29/05/2012
Viagem ao Fundo da Gaveta do Esquecimento
Acabo de realizar mais uma "viagem" ao «Fundo da Gaveta do Esquecimento». São sempre gratificantes e deixam ficar um sabor doce de saudade e recordação. Desta feita a "viagem" foi para recordar (mais) um excelente profissional da Comunicação Social, alguém que trabalhou e viveu em Moçambique desde sempre. Conheci-o em meados de Novembro de 1968, com apenas 18 anos. Um mês antes de ter sido admitido como Repórter Estagiário para os Quadros Redactoriais do então jornal Diário, que era propriedade da Diocese Católica Portuguesa de então.
À época, o Roberto Cordeiro --- assim se chama o colega de quem hoje vos falo ---, estava ligado ao matutino Notícias. Era mais velho que eu cinco anos e um profissional já com experiência alicerçada na actividade da Comunicação Social e com provas dadas. Tivemos vários contactos e convivemos o suficiente como colegas e amigos. O Roberto Cordeiro era/foi sempre uma alma perturbada e emocionalmente instável.
A sua qualidade de homossexual fazia dele um homem isolado e isso fazia com que se afastasse de tudo e de todos.
Constituía para ele «uma dificuldade presente», em termos de relações humanas e de amizade para o seu semelhante. Não era por acaso que o Roberto Cordeiro sempre fora um homem solitário. As crónicas que publicou na sua secção «Chipalapala» desse tempo, são verdadeiras pérolas da Literatura Portuguesa e Moçambicana da época, que deviam ser reunidas em livro e editadas para futura memória. Basta ir ao Arquivo da Biblioteca Nacional ou ao Arquivo do jornal Notícias e recolhê-las.
Estão lá todas, entre 1968 e 1972 à espera de qualquer um de nós para serem compiladas, antologiadas e seleccionadas. «Ó Roberto Cordeiro é um jornalista de prosa fluida e cristalina, séria e envolvente, extremamente poética e cativante» -- assim se referiu a ele, um dia, o colega Cartaxo e Trindade, o Coordenador da Página Literária «Confluência», que saía todas as 5ª Feiras no jornal Notícias.
«Tenho dificuldades em dar-me com as pessoas, em ter amigos com quem possa conversar e desabafar. O colega Guilherme de Melo é a acepção à regra» -- confidenciou-me certa vez -- «o único que me entende, o único com quem posso confidenciar o que me vai no âmago...» Compreendia-o perfeitamente e tentava dar-lhe ânimo e algum consolo por ser como era -- «um ser especial», porque o era, efectivamente.
A maldade de alguns colegas fazia-se ouvir: «Vê lá se o Roberto se apaixona por ti...»
Eram as vozes maldizentes, do tipo «os cães ladram e a caravana passa»...
Mas não, nunca em momento algum o Roberto Cordeiro tivera para comigo qualquer indelicadeza ou atrevimento que fosse, acto menos correcto ou explícito. Sempre mantivemos um trato cordial e sincero na nossa relação de camaradagem e profissão. Um dia, à mesa do velho Café Djambo – onde habitualmente se reuniam diversos jornalistas e homens da Letras e Artes Moçambicanas --, o Roberto Cordeiro havia telefonado para mim a dizer que tinha "um segredo" para contar. Quando cheguei à esplanada do café já ele estava lá sentado numa das mesas com um refresco à sua frente. Sorriu à minha chegada. «Ainda bem que podeste vir.
Estou deslumbrado, fora de mim.
Conheci há dias um rapaz que é militar da Força Aérea, por quem me apaixonei.
E ele corresponde, com sinceridade ao meu amor. Já estamos a viver os dois em minha casa há uma semana...». O Roberto Cordeiro vivia numa Flat alugada de um Prédio da Av. Pinheiro Chagas. Lembro-me tão bem desta confissão como se fosse hoje, e que me apanhou totalmente de surpresa. «Que bom para ti!» -- consegui articular.
Quando fui colocado em Nampula, na Delegação do jornal Diário, o Roberto Cordeiro acompanhou-me ao Aeroporto e ali nos despedimos com «um até qualquer dia». Cinco meses depois deixava os quadros redactoriais do Notícias para integrar a Redacção da Revista Tempo. A sua saída do jornal ficou a dever-se a um convite do então Chefe de Redacção do Notícias, o jornalista Mota Lopes --- que na altura levou consigo uns tantos colegas deixando a Redacção do Notícias sériamente "desfalcada" --- recordo-me, a propósito, de nomes como Calane da Silva, Mário Lindolfo, Rui Nogar, Albino Magaia, Miguéis Lopes Júnior, Areosa Pena, Rui Cartaxana e do Roberto Cordeiro. Era um "naipe" de luxo, de jornalistas «de primeira água».
Entusiasmado, ligou para mim para Nampula, a dar-me a «boa nova». Era visível na sua voz eufórica uma certa alegria: «Afonso, acabo de deixar o Notícias e fui convidado para fazer parte de um projecto editorial que vai surgir ainda este mês. É uma Revista ilustrada» -- recordo as suas palavras.
O surgimento da Revista Tempo no início dos Anos 70 fora um acontecimento marcante em termos de Comunicação Social em Moçambique, que muito rapidamente se transformaria num «marco relevante» de uma Imprensa feita com qualidade e brilhantismo, à época. A sua Sede estava localizada na então Av. Afonso de Albuquerque. «Não estou numa Redacção, meu caro Afonso; estou, antes, no Céu...» -- disse-me rindo de satisfação, fazendo referência ao facto de as instalações redactorias da Tempo se situarem no 11ª Andar do edifício, logo, «nas alturas»…
Após o 25 de Abril de 1974, Roberto Cordeiro foi daqueles que abandonou Moçambique, com destino a Portugal.
Ligou-me a dizer que estava de malas aviadas e que ia partir. «Já tenho trabalho em Lisboa no Diário de Notícias» -- dir-me-ia. «Felicidades, meu caro e que tudo corra bem contigo por cá» -- seriam as suas últimas palavras de despedida. Só vim a reencontrá-lo em Fevereiro de 1976 quando estava já em Portugal, fugido da FRELIMO graças ao aviso do saudoso colega Manuel Mota, quando me encontrava ao serviço da Voz Africana, na Beira. Evoquei, a propósito, este episódio neste espaço, numa das anteriores crónicas publicadas no Wamphula Fax na sua Edição do dia 13 de Abril último.
Encontramo-nos meia dúzia de vezes e almoçamos juntos outras tantas na Cervejaria Trindade (ao Chiado) e no Restaurante Lisboa (sito à Av. da Liberdade) para recordar "velhos tempos".
Achei-o mais abatido e extremamente magro. Mas continuava feliz e já estava a viver com outra pessoa diferente. «O Amor também acaba, não é verdade? Hoje vivo com alguém especial, sensível e mais culto» -- disse sem rodeios e com toda a frontalidade. Depois andei por fora, entre os EUA, Holanda e Espanha, com visitas esporádicas a Portugal. Entretanto, o colega Guilherme de Melo ganhou o 2º Prémio do Círculo dos Leitores com a Obra «A Sombra dos Dias», uma (quase) auto-biografia romanceada, onde o nome de Roberto Cordeiro é citado, amiúde. O dele e de alguns mais. Recordo-me que fomos jantar ao Bairro Alto para comemorar o evento e para que o Guilherme de Melo autografasse o meu exemplar. Uma dedicatória muito bela, comovente e amiga assinala esse registo na primeira página do livro que guardo religiosamente.
Meses depois encontrei ocasionalmente o Guilherme de Melo no Rossio e soube da notícia que me abalou profundamente: «Afonso, o Roberto Cordeiro está hospitalizado no Santa Maria. Foi-lhe diagnósticado a malévola doença da SIDA e os médicos dão-lhe três meses de vida...» O Guilherme de Melo estava com lágrimas nos olhos. E deixou-me também sensível e comovido com a notícia dada de chofre. Fui ao Hospital Santa Maria visitá-lo nesse Domingo seguinte. Quando entrei no quarto onde estava o Amigo e Colega «da velha guarda», não consegui evitar as lágrimas que me vieram aos olhos. «Mas que surpresa boa, Afonso! Estava tão longe de ti, rapaz...» Debrucei-me sobre a cama onde se encontrava deitado para lhe dar um abraço. Disse que tinha estado com o Guilherme de Melo e que fora através dele que tinha sabido do seu precário estado de saúde. Sorriu para mim, apertou-me uma das mãos com força e retorquiu, comovido: «Um bom Amigo, o Guilherme de Melo!
Um Amigo como há poucos, nos dias que passam... E tu, como tens passado? Por onde tens andado?!...»
Nesse ano o Roberto Cordeiro viria a falecer e o seu corpo cremado no Cemitério do Alto de São João, e as cinzas deitadas ao vento, como havia pedido dias antes de no leito da cama do hospital, antes de morrer, a uma das suas irmãs.
Hoje, ao "viajar" por um dos ábuns de fotografias "desse tempo" que a memória não apaga, dou comigo a olhar para a foto que aqui deixo reproduzida a ilustrar esta evocação, a título de homenagem à sua memória. Uma foto onde estão o Roberto Cordeiro e o Guilherme de Melo (que assinala este ano o seu octagéssimo segundo aniversário). Uma foto que recorda dois bons Amigos e Colegas da «velha guarda».
É assim a Vida. Todos partimos um dia, todos temos contas a ajustar com o Destino, no Além do Mundo Espiritual...
Até breve, Amigo! Até um dia destes
WAMPHULA FAX – 29.05.2012
Estão lá todas, entre 1968 e 1972 à espera de qualquer um de nós para serem compiladas, antologiadas e seleccionadas. «Ó Roberto Cordeiro é um jornalista de prosa fluida e cristalina, séria e envolvente, extremamente poética e cativante» -- assim se referiu a ele, um dia, o colega Cartaxo e Trindade, o Coordenador da Página Literária «Confluência», que saía todas as 5ª Feiras no jornal Notícias.
«Tenho dificuldades em dar-me com as pessoas, em ter amigos com quem possa conversar e desabafar. O colega Guilherme de Melo é a acepção à regra» -- confidenciou-me certa vez -- «o único que me entende, o único com quem posso confidenciar o que me vai no âmago...» Compreendia-o perfeitamente e tentava dar-lhe ânimo e algum consolo por ser como era -- «um ser especial», porque o era, efectivamente.
A maldade de alguns colegas fazia-se ouvir: «Vê lá se o Roberto se apaixona por ti...»
Eram as vozes maldizentes, do tipo «os cães ladram e a caravana passa»...
Mas não, nunca em momento algum o Roberto Cordeiro tivera para comigo qualquer indelicadeza ou atrevimento que fosse, acto menos correcto ou explícito. Sempre mantivemos um trato cordial e sincero na nossa relação de camaradagem e profissão. Um dia, à mesa do velho Café Djambo – onde habitualmente se reuniam diversos jornalistas e homens da Letras e Artes Moçambicanas --, o Roberto Cordeiro havia telefonado para mim a dizer que tinha "um segredo" para contar. Quando cheguei à esplanada do café já ele estava lá sentado numa das mesas com um refresco à sua frente. Sorriu à minha chegada. «Ainda bem que podeste vir.
Estou deslumbrado, fora de mim.
Conheci há dias um rapaz que é militar da Força Aérea, por quem me apaixonei.
E ele corresponde, com sinceridade ao meu amor. Já estamos a viver os dois em minha casa há uma semana...». O Roberto Cordeiro vivia numa Flat alugada de um Prédio da Av. Pinheiro Chagas. Lembro-me tão bem desta confissão como se fosse hoje, e que me apanhou totalmente de surpresa. «Que bom para ti!» -- consegui articular.
Quando fui colocado em Nampula, na Delegação do jornal Diário, o Roberto Cordeiro acompanhou-me ao Aeroporto e ali nos despedimos com «um até qualquer dia». Cinco meses depois deixava os quadros redactoriais do Notícias para integrar a Redacção da Revista Tempo. A sua saída do jornal ficou a dever-se a um convite do então Chefe de Redacção do Notícias, o jornalista Mota Lopes --- que na altura levou consigo uns tantos colegas deixando a Redacção do Notícias sériamente "desfalcada" --- recordo-me, a propósito, de nomes como Calane da Silva, Mário Lindolfo, Rui Nogar, Albino Magaia, Miguéis Lopes Júnior, Areosa Pena, Rui Cartaxana e do Roberto Cordeiro. Era um "naipe" de luxo, de jornalistas «de primeira água».
Entusiasmado, ligou para mim para Nampula, a dar-me a «boa nova». Era visível na sua voz eufórica uma certa alegria: «Afonso, acabo de deixar o Notícias e fui convidado para fazer parte de um projecto editorial que vai surgir ainda este mês. É uma Revista ilustrada» -- recordo as suas palavras.
O surgimento da Revista Tempo no início dos Anos 70 fora um acontecimento marcante em termos de Comunicação Social em Moçambique, que muito rapidamente se transformaria num «marco relevante» de uma Imprensa feita com qualidade e brilhantismo, à época. A sua Sede estava localizada na então Av. Afonso de Albuquerque. «Não estou numa Redacção, meu caro Afonso; estou, antes, no Céu...» -- disse-me rindo de satisfação, fazendo referência ao facto de as instalações redactorias da Tempo se situarem no 11ª Andar do edifício, logo, «nas alturas»…
Após o 25 de Abril de 1974, Roberto Cordeiro foi daqueles que abandonou Moçambique, com destino a Portugal.
Ligou-me a dizer que estava de malas aviadas e que ia partir. «Já tenho trabalho em Lisboa no Diário de Notícias» -- dir-me-ia. «Felicidades, meu caro e que tudo corra bem contigo por cá» -- seriam as suas últimas palavras de despedida. Só vim a reencontrá-lo em Fevereiro de 1976 quando estava já em Portugal, fugido da FRELIMO graças ao aviso do saudoso colega Manuel Mota, quando me encontrava ao serviço da Voz Africana, na Beira. Evoquei, a propósito, este episódio neste espaço, numa das anteriores crónicas publicadas no Wamphula Fax na sua Edição do dia 13 de Abril último.
Encontramo-nos meia dúzia de vezes e almoçamos juntos outras tantas na Cervejaria Trindade (ao Chiado) e no Restaurante Lisboa (sito à Av. da Liberdade) para recordar "velhos tempos".
Achei-o mais abatido e extremamente magro. Mas continuava feliz e já estava a viver com outra pessoa diferente. «O Amor também acaba, não é verdade? Hoje vivo com alguém especial, sensível e mais culto» -- disse sem rodeios e com toda a frontalidade. Depois andei por fora, entre os EUA, Holanda e Espanha, com visitas esporádicas a Portugal. Entretanto, o colega Guilherme de Melo ganhou o 2º Prémio do Círculo dos Leitores com a Obra «A Sombra dos Dias», uma (quase) auto-biografia romanceada, onde o nome de Roberto Cordeiro é citado, amiúde. O dele e de alguns mais. Recordo-me que fomos jantar ao Bairro Alto para comemorar o evento e para que o Guilherme de Melo autografasse o meu exemplar. Uma dedicatória muito bela, comovente e amiga assinala esse registo na primeira página do livro que guardo religiosamente.
Meses depois encontrei ocasionalmente o Guilherme de Melo no Rossio e soube da notícia que me abalou profundamente: «Afonso, o Roberto Cordeiro está hospitalizado no Santa Maria. Foi-lhe diagnósticado a malévola doença da SIDA e os médicos dão-lhe três meses de vida...» O Guilherme de Melo estava com lágrimas nos olhos. E deixou-me também sensível e comovido com a notícia dada de chofre. Fui ao Hospital Santa Maria visitá-lo nesse Domingo seguinte. Quando entrei no quarto onde estava o Amigo e Colega «da velha guarda», não consegui evitar as lágrimas que me vieram aos olhos. «Mas que surpresa boa, Afonso! Estava tão longe de ti, rapaz...» Debrucei-me sobre a cama onde se encontrava deitado para lhe dar um abraço. Disse que tinha estado com o Guilherme de Melo e que fora através dele que tinha sabido do seu precário estado de saúde. Sorriu para mim, apertou-me uma das mãos com força e retorquiu, comovido: «Um bom Amigo, o Guilherme de Melo!
Um Amigo como há poucos, nos dias que passam... E tu, como tens passado? Por onde tens andado?!...»
Nesse ano o Roberto Cordeiro viria a falecer e o seu corpo cremado no Cemitério do Alto de São João, e as cinzas deitadas ao vento, como havia pedido dias antes de no leito da cama do hospital, antes de morrer, a uma das suas irmãs.
Hoje, ao "viajar" por um dos ábuns de fotografias "desse tempo" que a memória não apaga, dou comigo a olhar para a foto que aqui deixo reproduzida a ilustrar esta evocação, a título de homenagem à sua memória. Uma foto onde estão o Roberto Cordeiro e o Guilherme de Melo (que assinala este ano o seu octagéssimo segundo aniversário). Uma foto que recorda dois bons Amigos e Colegas da «velha guarda».
É assim a Vida. Todos partimos um dia, todos temos contas a ajustar com o Destino, no Além do Mundo Espiritual...
Até breve, Amigo! Até um dia destes
WAMPHULA FAX – 29.05.2012
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