive com outra que ele tinha, foi sincero ao afirmar que nada conseguiria com os portugueses, ao seu ver "heróis de bar", muita bravata e pouca ação. Expliquei-lhe que eram homens já com experiência em guerra, com bons serviços prestados em Angola.
Jack, cujas mãos pararam de tremer após o primeiro copo de cerveja com conhaque, pediu a segunda rodada, sorriu e disse que ficaria a ver-nos, duvidava que eu chegasse, ao menos, à organização completa do grupo.
Pois veria, assegurei, tomando minha Black Label, a mais forte cerveja rhodesiana.
E ele estava recebendo seus informes agora. Nosso "arsenal" se completava. Três Remington .22 com silenciador e mira telescópica que seriam usadas para a abertura de emboscadas, desorientando o inimigo, uma Winchester 33, uma Lee Enfield 303, uma Hornet, uma pistola Beretta 9mm e uma pistola Colt 32 para mim.
Biltong, a carne seca rhodesiana, era a base de nossa alimentação, enriquecida com vitaminas e proteínas em cápsulas. Um binóculo, uma bússola, mapas e uma máquina fotográfica completavam nosso equipamento. Num bosque dos arredores de Salisbury foram afinadas as pontarias das Remington; um amigo rodou 400 cópias de um panfleto, escrito por mim, explicando quem éramos, o que pretendíamos e o que deveriam fazer para ajudar-nos. Pensando no nome que deveríamos receber, veio-me a ideia de Resistência, que completei finalmente com Resistência Moçambicana.
Nascia ali hoje a poderosa e mundialmente conhecida Renamo.
Nada faltava, marquei o dia da partida e designei os relações públicas que atuariam na retaguarda, através de informes e propaganda. Estávamos prontos.
-Telefone para ti:
-Diga!
- Jack quer falar contigo e quer que lhe apresente o grupo. Vamos te ajudar... Esteja na esquina da Mofatt com a Jameson hoje às 14:00h.
A velha raposa esperara até o último instante e finalmente convencera-se que eu não blefara! Mas quem telefonara em seu nome falava português correto e Jack não tinha assessores portugueses...
Não sabia até onde chegava o serviço de informações da Frelimo e embora tivesse certeza que este era fraquíssimo, resolvi me precaver.
Compareci ao encontro coberto à distância por dois elementos de meu grupo, preparados para alguma surpresa. Anotariam a matrícula do carro que me apanhasse e suas características, seguindo-o de longe com o Land Rover.
Na hora marcada surgiu um Renault R-16 dirigido por um indivíduo um tanto quanto gordo, cabelos escuros. Embora alto, tinha o fenótipo latino, aparentando uns 45 anos. Com o motor funcionando, apresentou-se e subi ao veículo. Tratava-se de Peter, um rhodesiano nato que vivera muitos anos na fronteira com Moçambique, falando português sem nenhum sotaque. Sempre alegre, simpático, tornou-se um elemento precioso nas relações do grupo com o Special Branch, até a sua morte, meses depois.
Lá atrás o Land Rover arrancou, seguindo-nos à distância, num trajeto que nos levou ao Beverly Rocks Motel, bem afastado da cidade. Numa mesa protegida por guarda-sol, no bem tratado relvado, Jack me esperava, com seus inseparáveis conhaque e cerveja.
Pediu-me uma descrição detalhada dos nossos progressos e propósitos, ouvindo pacientemente por uns dez minutos.
- Well - principiou ele com sua voz pausada - "o que tenho a oferecer, e lhe aconselho a aceitar, visto que em seu plano a audácia entra com a maior porcentagem de responsabilidade pelo sucesso, é o seguinte: pela insegurança de seu armamento civil, dou em troca Kalachnikovs, granadas, RPG-2 ou 7, minas, todo o explosivo que necessitarem, de origem comunista".
Estiquei-me na cadeira com a atenção dobrada, deixando a cerveja esquentar no copo. AK-47 Kalachnikov era a arma que mais desejávamos para ações contundentes e rápidas. Continuei a ouvir, sem nada dizer.
- Vocês não têm uma base e criá-la em território inimigo leva tempo e muita resistência física, que os brancos não possuem; dou-lhes urna fazenda, com sede, instalações completas, inclusive com piscina, a 5 quilómetros da fronteira, um ex-motel abandonado por causa da guerra".
Comecei a desconfiar de tanta generosidade.
-Dou ainda treinamento adicional, comida, transporte. Que pensas?
- Bem até agora, tudo ótimo. E o que daremos em troca? A resposta de Jack foi sem rodeios:
- A libertação do campo de prisioneiros da Gorongosa. Aos outros lhes comunicará quando estiverem todos concentrados na fazenda; terão o direito de aceitar ou não. Realizarão uma missão difícil, mas que será boa tanto para nós como para vocês, aumentando-lhes o efetivo e podendo combater melhor a Frelimo, nosso inimigo comum.
- Não preciso pensar nisto, a princípio aceito, Jack.
Um aperto de mão e retornei à cidade, recebendo instruções de Peter para a apresentação do pessoal a Jack no dia seguinte, numa das saídas de Salisbury.
Meus companheiros, sentados em meu quarto, ouviram as novidades. Tive dificuldade de convencer a todos, pois alguns não queriam se comprometer com o governo rhodesiano, fazer algo só "lusíada", voltado única e exclusivamente para Moçambique.
Lembrei-lhes que a própria Frelimo sobrevivera porque suas bases principais eram na Tanzânia, a FNLA no Zaire, o MPLA na Zâmbia, a UNITA na Namíbia. Não podíamos prescindir da ajuda do governo ou ficaríamos entre dois fogos. O argumento das AK-47 foi, porém, decisivo. Os veteranos não resistiram à tentação de trocar seu heterogéneo armamento por aquela máquina de fazer guerra. Conservaríamos, porém, as Remington, usando-as como previsto.
O encontro do pessoal com Jack foi curto, mas de impressão favorável. Apesar dos resmungos, pedi-lhes que fizessem ou aparassem as barbas, cortassem o cabelo, coisas indispensáveis à visão inglesa do chefe do SB... Tudo combinado, partiremos às 04:30h, máximo sigilo, nada de despedidas ou bebedeiras comemorativas. Dormir cedo é minha ordem.
Reúno-me com um colaborador e delego-lhe autoridade para receber correspondência em meu nome e respondê-la, como Delegado da Resistência Moçambicana em Salisbury. Que, aliás, se transformara em Resistência Nacional Moçambicana, ideia do Special Branch e que poria no ar uma rádio pirata, a "Voz de Moçambique Livre".
Toda notícia relativa a combates e progressos da Resistência seria divulgada na imprensa falada e escrita; o mundo deveria saber que a reação contra a escravidão começara no jovem País africano banhado pelo Índico.
À hora marcada somos recolhidos por dois Land Rovers do S.B. Vou no da frente, dirigido por Mike, um agente dos mais operacionais que conheci. Tinha gosto pela aventura e aventuras era o que não lhe faltava. Só lamentava não poder participar da nossa missão.
Eu ainda não sabia o local exato da fazenda, só seu nome, para mim desconhecido. Dirigimo-nos para o sul, sempre bordejando a fronteira, por boas estradas asfaltadas, mas desertas. Por ali, os civis só trafegavam em comboios protegidos. Subindo sempre, o clima tornava-se frio e úmido. Transpúnhamos belas florestas e não raro, bandos de macacos cruzavam à nossa frente.
Em Mellsetter, última vila branca antes de chegar ao destino, Mike parou para compras. Depois penetramos por uma agradável estrada de terra, cheia de curvas e estreita, por locais mais altos e frios. Estávamos junto à fronteira, cada vez mais sós. Logo à frente, uma pequena placa indicava: Alice Dale.
- Here we are! - exclamou Mike.
Curvou para a esquerda subindo por um íngreme atalho, que contornava um morro. Lá em cima, toda cercada por alambrados, estava nossa Base, uma aprazível "Guest-House" desativada devido ao terrorismo. Alice Dale, com sua sede tipo suíço, sua lareira e sua piscina! Nada mal!
Distribuí o pessoal pelos quartos de hóspedes e me instalei na suíte. Afinal, não iria abrir mão de um pequeno privilégio como este!
Mike mostrou-me o depósito de víveres, atulhado de rações de combate rhodesianas. Poderíamos usá-las como reforço alimentar enquanto lá estivéssemos.
A região era "zona 100%" e logo atrás de nossas instalações se erguia uma montanha, a última antes de Moçambique. Em caso de ataque com morteiro estaríamos como patos em barraca de tiro. Mas quanto a isto nada havia a fazer; organizei um sistema de sentinelas, apenas para evitar a aproximação excessiva do inimigo e dar o alarme. Todos dormiriam com as armas ao alcance das mãos.
O motor gerador seria desligado às 20 horas, diminuindo assim o perigo de sermos ofuscados durante a noite. Conhecendo nossos domínios, a escuridão nos ajudaria na defesa.
Naquele cenário aparentemente tranquilo, cercado de verdes montanhas e respirando um ar privilegiado, fomos dormir. A alvorada seria às sete horas e antes do breakfast havia prometido que teríamos corrida. Tinha que tornar meus homens novamente operacionais, fazê-los expelir a cerveja do corpo e agora era a oportunidade. Temia que me dessem trabalho em matéria de resistência física, o que logo ficou demonstrado.
- Um, dois, um, dois! Vamos lá pessoal! Descendo pela ladeira ninguém reclamava, esbanjavam forma. No sopé do morro dei meia volta e ao contrário do que esperavam, atirei-me estrada acima, lembrando que a minha única medalha ganha em esportes fora em Cross Country, na EPCAR em Barbacena, sempre gostara de corrida rústica. Silva, o mais gordo da turma, ex-membro da PATU (Patrol Anti Terrorisrn Unit) do Rhodesian Army, começou a empalidecer e ficar para trás, mais dois o imitaram. Acelerei o passo para ver com quem teria que forçar a barra futuramente. Entramos em fila indiana pela "farm" e ao redor da piscina voltamos à calma. Ali, nas espreguiçadeiras, estavam Mike e um estranho, haviam cruzado por nós na subida, no Land Rover do S.B. com mais dois africanos.
-Helo, Pedro!
-Hei, Mike!
Apresentou-me Danny, outro agente, um dos campeões de tiro da Rhodésia (sua esposa era a campeã feminina) e instrutor dos Selous Scouts, a taskforce de elite do Exército. Sem dúvida um profissional competente, mas com quem viria me antipatizar, por causa de seus métodos.
Danny ficaria conosco para acompanhar minha instrução e para ministrar outras. Quis conversar comigo imediatamente sobre a missão e do treinamento a ser dado. Após o banho e o café, reuni-me com Mike e Danny, munidos de mapas e fotos.
O campo de prisioneiros da Gorongosa, no coração do antigo parque do mesmo nome, distava uns 150 quilómetros da fronteira em percurso a pé. Mantinha em suas instalações em regime de escravidão, cerca de 1200 dissidentes da Frelimo, grande parte deles por motivos fúteis.
Em duas partes distintas separadas por um riacho, ao norte estavam localizadas as casas dos guardas e do comandante e ao sul, as instalações reservadas aos prisioneiros. A Força Aérea Rhodesiana fizera um bom trabalho de fotos, tiradas à grande altitude, mas perfeitas.
Danny fez sinal para que os dois africanos se aproximassem. Quem aqui chamarei de Paulo fora um comandante da Frelimo, entrara em dissidência por não participar da corrupção que grassava entre os oficiais logo após a independência e com isso ganhara uma estadia para "reeducação" no campo da Gorongosa, de onde fugira para a Rhodésia juntamente com Jonas, outro recluso. Ambos falavam português, inglês e os dialetos africanos locais.
Todas as minhas dúvidas foram por eles esclarecidas, tais como efetivo, armas, turnos de sentinela, entradas e saídas de campo, obstáculos naturais e artificiais, moral dos prisioneiros e guardas, etc. E melhor notícia, era que nos iriam acompanhar como guia e combatentes. Apresentei-os ao pessoal e passaram a participar do treinamento.
Obrigava o grupo subir pela montanha várias vezes, sempre seguindo técnicas de combate, observando silêncio, apagando pistas, etc, etc e fomos aos poucos nos entrosando. Num stand escondido em meio aos pinheirais exercitamo-nos com as Kalaschs no tiro de precisão, instintivo, rajadas curtas, pois três dos homens ainda não conheciam a AK-47.
Apesar de alguns atritos com Danny chegamos ao final do período de reaquecimento inteiros e prontos para a partida. Fomos fechados na traseira de um Land Rover e, escondidos, rumamos para as cercanias da vila de Umtali, cuja rodovia e ferrovia ligavam-na à cidade da Beira, nas costas do Índico. Agora, ambas vias estavam cortadas e minadas na fronteira.
No período colonial era por ali que transitavam as centenas de turistas rhodesianos em busca da praia e dos afamados camarões da Beira, Inhambane e outras localidades moçambicanas. Era pela estrada de ferro também que o bloqueio económico contra a Rhodésia era furado com maior intensidade, com a concordância do sensato governo português da época.
Umtali igualmente era procurada pêlos portugueses pelo seu clima de montanha, bons hotéis e boa bebida, além de abrigar como residentes uma grande colónia lusa.
Num clube de campo abandonado, saltamos finalmente de dentro da carroceria do Land Rover, ofuscados pela claridade. Esticamos as pernas e preparamos uma espécie de pic-nic, enquanto aguardávamos a chegada de Mike e Taborda para as instruções finais.
O velho Taborda, que lutara em Angola, estava como chefe de uma base de S.B., onde treinavam africanos vindo de Moçambique e de onde Paulo e Jonas saíram. Muitas das informações que seriam dadas eram secretas e para evitar qualquer deslize, só agora é que nos revelariam.
- Reunir o pessoal!
O veículo esperado se aproximava.
Sentados em semicírculo, iniciamos o briefing. Mapas no solo, Mike mostrou rapidamente e com eficiência os pontos minados, as zonas de patrulha que deveríamos evitar, trilhas, etc.
Ponto de partida: uma fazenda ao lado de Umtali; ponto de chegada: um maciço montanhoso ao norte, j á perto de Tete, o território inimigo encravado na Rhodésia. Taborda e seus homens lá estariam, passados 10 dias, em vigília diária.
Sempre camuflados no Land Rover, partimos para o ponto de saída, seguidos pelo segundo veículo, mas bem afastado.
Eram pouco mais da 17:00h; de um caixote retiramos uniformes da Frelimo e despimos nossos trajes civis. Perto, alguns homens do S.B. mantinham-se alertas, porquanto logo abaixo da estrada onde estacionamos iniciava-se o outro país, inimigo.
Uma novidade foi a pasta denominada de "Black is Beautiful", que tivemos que passar nas partes do corpo que não eram cobertas pelo uniforme. Com o rosto, mãos e pescoços enegrecidos pela miscelânea criada pelo Rhodesian Army, seríamos facilmente confundidos, à distância, com tropas africanas.
- Em forma! Preparar para a revista!
À minha ordem, os 9 homens se perfilaram, mochilas colocadas, armas cruzadas e abertas. Sem perda de tempo, inspecionei em cada um a munição, arma, cantil, comida, a perfeição do "Black is Beautiful" e a ausência de metais que pudessem criar reflexos luminosos. Tudo em ordem. Chegou a hora, mais uma vez. Depois de uma pausa, aqui estávamos nós. A guerra de Angola ainda estava bem viva nas mentes, todo aquele sacrifício, aquele esforço do qual não pensara recuperar tão cedo. Mas o tempo passou rápido e Angola transformou-se em apenas uma batalha, a guerra continuava e nossas armas romperiam seu silêncio.
Enquanto pensava, com a bússola tirei o 1° azimute a seguir na longa j ornada. OK, não falta mais nada!
- Boa sorte! - Mike a Taborda, cumprimentaram um por um e o grupo seguiu-me trilha abaixo, rumo a Gorongosa.


DE VOLTA AO COMBATE
Um combatente se sente renascer quando, afastado finalmente de tudo que não seja a situação de guerra, caminha através de mata, arma em punho, cantil na cintura, olhos e ouvidos aguçados. Naqueles momentos ele é rei, é lei, é vida e é morte. E perto desta, a vida passa a ter mais valor, mais sabor.
Avançamos pela trilha, distanciados de cinco homens, em silêncio. Uma chuva fina começa a cair para nosso júbilo, pois apagará pistas e confundirá ruídos.
O declive termina, vamos entrar na planície; a fronteira foi deixada para trás. Levanto o braço esquerdo e me agacho. Todos me imitam sem ruído e passo a ordem: sair da trilha, camuflar-se na vegetação e esperar o anoitecer. Todos se acomodam da melhor maneira, cobertos pela lona individual, pois a chuva engrossou e parece que vai durar. Entregues aos pensamentos, deixamos a tarde morrer. Só se ouve o barulho das gotas caindo...
A noite ainda não chegara, mas uma neblina adensava-se entre as árvores, tomando-as apagadas. Achei por bem avançar.
Dei o sinal e como fantasmas em suas capas de lona negra foram saindo de suas tocas, sacudindo-se da água acumulada. Debaixo da garoa fina que volta e meia aumentava progredimos em território inimigo. Logo o suor produzido pela marcha forçou-nos a retirar as capas, embrulhadas e colocadas de novo nas mochilas, deixando nossa roupa molhar, mas equilibrando melhor o calor do corpo.
O terreno, que há muito deixara de ser limpo ou habitado, agora cobria-se de alta vegetação que agarrava-se a nós e procurávamos evitá-la, serpenteando entre as "ilhas" de mato, mas sem escapar do capim, que me preocupava bastante devido ao rastro deixado. Era impossível apagar todos os sinais numa longa caminhada ou progredir em linha aberta, o que marcaria menos, mas os acidentes de terreno não permitiam.
Paulo ia à frente, conhecia a região, seguido de mim e fechando a coluna ia Alex, um português que não fora aceito nos comandos em Angola por intrigas de inimigos pessoais, tornando-se depois desta chance negada quase um vadio, sem trabalhar, sem cortar a barba e o cabelo, andando inclusive descalço.
Resolvi lhe reabilitar contra todas as opiniões, sabia que era um elemento valioso.
Uns dez dias antes da partida, lhe comuniquei que haveria algo e ele seria aceito se obviamente mudasse seu comportamento. No dia seguinte um novo homem aparecia à minha frente: barba raspada, cabelos cortados à militar, porte ereto e botas!
Cheio de entusiasmo, passou a fazer exercícios físicos pelas manhãs, deixando inclusive as costumeiras bebedeiras de lado. E não me enganei, tornou-se um combatente eficaz, sacrificado, fiel, conquistando o lugar de "cerra-fila", importantíssimo numa guerrilha, pois é o indivíduo que apaga os rastros, permanecendo atento à retaguarda, nos ruídos de uma possível perseguição, um posto para homens de confiança.
As nuvens baixas do temporal eram instáveis, às vezes deixando surgir uma lua enorme, clareando tudo e semeando sombras.
Depois de andar por horas chegamos a locais habitados, com grandes machambas (plantações), de milho principalmente. E nos milharais havia vigias quase sempre acompanhados de cães vadios, aquecendo-se na pequena fogueira que queima por toda a noite, debaixo de um abrigo de palha. Aqui e ali, extensas faixas de terra preparadas para plantar complicavam-nos a progressão, pois nossa passagem deixaria profundas marcas no solo macio e molhado.
Um cachorro desata a latir feito um desalmado, sentindo a nossa presença, denunciando-nos. Era o primeiro cão comunista que encontrava, mas na hora não senti graça alguma. Afastamo-nos com rapidez, dando uma longa volta, mas caindo em uma plantação que além de maior, era limitada por um profundo riacho, estreito, mas não o suficiente para que passássemos sem ter que afundar até o pescoço, erguendo armas, munições e mochilas acima da cabeça, produzindo inevitáveis ruídos.
Depois do rio, um barranco alto e despido. Quanto estávamos no meio da subida, as nuvens se espaçaram e a lua brilhou sobre nós. Angustiado, vi as sombras projetadas, compridas silhuetas em negro, cortando o aclive.
Um vigia começou a bater numa lata, rompendo o silêncio da noite, fôramos vistos sem dúvida e as batidas, fortes como as do meu coração no momento, prometiam caçada para o dia seguinte. Sabia que com pista ou sem ela, amanhã nos procurariam por todo o lado.
Tinha que tirar o pessoal daquela perigosa zona fronteiriça em marcha forçada, mas Silva, o gordo, começava a apresentar problemas que eu j á esperava e temia. Caíra várias vezes e as paradas para descansar tinham se tornado frequentes, alguns outros também estavam fatigados devido à progressão pelo terreno molhado, mas era preciso seguir.
Empurrava-os, ora ameaçando deixá-los para trás, ora animando-os; não queria amanhecer em perigo, numa má posição, teríamos que acampar em terreno que nos favorecesse e para isso urgia sair daquele buraco, chegar aos morros que se delineavam no horizonte.
Malgrado meus esforços e a tentativa de aliviar o peso das mochilas de quem estava mais estafado, transferindo parte da carga a outros mais resistentes, não foi possível levá-los adiante. A chuva, a lama, a vegetação, o peso do equipamento e a marcha forçada haviam colocado dois dos homens completamente esgotados, sem condições de caminhar alguns metros.
Estávamos em uma pequena elevação, no sopé de outra bem maior onde pretendia passar o dia, mas a única solução foi sairmos do capinzal, espalhados em linha, cada qual apagando seu rastro e enfiar-nos numa "ilha" de mato cerrado que se erguia no declive adiante, distante uns 200 metros. Péssima posição, escondida, mas de maneira que o inimigo nos pegaria sempre de cima para baixo e à retaguarda só escaparíamos rolando ladeira abaixo, caindo provavelmente em campo aberto.
Cada qual isolou-se num canto entre as árvores, num raio de uns 15 metros e cobertos pela capa adormeceram de imediato. Permaneci sentado algum tempo, esticando-me depois no solo, mas sem pregar o olho. Estava excitado demais para dormir, sentia-me como caça que pressente o perigo, fôramos detectados e ainda estávamos cerca de uns 4 quilómetros distanciados do maldito milharal, embora caminhássemos muito mais devido aos zigue-zagues que nos vimos obrigados a realizar, progredindo num terreno cheio de obstáculos e um famigerado rio, repleto de curvas fechadas, com o qual topamos umas três ou quatro vezes.
O dia amanheceu limpo, dando-me um nó na garganta. Mas só restava continuar deitado ou sentado, esperando a acolhedora noite voltar.
Aquela zona era bastante habitada e ouvíamos ruídos de conversas e trabalhos domésticos, em casas que provavelmente teríamos encontrado se progredíssemos mais algumas dezenas de metros à frente!
Por associação de situações, veio-me a lembrança de anos atrás estar sentado na porta de um pequeno Piper Cub que sobrevoava a praia de Itajaí, Santa Catarina, a uns 1200 pés de altura e eu, com as pernas dependuradas para fora e o pára-quedas às costas, preparava um salto no vazio. Era o terceiro ou quarto que dava, principiante, e só naquele é que tive bem a noção dos fatos, antes encobertos pelo entusiasmo. Veio o medo se infiltrando e pensei: "ninguém mandou me meter nesta fria, podia estar muito bem lá embaixo tomando uma cerveja..."
E agora também, podia estar em Pinhal, minha cidade, tomando uma batida no bar do "Tekila", com "muitos anos de vida pela frente" ao invés de estar aqui contando os minutos, esperando a qualquer momento a visita da morte, velha namorada... "quem mandou me meter nesta fria?...".
Logo identificamos barulho de armas e guerrilheiros da ZIPA -Zimbabwe (Rhodésia) Independence People Army - iam e vinham à vontade em suas casas!
Havíamos caído num vespeiro de guerrilheiros rhodesianos, tropas tanzanianas e advisers cubanos, que substituíam a decadente Frelimo naquela zona perigosa. O mínimo movimento desastrado e o barulho poderia atrair o inimigo para cima de nós, visto que deveriam ter recebido informações sobre nossa passagem e estavam em alerta.
O sol apareceu, aquecendo-nos e dei a contragosto, permissão para tirarem as botas e secarem as meias. Não era aconselhável, mas por outro lado a caminhada que nos esperava logo mais exigia pés e meias em boas condições. Preferi ficar calçado, sentia-me nu sem as botas quando em situação de guerra.
Outros dois problemas logo apareceram: a tosse e o cigarro. Os corpos molhados durante várias horas se ressentiam e a tosse veio, irreprimível e violenta. Os homens tornavam-se roxos, tapando aboca com as mãos fortemente e agitando-se em espasmos para contê-la.
Uma mistura de licor Cointreau com mel, que, precavido trouxera, amenizou um pouco o problema, mas criou outro, a falsa crise de tosse para poder bebê-lo!
O vício do fumo, que eu não tenho, obrigava-me a não proibi-los totalmente apesar do perigo, porque não sei aquilatar a intensidade desta vontade, desta falta e suas consequências no estado psicológico dos meus companheiros. Fumava-se por turnos, tragando e espalhando com as mãos a fumaça que escapava, precauções que não dissipavam o odor, sentido à distância na mata, pelo menos por um não fumante.
Embora alguns glutões passassem o tempo a mastigar o biltong, nada comi, sem apetite. Chegamos ao meio dia incólumes e a tarde seguiu-se, com todos nós acompanhando as horas pelos relógios, uma por uma. O pôr do sol séria às 18:30h e isto significava uma mão estendida para nos tirar de um atoleiro.
14,15,16 horas, chegaremos lá, apesar do movimento à nossa volta! Já esperançosos, víamos o ponteiro ir chegando às 17 horas, quando à minha esquerda pressentiu-se o caminhar de guerrilheiros conversando entre si, demonstrando que não imaginavam nossa proximidade e pelo lado que vinham não podiam estar seguindo pista alguma. O barulho de galhos se partindo aumentou, estavam penetrando na mata justamente na direção onde estavam Póvoa, eu e mais perto deles, Rui, um caçador em cujas terras que perdera com a Independência, passaríamos, servindo-nos de guia.
A lombada e o mato fechado fariam que, se continuassem a progredir, só viessem a nos avistar praticamente cara a cara. Devo lembrar que não nos interessava qualquer confronto antes de libertarmos Gorongosa, a missão principal. Evitar tiroteios era a ordem.
Estes momentos de pré-combate à curta distância, de expectativa, é uma sensação angustiante, completamente diferente de um embate com blindados, por exemplo, ou mesmo o ataque e defesas de cidades ou posições, em que se vê o inimigo ao longe e ainda que depois possa se transformar numa luta corpo a corpo, não há surpresas. Ali sabíamos que antes mesmo de visualizar um rosto, os estaríamos matando ou sendo mortos.
Não gosto de esperar a luta deitado. Sinto-me mais frágil, mesmo que esta posição me favoreça. Ajoelhei-me e Póvoa fez o mesmo, assim veríamos e seríamos os primeiros a serem vistos. Destravamos as armas segundo eu lhes instruíra, forçando a pequena tecla para fora antes de abaixá-la, a fim de que não produzisse ruído.
Mas Rui, o primeiro na linha de fogo, deitado e talvez nervoso, colocou a tecla em posição de rajada num só movimento, com o estalido característico alertando o inimigo, que claramente ouvimos fazer o mesmo e calarem as conversas. Deram dois ou três passos cautelosos e não sei quem apertou o gatilho primeiro, creio que Paulo, o ex-comandante da Frelimo que embora afastado, estava em posição mais alta. Praticamente todos atiraram juntos, por segundos de diferença, nós e o inimigo.
Na frente vinha um negro de calções brancos e chapéu de palha pintado com tinta vermelha (!) com sua Kalash. Todos os outros portavam as mesmas AK-47.
Quatro de nós, melhor colocados, abriram fogo: eu, Póvoa, Paulo e Zeca. O dono do chapéu teve seu peito arrebentado por dezenas de balas, mas creio que ainda foi sua rajada que nos atingiu com mais danos. Os que vinham atrás já surgiam, mas com rajadas desordenadas, tentando fugir ladeira abaixo. Rui gritou de dor e Zeca apenas disse - "já estou!".
Balas por todo lado, eu e Póvoa descarregamos juntos os carregadores de 30 cápsulas 5.56 das AK-47 e rastejando, de costas, protegendo-nos mais na lombada, trocamos os pentes e aproveitei para sacar também uma granada chinesa, de meu colete peitoral.
Metralhando em leque para baixo, ainda pegamos dois ou três guerrilheiros, que gritavam o mais que podiam. Zeca estava bem, com apenas o braço atingido, mas Rui tinha suas pernas arrebentadas, principalmente a esquerda, quase cortada fora. No cotovelo de minha blusa dois furos indicavam a entrada e saída de um projéctil que não me tocou!
A aldeia agitava-se, mulheres faziam alarido, correria, tiros eram dados a esmo. Em nossa volta, capinzal e acima, o sol que teimava em brilhar. Ao derredor, enxames de guerrilheiros.
- Vamos dar o fora daqui! Vamos sair na marra e tentar chegar ao topo do morro maior de qualquer jeito! Dois de vocês abandonem as mochilas e carreguem o Rui!
Após gritar as ordens saí em frente, para o descampado. Paulo recolheu a arma do morto mais próximo, haviam outros dois estendidos atrás e abaixo, feridos que gemiam. O capim dava-nos pela cintura e agachados ficávamos cobertos, mas não abrigados.
Progredi pelo campo, pronto para disparar, girando em torno de mim. Meus homens acompanhavam, bem espaçados e logo à direita já havia uma casa, mas abandonada às pressas para nossa sorte ou dali seríamos ceifados com facilidade. O barulho de um motor de veículo soou como uma condenação - podia significar o deslocamento de tropas, cortando nossa retirada.
Em verdade, o inimigo, sofrendo um ataque em pleno dia, superestimou nosso grupo, fugindo sem saber que éramos pelo menos 10 vezes inferiores em número ao efetivo lá existente.
- Onde está Rui? Quem está com ele? - perguntei, quando já havíamos avançado uns 300 metros em direção ao morro. Ninguém respondeu à minha interrogação, só vi cabeças apontando do capim, caladas. Não fora socorrido...
Voltei imediatamente com Paulo e penetramos novamente na mata. O ferido estava no mesmo lugar, sofrendo, e a pequena sacola que continha injeções descartáveis de morfina rolara para fora de meu alcance. Mesmo sem proteção tivemos que dependurar as armas a tiracolo e suspendemos Rui em cadeirinha, com seus braços em nossas costas. Para ele, ser transportado sem a morfina era uma verdadeira tortura, urrava devido à dilacerante dor que sentia, sua perna esquerda balançava-se com os ossos partidos e expostos.
Avançamos com ele o mais que pude, ladeira acima, mas rapidamente esgotei minhas forças. Nossa fuga estava se atrasando e ali não havia modo de contemporizar; ou desaparecíamos ou ninguém escapava.
Quando do recrutamento fora claro ao informar que, se um ferido ameaçasse todo o conjunto, seria abandonado e isso se aplicava mesmo se o ferido fosse eu, assumindo o subcomandante, e embora teoricamente este fosse o Silva, apenas pela idade, entregaria o comando ao Póvoa ou ao Zeca, mais audaciosos.
Deitei-o no chão. Eu quase não conseguia falar, extenuado pelo esforço.
- Vamos ter que deixar você aqui, não há outra maneira de salvar o grupo com segurança. Você tem que ser medicado logo e se o pegarem irá para um hospital.
- Vocês continuam? - perguntou;
- Não, voltaremos para a Rhodésia.
Pêlos seus olhos passou uma ténue esperança, a salvação ali tão perto e íamos deixá-lo. Não prosseguiríamos justamente porque ele seria capturado e debaixo de tortura podia revelar o plano da Gorongosa e a missão ser desbaratada. Eu não o levaria, embora duramente penalizado, devido ao seu estado e ao mesmo terreno que teríamos que enfrentar, desta vez debaixo de perseguição e em marcha forçada. Inclusive ficaria para trás o "gordo", se não aguentasse.
O ferido escutou sem se rebelar ou implorar que o salvássemos. Portou-se com dignidade e calmo, pediu-me que guardasse seu anel e relógio, para levá-los à sua mãe.
Apertando-lhe a mão o deixei, juntando-me aos outros, mais à frente.
Progredimos morro acima, e a chuva que nos negara a proteção, aparecia agora, pesada, mas tarde demais, pelo menos para Rui, cujos gemidos ouvíamos ao longe. A dor provocada pela água a escorrer-lhe pelas feridas abertas deviam o estar deixando fora de si.
Uma atadura foi colocada no braço de Zeca, que não apresentava maiores problemas nem mesmo hemorragia; fora uma bala traçante, ela própria praticamente cauterizara o ferimento.
Tratamos de realizar uma grande curva, descendo o morro ao escurecer e debatendo-nos mais uma vez contra o maldito rio. Interceptamos uma estrada, haviam pegadas de botas militares e a abandonamos, apagando o local por onde cruzamos. Com o inimigo aos calcanhares, não houve ninguém caindo de cansaço... chegamos são e salvos à fronteira, apesar de seguir por locais ditos minados. Quanto a Gorongosa, teríamos que esquecer por enquanto ou os pegaríamos prevenidos.




A RESISTÊNCIA SE FORTALECE
Permanecemos na clandestinidade e o S.B continuou a nos ajudar, além de entrarmos em contato com outros resistentes isolados, que engrossaram nossas fileiras.
Alguns portugueses desistiram ou foram excluídos por mim e no ambiente de intrigas que se seguiu ao fracasso da primeira missão, acabei injustamente por eliminar do grupo o Godinho, excelente elemento, mas vítima de inimigos - por sua mania de falar demais -que com falsas informações o colocaram em "desgraça" perante mim.
O fato de ser o chefe não me tornava infalível e iria cometer mais erros, mesmo durante missões, mas que serviram para ensinar-me a ser mais humilde e menos egocêntrico.
Diriam inclusive em Salisbury, mais tarde, que eu matara Rui, sacrificando o ferido para que não fosse interrogado pela Frelimo. Carreguei com a falsa acusação até que os jornais o mostraram vivo e curado, mas para na verdade padecer durante dois anos de cativeiro e ser, posteriormente, fuzilado como "mercenário" numas das ridículas e funestas demonstrações de força que periodicamente o governo de Samora Machel realizava, para se autoafirmar.
Contudo, crescíamos em força e tamanho...
Um novo ponto para entrar em Moçambique com tranquilidade foi achado: o Skecleton Pass. Altos paredões de pedra cercavam um vale, cavado em forma de "U", como feito por uma geleira nos tempos glaciais. Aqui e ali, estranhamente isolados, enormes blocos de granito jaziam no meio do quilométrico corredor.
Por ali, segundo os mapas históricos, passaram os primeiros colonizadores com suas carroças de quatro rodas puxadas por bois, cujos vestígios ainda estavam presentes, intocados em sua solidão, na forma de objetos de ferro e restos de madeira.
Neste desfiladeiro muitos homens perderam suas vidas, colhidos pela febre ou animais selvagens.
Mudamos de fazenda, passando para uma onde se cultivara fumo e o grande galpão de secagem das folhas serviu de alojamento aos moçambicanos que apareciam de todas as partes, contatados por nossos colaboradores.
Gorongosa por sua vez seria libertada, não por mim, mas pelo comandante André, outro ex-Frelimo que se juntou a nós. Profundo conhecedor da região e também ex-prisioneiro, dirigiu um grupo constituído só de moçambicanos negros, que pela sua resistência física percorreriam os pelo menos 300 quilómetros de ida e volta sem problemas, façanha infelizmente quase impossível para homens brancos que não possuíssem constituição atlética. Ao mesmo tempo em que ele chegava a Gorongosa, no campo chamado Sacudzo, meu grupo realizava missões de sabotagem, para desorientar a Frelimo.
André perdeu apenas um dos libertos, morto durante a fuga e o caudal da Resistência aumentou ainda mais com essa adesão maciça de novos elementos.
Eu e meu grupo original nos constituiríamos em advisers, recebendo um curso de demolição dado por Danny, na base aérea de Gwelo. Durante uma semana trabalhamos com os mais variados tipos de material, tanto ocidental como dos países de Leste, aprendendo todos os truques na arte do manuseio de explosivos e confecção de minas e armadilhas.
Fisicamente não podia competir com os africanos e em sã consciência sabia que um branco só atrasaria as progressões, além de até atrapalhar em caso de terem de passar despercebidos em vilas e cidades. Eu lançara a semente, a Rhodésia cedera-nos o adubo e daí nasceu uma planta forte, vigorosa, a Resistência Nacional Moçambicana, que antes de nós já existia, na forma de ações individuais e isoladas de reação armada.
Aglutinamos tudo isso e dei-lhes um nome. A planta frutificou e já não precisava de mim, reles jardineiro. A fim de não criar divisões tentando impor meu método pessoal sobre a vivência dos africanos, compreendi que havia chegado a hora de partir.
Fizera o que devia, mas além disto não poderia ir ou seria ultrapassado. E deixando tudo aos africanos, dissolveria como sempre o inevitável circo de parasitas da retaguarda, homens que em Salisbury já se intitulavam porta-vozes do nosso grupo e criaram um "conselho da Resistência", desfilando com ar misterioso pelos bares, alimentando sua sede de glória, incapazes de a conseguirem de arma na mão.
Deixara a fazenda equipada, havia idealizado e construído uma pista de treinamento, distribuíra trincheiras estrategicamente colocadas, abrigos contra morteiros e dera instrução militar a todos os civis voluntários.
Devo me apressar, a Europa é minha meta - tenho que divulgar esta luta ao mundo. Voltei a Salisbury e à civilização, com mais uma etapa cumprida contra o comunismo internacional.


VII
ESCRITOR "REACIONÁRIO"!
Mas não seria fácil, mesmo na "civilizada" Europa, onde as influências da esquerda e de uma parte altamente corrupta das direitas se consumiam, muitas vezes, pelo assassinato puro e simples de quem se constituísse num obstáculo. E eu pretendia falar aos jornais, escrever um livro, reunir o pessoal, lutar como sempre contra a corrosão comunista. "A Europa está sendo cercada", nunca me esquecia.
Mike trouxe os travelers checks em dólares americanos que pedira para me conseguir e que seriam suficientes para os primeiros meses no velho continente. O próprio agente me acompanhou ao aeroporto, desvencilhando sem problemas os complicados trâmites legais, usando para isso a "palavra mágica", S.B.! (Special Branch ou Serviço Secreto).
Na cabine de revista corporal o policial encarregado sorriu e sem me tocar pediu que "desse um tempo" e depois saísse. Sem complicações e com votos de boa viagem...
O meu Rhodesian Herald anunciava que tropas do exército rhodesiano estavam a 120 quilómetros dentro de Moçambique numa expedição punitiva. Eram 6 de junho de 1977 e na sala de espera aguardava o embarque no 737 da Rhodesian Airways, para Johanesburg. A guerra nesta parte do mundo prosseguiria sem mim, já dera meu quinhão.
Após um voo normal, passei a tarde no Aeroporto Jan Smuts, acompanhado de duas simpáticas rhodesianas com quem almoçara e que seriam minhas companheiras na longa jornada de 11 horas para Madrid. As duas viajavam desacompanhadas e logo nos tornamos amigos, em que pese a diferença de idade: ambas juntas somavam uns 150 anos! Alegres e descontraídas velhinhas!
O Boeing 747 Jumbo da South África Airwais não era tão confortável como se esperava do maior avião comercial do mundo. Reformado para transportar um máximo de passageiros, as poltronas eram muito próximas, incómodas até para mim, um mignon.
Durante a noite, após o jantar, assistimos, enquanto sobrevoávamos o Atlântico, o filme Guerra nas Estrelas e depois de um pouco de música clássica, adormeci num sono agitado e desconfortável.
Aterramos em Barrajas, onde desci em companhia de uma das velhinhas que iria para Almeirim. A outra seguiria no mesmo avião para Londres. Esperava apreensivo que minha valise passasse pela rigorosa revista da Polícia espanhola, mas surpreso verifiquei que a morte de Franco tivera seus efeitos: os policiais, antes severos, limitavam-se agora simplesmente a apalpar a bagagem pelo lado de fora, liberando-a.
Recolhi as malas da rhodesiana; depois uma das minhas, só faltando o que continha documentos reservados. Porém, para minha angústia, o policial tateou algo rígido dentro dela e pediu-me para abri-la! Como se um jovem viajando em companhia da "avó" pudesse portar algo proibido... Enfiou as mãos para dentro, descobrindo que o que tocara eram minhas botas e deu-se por satisfeito. "Maldito suspense", pensei, "parecia até filme!".
Depois de servir de intérprete para minha colega que embarcaria em um voo doméstico, tomei um táxi para Madrid, não sem antes ouvir mil conselhos maternais na despedida.
Minha passagem pela capital espanhola deveu-se a dois motivos: o reencontro com amigos de outros grupos, para atualização, em especial com os portugueses e italianos e também porque queria entrar em Portugal pela fronteira terrestre, mais tranquila e menos rígida que o aeroporto. Não queria que alguns inimigos me detectassem logo de início.
Estive com o pessoal da Ordine Nova, italiana, da Fuerza Nueva, espanhola, e conversei nos pontos de encontros dos portugueses acerca da situação da velha e maltratada nação lusa. Como sempre, por lá havia muita conversa e pouca ação, apesar do descontentamento quase geral da população.
No guarda-volumes da estação ferroviária de Atocha deixei minha mala maior, que continha muitos documentos e fotos que no momento ainda não poderiam vir a público. Caso fosse revistado com maior rigor, devido ao meu passaporte que continha carimbos de países como a Rhodésia e África do Sul, não haveria problemas com a polícia portuguesa, nada de anormal encontrariam. Sobretudo, queria proteger os remetentes da farta correspondência que trazia comigo, pois muitos ocupavam cargos de importância em seus países ou eram muito conhecidos.
Embarquei mais uma vez para Lisboa, agora de trem. Na fronteira não encontrei dificuldades de maior importância e decidi que mandaria algum português com ficha limpa a Madrid para trazer o resto da minha bagagem, o que fiz logo que cheguei ao destino.
Lisboa, já sem segredos paramim, recebeu-me com seu clima agradável e logo à noite encontrei-me com o capitão Valdemar. Estava hospedado em um casarão particular na rua das Flores, junto com o alferes Esteves. Lá também me instalei e comecei meus contatos com os conhecidos.
A primeira grande surpresa que Portugal me reservara foi uma reportagem num jornal, em que apareciam "perigosos mercenários" da FNLA, que capturados em combate viviam em prisões na capital angolana. Seis fotos mostravam meus colegas, alguns dos quais julgávamos mortos, como o motorista Pereira e o municiador... Remédios! O "bandido" estava vivo! Diziam que era o preso que divertia a prisão com suas palhaçadas de sempre, fora retirado da Panhard pelos inimigos e conduzido a um hospital -tivera seus joelhos estraçalhados pelo tiro, mas salvara as pernas e hoje já andava, embora claudicante. Tenente Paes falecera realmente em combate. Os outros eram Fernandes, capturado no Caxito, Quintino, idem, e os dois tripulantes da Panhard 60, capturados na batalha de Quifangondo, Oliveira e Serra. Estes últimos deram entrevistas criticando a FNLA e desconfiava-se que haviam se entregado, e não capturados.
O Coronel estava às voltas com a criação de um partido político e foi na sede deste que o encontrei. Ali igualmente fui apresentado para um representante da FUMO - Frente Unida de Moçambique - que pretendia estar lutando em guerrilha, contra o regime de Samora Machel.
Tratava-se na verdade de mais um grupo que vivia de boatos e bravatas, servindo com isso apenas para desviar os esforços de pessoas e entidades verdadeiramente interessadas na libertação de Moçambique, atuando como um autêntico agente do inimigo, pois o favorecia. Mais grave ainda é que o FUMO assumia na Europa os feitos militares de nosso grupo de Resistência, tendo dado entrevistas com alarde sobre a libertação do campo de concentração da Gorongosa, realizado por André. Nunca vimos sequer um "guerrilheiro" deste pretenso movimento...
Perguntei ao representante da FUMO, que não me conhecia, sobre Gorongosa. Ouvi uma explicação por alto, pois "tratava-se de assunto reservado", mas assegurou-me que foi um sucesso a missão de seus homens.
O capitão Valdemar começou a rir e me apresentei, deixando o "revolucionário" desconcertado. Avisei-lhe que possuía fotos e documentos e que deviam se retratar nos jornais, sob pena de serem desmascarados. Assim foi feito e alegaram que a confusão foi criada devido à "grande distância entre as Bases (?) de sua guerrilha e o comando central, dificultando por isso a comunicação"...
Continuavam com o uso da mentira para aferir lucros, sendo que nunca provaram terem pelo menos meia dúzia de homens armados em África.
Aos marginais deste tipo, com máscara de idealistas, tanto de esquerda como de direita, me tornava frequentemente um espinho pequeno, mas incómodo, pois não me estagnava em palavras, agia sempre, atrapalhando-lhes a "caixa".
Mas não era espaldado por ninguém poderoso, ao contrário de meus inimigos, e ao mesmo tempo em que dava entrevistas a jornais portugueses e a correspondentes estrangeiros, o tapete estava sendo preparado para ser puxado sob meus pés...
Parecia difícil, principalmente para a esquerda, que eu, tendo lutado em todos os países recém invadidos por cubanos, tendo viajado constantemente entre três continentes pregando o movimento armado contra a infiltração comunista, não tivesse respaldo de alguma organização.
Certos jornais me chamavam de "mercenário a soldo da CIA", "lacaio dos imperialistas" e outros chavões.



O BEST-SELLER
Numa tentativa da reerguer o moral dos ex-combatentes portugueses lancei, com a ajuda do capitão Valdemar e o Alferes Esteves, o livro "Angola - Comandos Especiais contra os cubanos", com prefácio do coronel Santos e Castro, que descrevia a luta armada contra a venda das colónias de Portugal aos russos, embora omitindo muitos detalhes, pois o objetivo era propagandístico, político. Queria mostrar que um grupo de portugueses não se rendera e lutava ainda em várias partes de África. Por que não em Portugal, povoado de traidores que precisavam ser extirpados?
A Brigada Lusíada criava forma, os Comandos Especiais poderiam atuar na Europa.
O livro saltou logo entre os dez mais vendidos em Portugal e os exemplares de duas edições esgotaram em um mês, demonstrando que batera na tecla certa e o pequeno espinho mais incómodo se tornou para a esquerda e a direita corrupta, de onde, creio eu, partiu uma “miniconspiração'' para me desacreditar.
Fui contatado pela FLEC - Frente de Libertação do Enclave de Cabinda - parte de Angola encravada no território do Zaire e moçambicanos em Lisboa vieram me sugerir outra frente de combate no norte, a partir de bases no Malawi. Aos poucos ia fazendo planos e conseguindo adeptos, homens que queriam realidade, não a verborreia dos pseudogrupos de reação.
Quase toda noite encontrava-me com amigos na boate Gruta e foi ali que uma conhecida me revelou ser agente de Polícia Judiciária, enviada para me observar. A P. J., que perdera seus bons agentes com a revolução era agora um clube de amadores. A missão da jovem era travar amizade comigo, o que conseguiu a bom tento, culminando com noites bem passadas no Sheraton Hotel.
Segundo ela, queriam saber de onde eu conseguia verbas para sobreviver e havia pessoas insistindo junto à P. J. em me relacionar com assaltos à mão armada, ocorridos em Lisboa, ainda sem solução, isto é, tentavam encaixar-me em vários crimes sem autores conhecidos, o que solucionaria os problemas de diferentes grupos, inclusive da P. J. Até "testemunhas" seriam encontradas...
Mas o meu círculo de operacionais abrangia também a P.J. e um de seus inspetores, na madrugada de 22 de Março de 1978, bateu na janela do apartamento térreo que estava ocupando, a três quarteirões do Cassino do Estoril, para onde me mudara à cerca de dois meses atrás.
- Abra a porta, rápido! Preciso falar contigo!

A CILADA
Ainda sonolento ouvi a informação que pela manhã, cerca das 07:00h, a P.J. desencadearia uma operação de cerco das duas residências onde me hospedava alternadamente e eu seria detido. Ao mesmo tempo, alguns jornais me relacionariam com os tais "crimes sem dono", que serviriam de pretexto para me manter na prisão.
Despedi-me agradecido daquele que arriscava seu emprego e sua liberdade para me ajudar, mas o momento não era para lamentos e preparei a fuga do País. Iriam me atingir da forma mais baixa possível - ser eliminado só serviria para fortalecer a causa que defendia - alvejando-me moralmente, fazendo descer sobre mim um véu de suposta desonestidade, justamente o crime que eu impedia com minha ação contra os falsos movimentos que só buscavam dinheiro. Cerca das 02:00h tinha uma valise pronta. Havia raspado o bigode e mudado o tipo de penteado.
Às 05:00h dirigi-me ao guichê de tickets da Estação Santa Apolonia, onde comprei dois bilhetes para duas localidades diferentes. Embarquei no primeiro trem a sair e quando ele começou a mover-se, mudei rapidamente de vagão e saltei de volta à plataforma no meio da multidão que aguardava sua vez - para alguma coisa servem os filmes e romances de espionagem!
Aí então tomei o trem para uma vila onde havia um entroncamento para a fronteira. Lá desci já com outros trajes e embarquei para Vilar Formoso, local que conhecia bem e sabia ser um ponto pouco controlado.
Metade do dia transcorrera quando cheguei ao destino e a operação em Lisboa se frustrara, mas quais seriam as providências que adotariam? Comunicariam os postos fronteiriços? Ou pensariam que estava algures na capital, sem nada saber?
A pé, dei um passeio "despreocupado", passando pela frente do posto policial e depois pelas imediações da Alfândega. Tudo normal.
- Pois é aproveitar agora - pensei.
Tomei um táxi e mandei rumar para Fuentes Onoro, no lado espanhol.
- Para onde? - perguntou o motorista.
- Para o melhor hotel que houver por lá - respondi, evitando revelar o lugar para onde verdadeiramente me dirigia, a estação ferroviária.
No controle alfandegário havia uma fila de uns cinco carros e sugeri ao motorista que levasse os passaportes para carimbar, o que fez sem problemas. Permaneci no veículo, com um ar indiferente de "turista cansado". Um guarda civil indagou se eu levava alguma bagagem além da valise e diante da reposta negativa e dos passaportes já carimbados, mandou-nos avançar e ultrapassando a fila, entramos em território espanhol.
Saltei diante do hotel e mal o táxi se afastou entrei no primeiro bar para tomar um bom vinho tinto da terra, com a tranquilidade de não se sentir com a cabeça a prémio. Depois fui a pé até a estação onde comprei uma passagem para Madrid, de olho nos policiais portugueses que lá estavam, conversando com seus colegas espanhóis como de costume.
Algumas horas depois o trem partiu e vendo a fronteira se perder ao longe respirei mais aliviado. Outro "cerco" que não se fechara...
Na capital espanhola instalei-me num hotel que ficava ao lado do restaurante italiano na Calle de Los Libreros, que tinha a vantagem de estar a 50 metros da Gran Via e ser ponto de hospedagem de outros conhecidos. Teria que passar dez dias esperando até que um "correio" mandado por amigos me trouxesse as novidades, meus arquivos e dinheiro: receberia um cheque no dia 24, referente aos direitos autorais do livro.
Mas as coisas se complicaram. Apesar de terem recebido o dinheiro não conseguiam enviar-me, pois eram vigiados de perto pela P. J. O capitão Valdemar foi chamado para depor e nada de concreto lhe disseram acercadas acusações. Enquanto isso os jornais de esquerda acusavam fictícias "associações de malfeitores", incriminavam-me como o "pistoleiro de Picoas", uma ocorrência de tiroteio havida em plena luz do dia no início do ano, no bairro deste nome etc, apresentando-me como um marginal e mercenário da mais baixa qualificação. Quanto aos jornais descomprometidos ou de direita, derrubavam uma por uma as acusações, todas feitas sem muito conteúdo e convicção. Uma observação de "O Dia" me fez sorrir, eu não poderia ser o "pistoleiro de Picoas" visto o mesmo ter errado três tiros à queima roupa na vítima. Uma falha impossível, devido ao meu "currículo"! E imputavam à DIS A, a polícia política angolana, a montagem da farsa.
Mas haviam testemunhas compradas e o esquema fora montado para vencer. O prudente seria não retornar, quem me espaldaria? Estava só, e na "democracia" portuguesa, não teria chance alguma. Senti pelos meus arquivos, centenas de fotos, documentos, correspondência, medalhas e outras lembranças de África, arbitrariamente recolhidas pela P.J. e que hoje deve servir de decoração nas casas de alguns agentes.
Isolado em Madrid, um tanto desgastado psicologicamente e enojado com a podridão dos políticos, senti falta da disciplina da caserna; um quartel me faria bem. Uma ideia veio-me à mente.
Era um ciclo que se fechava: começara com a Legião Estrangeira Francesa, terminaria com a Legião Espanhola, o famoso Tercio de los Estranjeros, de Franco. Nos primeiros dias de Abril apresentei-me no quartel de Leganês, como voluntário.

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