sexta-feira, 3 de maio de 2019

Porque falhou o plano de Guaidó para derrubar Maduro

Premium Porque falhou o plano de Guaidó para derrubar Maduro

Decisões erradas do autoproclamado presidente, plano descoberto pelo regime de Maduro ou operação dirigida pelos cubanos? As dúvidas persistem quando o facto é que o sucessor de Hugo Chávez se mantém no poder.
Uma frase feita lembra-nos que em guerra a primeira baixa é a verdade. Mas esta também sofre em processos revolucionários. O que levou o presidente da Assembleia Nacional a avançar com a Operação Liberdade antes do previsto? O presidente apoiado por Cuba, Rússia, China, Irão e Turquia esteve com um pé num avião a caminho do exílio, como afirmou o secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, à CNN?
Ao fim de dois dias, Moscovo, pela voz do ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov, desmentiu a alegação de Pompeo. "A contagem de tudo o que os representantes da administração norte-americana dizem sobre a Venezuela leva a perguntas sem fim, e como regra, diplomaticamente falando, a resposta a todas essas perguntas seria 'errado'", disse o chefe da diplomacia russa, citado pela agência Tass.

Rússia nega interferência

Lavrov confirmou ter recebido um telefonema do homólogo a pedir para deixar de apoiar Maduro e para, em conjunto com Havana, não interferir na política interna venezuelana. "Toda esta história parece bastante surrealista", comentou. E disse que a Rússia "nunca interfere com os assuntos dos outros e insta outros a fazerem o mesmo".
Apesar das "posições incompatíveis", Lavrov mostrou abertura para conversações sobre o tema com Washington. Quer Lavrov quer Pompeo deverão estar presentes em Rovaniemi (Finlândia) para o Conselho do Ártico, que decorre nos dias 6 e 7, pelo que é possível uma reunião bilateral à margem do fórum intergovernamental.
Além das declarações de Pompeo, o conselheiro de segurança nacional, John Bolton, não teve qualquer engulho em expor as alegadas altas figuras do Estado bolivariano que estariam dispostas a apoiar Guaidó, mas que terão recuado. Vladimir Padrino, ministro da Defesa, Maikel Moreno, presidente do Supremo Tribunal de Justiça, e o general Iván Hernández, comandante da guarda presidencial.

Plano furado

Segundo informações postas a circular pela administração norte-americana, o plano para a saída de cena de Maduro, vencedor de umas eleições presidenciais contestadas em maio do ano passado, resultou de meses de negociações telefónicas entre John Bolton e Vladimir Padrino, segundo contou ao ABC um elemento do Conselho de Segurança Nacional dos EUA.
O momento de viragem seria dado por Maikel Moreno. O presidente do Supremo Tribunal de Justiça da Venezuela declararia ilegítima a Assembleia Constituinte, o órgão criado pelo regime em 2017. Em consequência, Iván Hernández iria convidar Maduro a exilar-se em Cuba ou seria detido por ordem judicial, enquanto Padrino e outros elementos da cúpula assinariam acordos com o autodeclarado presidente interino, Juan Guaidó. O acordo previa a amnistia dos militares, o reconhecimento de Guaidó e a convocação de eleições em 30 dias.
Nada disso aconteceu depois de Guaidó ter aparecido na madrugada de terça-feira na base militar de La Carlota, junto de uns quantos militares e de Leopoldo López, o homem que lutou com mais tenacidade contra o chavismo, e que fora libertado horas antes, aparentemente pelo diretor dos serviços secretos (Sebin), Manuel Figuera - que foi entretanto destituído.
"Vi que muitos deles desligaram os telemóveis", disse o enviado especial dos EUA para a Venezuela, Elliot Abrams. "Falaram, falaram, falaram e quando chegou o momento de agir não estiveram dispostos a fazê-lo", comentou à agência Efe.
Durante dois dias houve protestos nas ruas e respetiva repressão pelas forças leais a Maduro. Passadas mais de 48 horas desde o início da Operação Liberdade, o presidente do Foro Penal, ONG de defesa dos direitos humanos, contabilizou quatro mortos por balas (dois deles adolescentes), 240 detidos e mais de 300 feridos.

O homem que não ouviu a família

Durante as horas de protesto, a família de Vladimir Padrino enviou uma mensagem ao ministro para este acabar com a usurpação e ajudar à realização de "eleições livres e democráticas". "Hoje, primo, decides se te juntas ao povo ou se o massacras. Será da tua decisão passar à história como um libertador ou como um tirano", disse Ernesto, ao lado de outros cinco familiares.
Também a mãe de Vladimir apelou para o filho se juntar a Juan Guaidó, mas sem resultados. Vladimir Padrino, ministro da Defesa desde 2014, depois de ter sido promovido a chefe do Estado Maior do Exército no final do consulado de Hugo Chávez, reagiu no Twitter antes do próprio Nicolás Maduro. "Rejeitamos este movimento golpista que pretende encher o país de violência", tuitou, para pouco depois voltar à carga. "São uns cobardes! (...) Sempre leais, traidores nunca!"
Foi também o primeiro homem do governo a declarar que o Exército não iria hesitar em reprimir o levantamento nas ruas. "Se tivermos de usar armas para defender esses princípios, vamos usá-las", afirmou - e cumpriu.

Militares reafirmam lealdade

Também bem cedo, às 06.00 de quinta-feira, as rádios e televisões venezuelanas começaram a transmitir do principal quartel do país, Fuerte Tiuna, um momento em que Nicolás Maduro expôs toda a sua força e fraqueza. Junto das mais altas patentes, Padrino incluído, exigiu lealdade às Forças Armadas Nacionais Bolivarianas (FANB) antes de encabeçar uma marcha. "Sim, estamos em combate. Máxima moral nesse combate para desarmar todo o traidor, todo o golpista", afirmou. "As FANB têm de dar uma lição histórica neste momento de que na Venezuela há um Exército consistente, leal, coeso, unido como nunca, derrotando as tentativas de golpe de Estado de traidores que se vendem aos dólares de Washington."
Também Vladimir Padrino usou da palavra e usou palavras semelhantes. "Querem comprar-nos como se fôssemos mercenários." Padrino é alvo de sanções e as suas contas no estrangeiro estão congeladas.

Erros de cálculo

O regime conseguiu manter a lealdade das forças armadas apesar da deriva económica e financeira do país e da perda do reconhecimento de Maduro como chefe de Estado por 54 países. Uma das hipóteses é o facto de Juan Guaidó ter apenas oferecido amnistia a quem, de facto, dirige o país e está envolvido em negócios lucrativos. Ou seja, Guaidó - e o principal aliado, a Casa Branca - teria de fazer mais concessões.
O facto de Guaidó ter aparecido junto de militares de baixa patente e de Leopoldo López também não jogou a favor: no primeiro caso porque o simbolismo e o poder da hierarquia fazem a diferença na hora de mudar de lado, e no segundo porque a presença de Leopoldo López poderia não estar acordada com Padrino (fazendo fé no plano divulgado pela Casa Branca); seja como for, López é tido como um inimigo figadal do chavismo.
"O efeito dominó nas Forças Armadas ocorre quando oficiais com comando de tropa ou poder de fogo pronunciam ou abandonam uma lealdade e são seguidos por outros. Se não tiverem comando ou poder de fogo, não encontram resposta do resto das tropas", disse à BBC Rocío San Miguel, diretora da ONG venezuelana Control Ciudadano.
O timing da operação foi outra questão já debatida.
O plano devia ter-se iniciado no dia 2. Segundo o espanhol El Confidencial , Guaidó precipitou-se porque terão tido informações de que o regime de Maduro e os seus espiões cubanos tinham descoberto o plano.
The Economist , por seu lado, dá voz à "especulação de alguns", de que toda a operação de conversações com os norte-americanos não passou de uma "trama da espionagem cubana para forçar a oposição a denunciar-se".
Certo é que, mais de três meses depois de Guaidó se ter autoproclamado presidente interino, o presidente da Assembleia Nacional falhou nos objetivos de assumir o poder interinamente, bem como de conseguir obter ajuda humanitária a partir da Colômbia.

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